CONSIDERAÇÕES GERAIS
Jó é um dos livros sapienciais do Antigo Testamento e da Tanak. Vem depois do Livro de Ester e antes do Livro de Salmos. É considerado obra prima da literatura do movimento de Sabedoria, ou Sapiencial. Também é considerada uma das mais belas histórias de prova e fé. Conta a história de Jó, um homem justo e temente a Deus. As inúmeras exegeses presentes neste livro são tentativas clássicas para conciliar a coexistência do mal e de Deus (teodicéia). A época em que se desenrolam os fatos, ou quando este livro foi redigido, é controverso. Existe uma famosa discussão no Talmud a este respeito. A autoria de Jó é incerta. Alguns eruditos atribuem o livro a Moisés. Outros atribuem a um dos antigos sábios, cujos escritos podem ser encontrados em Provérbios ou Eclesiastes. Há ainda os que defendam que o próprio Salomão tenha sido seu autor. Por alguns, o livro de Jó é considerado o livro mais antigo da Bíblia, mais até que o livro de Gênesis. Por outro lado, a Edição Pastoral da Bíblia sustenta que o livro provavelmente tenha sido redigido, em sua maior parte, durante o exílio, no século VI AC. A Bíblia de Jerusalém sustenta que o livro seja posterior a Jeremias e Ezequiel, ou seja, escrito em uma época posterior ao Exílio na Babilônia, considerando provável que sua composição seja no início do séc. V aC.
INTRODUÇÃO
O livro de Jó é um drama com pouquíssima ação, mas com muita paixão. É a paixão que um autor genial, inconformado, infundiu em seu protagonista. Discordando da doutrina tradicional da retribuição, opõe a um princípio, um fato; a uma ideia, um homem. Já o Salmo 73 (72) contrapôs a experiência à teoria da retribuição e encontrou a resposta penetrando no «mistério de Deus». Nosso autor radicaliza o caso: faz sofrer o seu protagonista inocente para que seu grito brote «das profundezas». A paixão e o sofrimento de Jó inflamam o entusiasmo de sua busca e de sua linguagem; diante dela vão se projetando, como em ondas concêntricas, os seus três amigos que repetem incansavelmente e com variações a doutrina tradicional da retribuição: «o sofrimento é a consequência do pecado».
A ação é muito simples: entre um prólogo e um epílogo, cujas cenas se desenrolam entre o céu e a terra, quatro sessões de diálogos se desenvolvem. Por três vezes, cada um dos amigos fala e Jó responde; na quarta vez é Jó quem entra num diálogo solitário com Deus. Nos diálogos com os amigos, mais que um debate intelectual, se produz uma tensão de planos ou direções: os amigos defendem a justiça de Deus, como juiz imparcial que recompensa o bem e pune o mal. Mas Jó não está interessado na justiça de Deus, que sua própria experiência desmente, e apela para um pleito ou disputa com o próprio Deus no qual se manifestará a justiça do homem. Nesse embate para provar a sua inocência diante de Deus, Jó arrisca sua própria vida. Deus, como instância suprema, decide a disputa entre Jó e seus amigos como parte interpelada, responde e pergunta a Jó para conduzi-lo ao seu «Mistério».
DEUS E O SER HUMANO NO LIVRO DE JÓ
Através dos diálogos do homem bom, convencional, que dá graças a Deus porque tudo vai bem, surge um homem profundo, capaz de assumir e representar a humanidade sofredora, que busca audaciosamente a Deus. No lugar de um Deus sábio e até mesmo compreensível, surge um Deus imprevisível, difícil e misterioso. No espaço de um só livro, o nosso conhecimento de Deus, do ser humano e de suas relações, assume novas proporções. Porque Jó, como um outro Jacó em sua visão noturna, também lutou com Deus; porque o autor empenhou seu gênio literário e religioso para sacudir com os velhos esquemas, explorando o tema em profundidade. O livro de Jó é um livro singularmente atual e provocativo, que causa desconforto aos instalados e conformistas. É quase impossível não ser interpelado por sua leitura, e difícil de compreendê-lo se não se toma um partido.
O autor é um gênio anônimo que viveu provavelmente depois do Exílio, alimentou sua espiritualidade na recitação de Salmos e conheceu a obra de Jeremias e Ezequiel. A representação sacra de Jó é demasiado poderosa para admitir leitores indiferentes, ontem como hoje. Os que em sua leitura não interagem com suas perguntas e respostas internas, os que não tomem partido com paixão, não vão entender o drama; porém, os que se embrenharem na trama da narrativa e tomarem partido, se sentirão sob o olhar de Deus, submetidos à prova pela representação do drama eterno do homem Jó.
SIGNIFICADO DO LIVRO DE JÓ: O PROBLEMA DO SOFRIMENTO DO INOCENTE
Este importante tema constitui a substância do debate entre Jó e seus amigos. O sofrimento, dizem eles, é o castigo que o pecado produz (4,7; 8,20; 11,4-6; 22,4s). Quando Jó, com base em sua própria experiência, rejeita essa afirmação, os amigos respondem que todos os seres humanos são pecadores (14,1-4; 15, 14; 25,4-6). Eles negam a possibilidade de existir alguém que sofra inocentemente. A situação, no entanto, é mais complicada e encaminha a outras respostas. O sofrimento é um mistério e nós não podemos compreender os caminhos de Deus (11,7-10; 15,8s.28; 42,3). O sofrimento é permitido por Deus para nos impor disciplina e tornar-nos melhores (5,17s; 36,15). O sofrimento é permitido por Deus para provar a virtude dos justos (1-2). Todas estas respostas nos permitem salvaguardar tanto a justiça divina como a inocência humana. No entanto, por mais que este aspecto se mostre predominante, não parece que seja este o principal propósito do livro. Se por um lado parece evidente a resposta para o caso que Jó coloca - seus sofrimentos são uma prova (1,9)-, por outro, não há qualquer resposta para o problema no contexto do livro. Se a finalidade da obra fosse apenas essa, poderíamos considera-la como um fracasso.
O MISTÉRIO DO SOFRIMENTO E A RELAÇÃO COM DEUS
Um primeiro enfoque nos leva a ver o sofrimento como um problema que deve ser tratado em um nível intelectual. Um problema é algo que está aí, diante de nós, na nossa frente. Podemos ver todos os seus componentes, todas as suas dimensões. A questão consiste em colocar todas as peças juntas para dar sentido a esse quebra-cabeça. Pelo contrário, o mistério é uma situação em que «eu», enquanto pessoa humana irrepetível e única, encontro-me tão imerso que não posso distanciar-me dele o suficiente para contempla-lo «lá, além de mim». O amor é um mistério, assim como a morte e o sofrimento. Os problemas estão aí para serem resolvidos enquanto que os mistérios são para serem vividos, e vividos na relação com os outros. A maior angústia de Jó emerge da confusão sobre a sua relação com Deus. Deus é realmente seu inimigo? (13,24). A partir desta perspectiva, os discursos do Senhor oferecem realmente uma resposta. A simples resposta do Senhor mostra claramente que ele estava aí o tempo todo, presente, ouvindo; isto é, mantendo e afirmando uma relação. Ainda que Jó não entenda jamais os motivos de seu sofrimento, sabe agora que não está sozinho, e isso lhe dá força para suportar a luta. E assim, o ponto de vista do livro é menos uma questão de teologia e mais um mistério da fé: a nossa relação existencial com Deus.
JÓ COM RETIDÃO A MEU RESPEITO
Esta poderosa e irônica afirmação do Senhor (42,7s) nos coloca diante de outro aspecto. Ao longo de todo o livro, a chave era o que Jó diria em meio às adversidades. Irá blasfemar flagrantemente contra Deus como Satanás havia predito duas vezes? (1.11, 2.5). Não! Jó acusa seus amigos de falarem falsamente de Deus (13,7-9), enquanto ele recusa ser silenciado (7,11; 10,1; 13,13; 27,4) até que tenha dito tudo o que tinha a dizer (31,35). Para neutralizar os desafios de Satanás no prólogo, o Senhor afirma duas vezes, no epílogo, que Jó havia falado corretamente a seu respeito (42,7s). O que se pode entender por «corretamente»? Gramaticalmente, a palavra pode ser usada como advérbio (de maneira correta) ou como substantivo (coisas justas). O sentido do texto se estende aos dois significados. Em primeiro lugar, Jó falou de maneira adequada. Ele lamentou, discutiu, chegou mesmo a desafiar a Deus. Apesar da constante pressão contrária, manteve firmemente a integridade de sua experiência, pois era tudo o que lhe restava. A Deus não se serve com mentiras, por mais bem intencionadas (13,7-9). Jó sabe instintivamente que toda a sã relação com Deus só pode ser baseada na verdade. Porém, em segundo lugar, Jó também falou «coisas justas»", isto é, foi capaz de intuir e afirmar a presença de um mistério. Deus e nossa relação com ele são realidades por demasiado grandes e profundas para serem reduzidas ou abarcadas pela razão humana. Os discursos do Senhor (38-41) deixaram isso bem claro. E Jó, envolto na experiência do mistério, deixou espaço para a liberdade de Deus. Os amigos, pelo contrário, não acolheram o mistério, por isso falsearam a Deus e a Jó. Caíram no permanente perigo de muitos pseudo-religiosos, de ontem e de hoje: buscar no passado todas as referências sobre Deus, sem perceber que o Deus bíblico está sempre nos surpreendendo e impulsionando para a novidade do futuro (cf. Gn 12 1-3). É nessa fronteira misteriosa da novidade e da surpresa o lugar onde Deus esperava por seu amigo, e seu amigo não falhou. Jó falou de sua experiência pessoal (Mistério) com honestidade e justiça, e por causa disso foi capaz de falar de Deus da mesma forma. Em suma, Jó se comportou como um homem de fé. Seus amigos se revelaram pessoas apenas superficialmente piedosas.
O SIGNIFICADO DA AMIZADE
Uma dimensão final do livro é o papel e a valor da amizade. Em primeiro lugar, está o exemplo negativo dos amigos. Movidos por uma genuína simpatia, deixam suas terras distantes e vem para estar junto de Jó. Vendo o amigo naquelas condições, sentam-se ao seu lado e compartilham do atormentado (e sábio, 13.5) silêncio. Mas, tão logo Jó começa a falar, suas palavras soam tão ofensivas que seus amigos mostram-se prontos a sair em defesa de Deus. Cabe a pergunta: seria mesmo em defesa de Deus ou de suas ideias preconcebidas a respeito de Deus? Mesmo nas condições mais extremas, um amigo deve lealdade a seus amigos (6,14). Jó lamenta não encontra-la nos seus (6,13-27), e, por isso, anseia por alguém em quem se apoiar; primeiro, um juiz imparcial (9.33); depois, um mediador (16,19); finalmente um defensor (19,25). Mas não pode contar com ninguém. «Tornei-me irmão dos chacais e companheiro dos avestruzes. (30,29). Pelo contrário, Jó sempre se comportou como um amigo para os necessitados e oprimidos e perdoou as penas dos outros (30,24s). Sofar de Naamã havia dito anteriormente que se arrependera; e assim alcançaria a prosperidade, e os outros viriam a ele pedindo-lhe sua intercessão (11,19). No final (42,7-9) são os três amigos que vêm a Jó pedindo-lhe que interceda por eles. E Jó o faz em fidelidade à verdadeira amizade, evitando assim o castigo que tinham merecido. A importante mensagem que o livro de Jó nos traz diz respeito a experiência humana desses tempos remotos. Na pessoa de Jó vemos refletidos nossas próprias experiências de sofrimento, dúvidas e conflitos. Mas a vantagem que temos sobre o nosso herói é que nós podemos contar com um amigo: o autor do livro, por cuja boca fala-nos o verdadeiro amigo que está sempre do nosso lado e cuja lealdade nunca falha: Deus. A voz do autor, eco da voz de Deus, constitui parte da sabedoria que temos recebido das «gerações passadas» (8,8). Se nos rendemos à «ortodoxia» dos nossos tempos, falseamos nossa experiência e, por conseguinte, também a Deus; e «a Deus não se serve com mentiras» (13,6-9).
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