Ele, no entanto, perdeu muito cedo a própria
família: a mãe aos 9 anos, o irmão aos 12 e o pai aos 21. Um futuro Papa a sós
no mundo, mas nunca sozinho.
Neste 18 de maio de 2020, celebramos o
centenário de nascimento de São João Paulo II, o “Papa da família”, como foi
descrito no dia da sua canonização pelo Papa Francisco.
De fato, a família foi a instituição mais
apaixonadamente defendida pelo pontífice polonês, a ponto de ele ter chegado a
declarar:
“Em torno da família se trava o combate fundamental
da dignidade do homem”.
O amor do Papa Wojtyła pela família vinha de casa.
Os seus pais, aliás, acabam de ter aberta, na Polônia, a fase diocesana do seu
processo de beatificação.
E é sobre essa família polonesa e católica,
sofrida, mas cheia de fé, esperança e amor cristão, que nos fala um artigo
especial assinado no Vatican News por
Alessandro Gisotti, vice-diretor editorial dos meios de comunicação da Santa
Sé.
Gisotti observa que basta ler os dados biográficos
básicos da mãe, Emilia, e do pai, Karol, de quem herdou o nome, para se
compreender o quanto o testemunho deles influenciou profundamente a
personalidade do futuro pontífice, nascido na pequena cidade de Wadowice, no
extremo sul da Polônia, em 18 de maio de 1920.
A mãe
“Sobre o teu túmulo branco florescem as flores
brancas da vida. Ah, quantos anos já se foram sem você, quantos anos?”.
Essas palavras tocantes, dedicadas à mãe, foram
escritas por Wojtyła em Cracóvia na primavera de 1939. O futuro Papa tinha
então 19 anos e já fazia uma década que havia perdido a mãe, quando era apenas
um garotinho de 9 anos de idade. Emilia, de saúde muito frágil, tinha vivido
uma gravidez muito difícil, que, aliás, os médicos a tinham desaconselhado de
levar adiante, e, desde então, passou os 9 anos seguintes entre internações e o
progressivo enfraquecimento que a levou desta vida.
Vem do amor materno, inegavelmente, boa parte da
profunda sensibilidade de Wojtyła na defesa enfática da vida humana mais
frágil, desde a concepção até a morte natural. Foi ele, não custa lembrar, quem
beatificou em 1995 e depois canonizou em 2004 a médica e mãe italiana Gianna Beretta Molla, que, para proteger a
vida do seu filho nascituro, não hesitou em sacrificar a própria, recusando-se
também ela a abortar.
Não admira que os cidadãos de Wadowice tenham
dedicado a Emilia Kaczorowska Wojtyła uma obra em prol das mulheres que, mesmo
no meio de muitas dificuldades, escolheram proteger o fruto da sua maternidade:
a Casa da Mãe Sozinha. Em visita à sua terra natal em junho de 1999, João Paulo
II declarou sobre essa obra:
“Sou grato por esse grande dom do amor de vocês
pelo homem e da solicitude de vocês pela vida. A minha gratidão é tanto maior
porque esta casa é dedicada à minha mãe, Emilia. Acredito que aquela que me
colocou no mundo e envolveu de amor a minha infância cuidará também desta
obra”.
O irmão
Três anos depois da morte precoce da mãe, outro
luto comoveria os Wojtyła: a trágica morte de Edmund, o irmão maior a quem
Karol tanto amava e admirava. Médico, Edmund foi arrancado deste mundo com
apenas 26 anos, em 1932, porque cuidou de uma jovem doente de escarlatina, uma
doença infectocontagiosa aguda, provocada por bactéria, contra a qual não
existia vacina na época. Edmund sabia dos riscos, mas, como o Bom Samaritano,
priorizou o socorro ao próximo que precisava dele. É uma figura excepcional a
ser lembrada neste período de particular heroísmo de tantos médicos e
profissionais da saúde que comprometem a própria vida para cuidar dos enfermos
de covid-19.
Muitos anos mais tarde, o futuro Papa contaria que
a morte do irmão foi um choque profundo, tanto pelas circunstâncias dramáticas
em que aconteceu quanto porque ele próprio, Karol, já tinha muito mais
consciência da morte do que quando tinha perdido a mãe, na infância. A memória
de Karol Wojtyła gravaria para sempre o exemplo do irmão, “mártir do dever”:
era Edmund quem mais o encorajava nos estudos; tinha sido Edmund quem o ensinou
a jogar bola; era Edmund, junto com o pai, quem cuidava do caçula depois da
morte da mãe.
O pai
Karol tinha apenas 12 anos e já tinha perdido a mãe
e o irmão. Restava-lhe, porém, o amado pai, o Karol que lhe dera o seu mesmo
nome, um militar de carreira do exército polonês, bom e rigoroso, de fé
inabalável apesar das tragédias pessoais, familiares e nacionais. O Karol pai
acompanharia o Karol filho até a idade adulta, ajudando a consolidar a sua
personalidade e a gerir a própria conduta com base na honestidade, no
patriotismo, no amor à Virgem Maria e em outras virtudes humanas e espirituais
que se tornariam para ele um “segundo DNA”.
Quando já era Papa, em conversa com o amigo
jornalista André Frossard, São João Paulo II testemunhou:
“Meu pai foi admirável. E quase todas as minhas
recordações de infância e de adolescência se referem a ele”.
O Papa declarou, ainda, que os muitos sofrimentos
vividos tão cedo não fecharam seu pai em si mesmo, mas abriram nele “imensas
profundezas espirituais”:
“A dor dele se transformava em oração. O simples
fato de vê-lo se ajoelhar teve uma influência decisiva nos meus anos jovens”.
A influência do pai se estendeu também à vocação
sacerdotal do filho. Em seu livro autobiográfico “Dom e Mistério”, publicado no
seu aniversário de 50 anos de sacerdócio, o Papa contou:
“Não falávamos de vocação ao sacerdócio, mas o
exemplo dele foi para mim, de qualquer modo, o primeiro seminário, um tipo de
seminário doméstico”.
São João Paulo II também contou, no
livro-entrevista “Cruzando o Limiar da Esperança”, escrito com o jornalista
italiano Vittorio Messori em 1994, que o pai lhe tinha recomendado uma
particular oração ao Espírito Santo:
“Ele me disse para rezá-la diariamente. E, desde
aquele dia, procuro fazer isso. Foi assim que eu entendi pela primeira vez o
que significam as palavras de Cristo à samaritana sobre os verdadeiros adoradores
de Deus, ou seja, sobre aqueles que O adoram em espírito e verdade”.
Os anos da maturidade são decisivos para a sua
confiança total no Senhor e na Mãe Santíssima. Karol filho e Karol pai vivem em
Cracóvia, onde o jovem estuda na universidade, quando irrompe a ocupação
nazista. Os sofrimentos da família se entrelaçam e se fundem com os da pátria
polonesa, tornando-se um só.
Aos 21 anos, o futuro Pontífice perde também o pai,
que morre na fria noite de inverno de 18 de fevereiro de 1941, talvez o dia mais
doloroso da sua vida.
Um jovem futuro Papa a sós no mundo, mas nunca
sozinho
Karol Wojtyła parece ter ficado sozinho no mundo.
Na verdade, ele ficou a sós em termos de ausência física dos pais e do irmão,
mas, sozinho, ele nunca esteve. Ele sabia que existe uma Esperança que nenhuma
doença e nem sequer a morte podem vencer. Ele o sabia justamente por causa do
amor e do exemplo dos pais e do irmão, aqueles “santos da porta ao lado”, como
diria o Papa Francisco. Santos do dia-a-dia.
Ao longo do caminho da sua existência, do seu
peregrinar pelo mundo anunciando o Evangelho, Karol Wojtyła sempre manteve a
família consigo. Assim como sua mãe, ele defendeu a vida corajosamente. Assim
como seu irmão, ele se doou ao próximo até o fim. Assim como seu pai, ele não
teve medo, porque abriu, ou melhor, escancarou as portas para Cristo.
Neste 18 de maio de 2020, marcado mundialmente pela
pandemia de covid-19, a celebração dos 100 anos do nascimento de São João Paulo
II é um lembrete de que sempre podemos cruzar o limiar da esperança.
“Não tenham medo! Abram, ou melhor, escancarem as
portas para Cristo!” (São João Paulo II,
discurso de inauguração do pontificado, 22 de outubro de 1978).
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A partir de artigo de Alessandro Gisotti no Vatican News
Aleteia
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