Shutterstock |
“Os Filhos dos Homens” simboliza o pesadelo de um mundo que não consegue mais reproduzir-se.
A trama, escrita em 1971, se passa num futuro que então parecia longínquo, mas que já está a menos de cinco meses de distância de nós: o ano de 2021. Na história, o Reino Unido sofre um período tão dramático de infertilidade masculina que o último bebê nasceu há 25 anos e, portanto, já é um adulto num país que não tem mais crianças. Nenhuma criança.
Distopias à parte, o fato do mundo real de 2020 é que a produção de espermatozoides pelos homens de grande parte do Ocidente caiu 59,3% entre 1971 e 2011. Os dados, publicados pela revista Human Reproduction Update, vêm de uma pesquisa realizada por um grupo de investigadores da Dinamarca, da Espanha, do Brasil, dos Estados Unidos e de Israel. O estudo se refere à realidade de Europa, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia.
A professora de Sociologia Anne Hendershott, do Centro Veritas para Ética na Vida Pública, da Universidade Franciscana de Steubenville, em Ohio, nos EUA, comentou a pesquisa em artigo publicado pelo site The Catholic Thing em agosto de 2017.
Ela observa que, na Revolução Industrial do século XIX, os homens estavam sujeitos a riscos sanitários muito maiores do que hoje, mas os problemas de fertilidade eram muito menores. Por que as grandes melhoras no acesso a serviços de saúde em nossos tempos convivem com o paradoxo de que a fertilidade masculina sofreu tamanha diminuição? Poluição e pesticidas, estresse e maus hábitos alimentares, cigarro e obesidade, tudo isso tem sido associado ao fenômeno. Entretanto, constata Hendershott, há hoje muito menos fumantes nessas regiões do Ocidente em comparação com 1971, além de muito mais controle do governo sobre os níveis de poluição e sobre o uso de pesticidas. A obesidade poderia ser um fator plausível, mas a ciência ainda não estabeleceu nenhuma correlação taxativa entre esse quadro e a infertilidade. No tocante à dieta, uma pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de Loma Linda estudou durante 4 anos um grupo de vegetarianos estritos e constatou que a sua média de contagem e mobilidade de espermatozoides é significativamente mais baixa que a dos carnívoros, mas, como quer que seja, o vegetarianismo é minoritário entre os homens da atualidade e, portanto, não pode ser uma causa generalizável da diminuição geral dos níveis de fertilidade masculina.
Então onde é que estão as causas desse declínio?
A trama distópica de P. D. James nos pinta um mundo sob as garras de um governo totalitário em que os valores cristãos foram praticamente extintos, assim como a própria fé. Numa sociedade em que animais de estimação substituem crianças, a Igreja anglicana realiza batismos para bichos de estimação na inane tentativa de continuar existindo, ainda que apenas para executar ritos já vazios de significado. Até o sexo se tornou “o menos importante dos prazeres sensoriais do homem”, o que leva o governo a tentar estimular o desejo sexual mediante profusão de lojas de pornografia, mas sem muito resultado. Boa parte das pessoas ainda se casam, cada vez mais com parceiros do mesmo sexo; nada, porém, parece indicar que os nascimentos vão retomar a normalidade.
A professora Anne Hendershott comenta:
“O romance de P. D. James descreve uma sociedade que conseguiu precisamente aquilo que queria: prazer sexual sem risco de gravidez. Mas a ironia é que, não havendo possibilidade de procriação, o sexo perde o seu sentido. É um fato que enfrentamos cada vez mais hoje, enquanto debatemos se o Estado deve obrigar todos os contribuintes, incluindo aqueles que têm objecções religiosas, a pagar pelos ‘direitos reprodutivos’ de todas as mulheres, numa época em que existem cada vez mais preocupações com a infertilidade masculina”.
A fertilidade humana, destaca ela, tem de ser vista a partir de uma perspectiva cultural, considerando-se que a cultura é a concepção de vida que caracteriza cada sociedade humana, com os valores partilhados e os comportamentos aceitos. Logo, para se compreenderem as taxas de fertilidade e a diminuição da população, é preciso identificar e modificar as influências culturais.
A cultura pode modificar até a atividade sexual, estabelecendo os tipos de relação entre o sexo e a reprodução. Se a chegada de uma criança é desvalorizada, o ato sexual que gera a criança também se desvaloriza. A professora aponta, como exemplo, que os níveis de fertilidade masculina estão em queda no Ocidente, mas não na África.
O impacto cultural sobre a fertilidade de uma sociedade já era destacado na encíclica Humanae Vitae, publicada pelo Papa São Paulo VI em julho de 1968:
“O problema da natalidade, como de resto qualquer outro problema que diga respeito à vida humana, deve ser considerado numa perspectiva que transcenda as vistas parciais – sejam elas de ordem biológica, psicológica, demográfica ou sociológica – à luz da visão integral do homem e da sua vocação, não só natural e terrena, mas também sobrenatural e eterna”.
Anne Hendershott prossegue:
“Talvez seja a hora de considerar a sociologia em torno da cultura de ‘direitos reprodutivos’ que criamos – a cultura de contracepção que o Ocidente abraçou. Temos que nos questionar sobre o eventual custo psíquico de uma cultura em que a contracepção e o aborto são de tal forma importantes que o ObamaCare procurou obrigar todos os empregadores – incluindo instituições religiosas – a fornecerem planos de saúde aos seus funcionários que incluíam a cobertura a medicamentos contraceptivos e abortivos”.
Após observar que a diminuição da fertilidade começou a ser registrada mais nitidamente a partir de 1971, com o surgimento da pílula contraceptiva e a liberalização do aborto nos Estados Unidos, a professora finaliza o seu artigo perguntando:
“Será que há um preço psíquico a pagar quando começamos a partir do princípio de que podemos controlar todos os aspectos da nossa vida? Será que chegamos a sobrecontrolar a nossa própria fertilidade?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário