George Florovsky | ECCLESIA |
A Catolicidade da Igreja
Trad.: Pe. Pedro Oliveira Junior
5. O sagrado e o histórico
A Igreja é a unidade da vida carismática. A fonte dessa unidade está encoberta no sacramento da Ultima Ceia do Senhor e no sacramento de Pentecostes, essa descida única do Espírito Santo no mundo. Por isso a Igreja é uma Igreja apostólica. Ela foi criada e selada pelo Espírito Santo nos doze apóstolos, e a sucessão apostólica é uma viva e misteriosa costura unindo o todo da histórica plenitude da vida da Igreja no todo católico. Aqui, de novo, nós vemos dois lados: o lado objetivo é a ininterrupta sucessão sacramental, a continuidade da hierarquia. O Espírito Santo não desceu sobre a terra de novo e de novo, mas habita na Igreja "visível" e histórica. E, é na Igreja que Ele sopra e envia seus raios. Aí está a plenitude e catolicidade do Pentecostes. O lado subjetivo é lealdade à Tradição apostólica: uma vida consumida de acordo com essa Tradição, como num vivo reino da verdade. Essa é a demanda fundamental ou postulado do pensamento ortodoxo; e aqui, mais uma vez, essa demanda inclui a negação do separatismo individualista; ela insiste na catolicidade. A natureza católica da Igreja é vista mais vividamente no fato de que a experiência da Igreja pertence a todos os tempos. Na vida e existência da Igreja o tempo é misteriosamente suplantado e dominado, o tempo, por assim dizer, fica parado. Ele fica parado não só porque existe o poder da memória ou da imaginação, que podem "voar sobre a dupla barreira de tempo e espaço"; ele fica parado por conta do poder da Graça, que junta em unidade católica de vida aquilo que tornou-se separado pelos muros constituídos no correr dos tempos. Unidade no Espírito Santo engloba, numa maneira misteriosa de conquista do tempo, os fiéis de todas as gerações.
Essa unidade conquistadora do tempo é manifestada e revelada na experiência da Igreja, especialmente em sua experiência eucarística. A Igreja é a viva imagem da eternidade no tempo. A experiência e vida da Igreja não são interrompidas ou quebradas pelo tempo. Isso também não é só por causa da continuidade do jorro de graça supra-pessoal, mas pela inclusão de tudo o que foi, na misteriosa plenitude do presente. Por isso, a história da Igreja nos dá não só as sucessivas mudanças, mas também identidade. Nesse sentido, Comunhão com os Cantos é uma conamunio sanctorum. A Igreja sabe que é uma unidade de todos os tempos e, como tal, ela constrói a sua vida. Por isso a Igreja pensa no passado não como em algo que não é mais, mas como algo que foi cumprido, realizado, como algo existente na plenitude católica do uno Corpo de Cristo. A Tradição reflete essa vitória sobre o tempo. Aprender da Tradição, ou ainda melhor, na Tradição, é aprender da plenitude dessa experiência conquistadora do tempo da Igreja, uma experiência que todo membro da Igreja deve aprender a conhecer e possuir de acordo com a estatura de sua humanidade espiritual; de acordo com a medida do seu desenvolvimento católico. Isso significa que podemos aprender da História assim como podemos aprender da Revelação. Lealdade à Tradição não significa lealdade a tempos passados e a autoridade externa; é uma conexão viva com a plenitude da experiência da Igreja. Referência à Tradição não é uma investigação do passado. A Tradição náo é limitada à arqueologia da Igreja e, não é um testemunho externo que pode ser aceito por alguém de fora. Só a Igreja é a testemunha viva da Tradição; e só de dentro da Igreja é que a Tradição pode ser sentida e aceita como uma certeza. A Tradição é a testemunha do Espírito Santo; a revelação incessante e a pregação de boas coisas pelo Espírito Santo. Para os membros vivos da Igreja não há autoridade histórica externa, mas sim a eterna e contínua voz de Deus - não só a voz do passado, mas a voz da eternidade. A fé procura suas bases, não meramente no exemplo e legado do passado, mas na Graça do Espírito Santo, testemunhando eternamente, agora e sempre, mundo sem fim.
Como Khomyakov admiravelmente coloca, "Nem indivíduos, nem uma multidão de indivíduos dentro da Igreja preserva a Tradição ou escreve as Escrituras, mas o Espírito de Deus que vive no todo do corpo da Igreja (Rússia e a Igreja Inglesa, p. 198). "Concordância com o passado" é só conseqüência da lealdade para com o todo; é simplesmente a expressão da constância da experiência católica no meio dos tempos mutáveis. Para aceitar e compreender a Tradição devemos viver no interior da Igreja, estar conscientes da presença doadora de Graça do Senhor e sentir o sopro do Espírito Santo nela. devemos, na verdade, dizer que quando aceitamos a Tradição, aceitamos, na fé, nosso Senhor que habita no meio dos fiéis; pois a Igreja é seu corpo que não pode ser separado d'Ele. Eis porque lealdade à Tradição significa não só concordância com o passado mas, num certo sentido, libertação do passado, como de algum critério formal exterior.
Tradição não é só um princípio protetor e conservativo; ela é, primariamente, o princípio de crescimento e de regeneração. Tradição não é um princípio empenhado em restaurar o passado, usando o passado como critério para o presente. Tal concepção de Tradição é rejeitada pela própria História e pela consciência da Igreja. Tradição é autoridade para ensinar, potestas magisterii, autoridade para ouvir testemunhos da verdade. A Igreja sustenta o testemunho da verdade não por reminiscência ou pelas palavras dos outros, mas por seu próprio viver, experiência incessante, por sua plenitude católica ... Nisso consiste aquela "Tradição da verdade," traditio veritatis, a respeito da qual Santo Irineu falou. (Adv. Haeres, i. 10, 2) Para ele, a Tradição está ligada com a "verdadeira unção da verdade," charisma veritatis certum" (Ibid, 4. 26,2), e o "ensinamento dos apóstolos" era, para ele, não tanto um exemplo imutável a ser repetido ou imitado, mas uma fonte de vida e inspiração, eternamente viva e inexaurível . A Tradição é a morada constante do Espírito Santo e não só a memória de palavras. A Tradição é um princípio "carismático," não um princípio histórico.
É falso limitar as "fontes de ensinamento" somente às Escrituras e à Tradição e separar Tradição das Escrituras como sendo aquela apenas um testemunho oral ou ensinamento dos apóstolos. Em primeiro lugar, tanto as Escrituras como Tradição foram dadas somente no interior da Igreja. Só na Igreja elas foram recebidas na plenitude de seu sagrado valor e significado. Nelas está contida a verdade da divina Revelação, uma verdade que vive na Igreja. Essa experiência da Igreja não se exaure nem nas Escrituras nem na Tradição, mas nelas se reflete. Por isso, somente na Igreja as Escrituras vivem e se tornam vivificadas, somente dentro da Igreja elas são reveladas como um todo e não partida em textos separados, mandamentos separados e aforismos separados. Isso significa que as Escrituras foram dadas em Tradição, mas não no sentido de que elas só podem ser entendidas de acordo com os ditames da Tradição, ou que são o registro escrito da tradição histórica ou do ensinamento oral. As Escrituras precisam ser explicadas. Elas são reveladas na teologia. Isso só é possível através da experiência viva da Igreja.
Não podemos assegurar que as Escrituras são auto-suficientes; e isso, não porque elas sejam incompletas ou inexatas ou tenham qualquer defeito, mas porque as Escrituras, em sua essência, não clamam por sua auto-suficiência. Podemos dizer que as Escrituras são um esquema ou imagem (eikón), inspirados por Deus, da verdade, mas não a própria Verdade. Estranho o que vai se dizer mas, freqüentemente, limitamos a liberdade da Igreja como um todo em favor da liberdade dos cristãos individuais. Em nome da liberdade individual a liberdade católica, ecumênica da Igreja, é negada e limitada. A liberdade da Igreja é algemada por um abstrato padrão bíblico para libertar as consciências individuais das demandas espirituais forçadas pela experiência da Igreja. Isso é uma negação da catolicidade, uma destruição da consciência católica; esse é o pecado da Reforma. O Deão Inge diz polidamente dos reformadores: "seu credo foi descrito como um retorno ao evangelho com o espírito do Corão" (Rvdo. W. R. Inge, The Platonic Tradition in English Religious Thought, 1926, p. 27).
Se declaramos ser as Escrituras auto-suficientes, só as expomos a interpretações subjetivas e arbitrárias, cortando-as assim de sua fonte sagrada. As Escrituras nos foram dadas em Tradição. É o centro vital e cristalizador. A Igreja, como Corpo de Cristo, coloca-se misticamente primeiro e é mais completa que as Escrituras. Isso não limita as Escrituras ou as põe na sombra. Mas a verdade nos é revelada não só historicamente. Cristo apareceu e ainda aparece para nós não só nas Escrituras; Ele, imutável e incessantemente, revela-se na Igreja em seu próprio Corpo. Nos tempos dos primeiros cristãos os evangelhos ainda não haviam sido escritos e não poderiam ser a única fonte de conhecimento. A Igreja atuava de acordo com o espírito do evangelho e, mais ainda, os evangelhos vieram à luz na Igreja, na santa eucaristia. No Cristo da eucaristia, os cristãos aprenderam a conhecer o Cristo dos evangelhos, e então sua imagem tornou-se vívida para eles.
Isso não significa que opomos as Escrituras à experiência. Pelo contrário, isso significa que nós as unimos da mesma maneira que elas estiveram unidas desde o início. Não devemos pensar que tudo que nós dissemos nega a História. Ao contrário, a História é reconhecida em todo o seu sagrado realismo. Ao contrastar com o testemunho histórico externo, nós não colocamos experiências religiosas subjetivas, não a consciência mística solitária, não a experiência de cristãos isoladamente, mas a experiência integral e livre da Igreja Católica, a experiência católica, e a vida da Igreja. E essa experiência inclui também a memória histórica; ela é cheia de história. Mas essa memória não é só uma reminiscência e uma lembrança de alguns eventos passados. Pelo contrário, ela é uma visão do que é, e do que tem sido realizado, uma visão da mística consciência do tempo e da catolicidade do todo do tempo. A Igreja conhece nada de esquecimento. A experiência doadora de Graça da Igreja torna-se integral em sua plenitude católica.
Essa experiência não se exaure, nem nas Escrituras, nem na tradição oral, nem em definições. Ela não pode, ela não deve, exaurir-se. Ao contrário todas as imagens e palavras devem ser regeneradas em sua experiência de vida espiritual. Essa experiência é a fonte do ensinamento da Igreja. No entanto, nem tudo dentro da Igreja data dos tempos apostólicos. Isso não significa que foi revelado algo que era "desconhecido" pelos apóstolos; tampouco significa que, o que é de data posterior, é menos importante e convincente. Tudo foi dado e revelado completamente desde o início. No dia de Pentecostes a revelação foi completada, e não admitirá ulterior completamento até o Dia do Juízo e sua última realização. A revelação não tem sido ampliada, mesmo o conhecimento não tem aumentado. A Igreja não conhece Cristo agora mais do que O conheceu no tempo dos apóstolos. Mas ela testifica de coisas maiores. Em suas definições ela sempre, imutavelmente, descreve coisas, mas na imagem imutável, novas características se tornam visíveis. Mas a Igreja conhece a Verdade não menos e não de outra forma do que era conhecido nos tempos antigos. A identidade da experiência é lealdade à Tradição. A lealdade à Tradição não impediu os padres da Igreja de "criarem novos nomes" (como São Gregório de Nazianzo diz) quando isso foi necessário para a proteção da fé imutável. Tudo o que fui dito posteriormente, foi dito de dentro da plenitude católica e é de igual valor e força comparado com o que foi pronunciado no início. E ainda agora, a experiência da Igreja não foi exaurida, mas protegida e fixada em dogmas. Mas, há muito do que a Igreja testifica que não está em forma dogmática, mas numa maneira litúrgica, no simbolismo do ritual sacramental, nas figuras de retórica das orações e no estabelecido ciclo anual de comemorações e festas. O testemunho litúrgico é tão válido quanto o testemunho dogmático. O concreto contido num símbolo é, às vezes, ainda mais vivo, claro e expressivo do que qualquer concepção lógica , como testemunha a imagem do Cordeiro tomando sobre si os pecados do mundo.
Errado e não verdadeiro é aquele minimalismo teológico que quer escolher e colocar à parte "as mais importantes, mais certas e mais obrigatórias" de todas as experiências e ensinamentos da Igreja. Esse é um caminho falso, e uma falsa colocação da questão. Por certo, nem tudo nas instituições históricas da Igreja é igualmente importante e venerável; e nem tudo nas ações empíricas da Igreja foi sancionado ainda. Há muito que é somente histórico. No entanto, nós não temos critério externo para discriminar entre os dois. Os métodos de criticismo histórico externo são inadequados e insuficientes. Somente de dentro da Igreja nós podemos discernir o sagrado do histórico. De dentro é que vemos o que é católico e pertence a todos os tempos, e o que é só "opinião teológica," ou até mesmo um simples e casual acidente histórico. Mais importante na vida da Igreja é sua plenitude, sua integridade católica. Há mais liberdade nessa plenitude que nas definições formais de um mínimo forçado nas quais nós perdemos, o que é mais importante - retidão, integridade, catolicidade.
Um dos historiadores da Igreja Russa deu uma definição de muito feliz do caráter único da experiência da Igreja. A Igreja não nos dá um sistema mas uma chave; não os planos da cidade de Deus, mas os meios para entrarmos nela. Talvez alguém perderá seu caminho porque não tem um plano. Mas tudo que ele verá, verá sem um mediador, verá diretamente, e o que vier a ver será real para ele; enquanto aquele que só estudou o plano, arrisca-se a permanecer fora, não encontrando nada (B.M. Melioransky, Lectures on the History of Ancient Christian Churches. The Pilgrim, Russian, 1910, 6, p. 931).
ECCLESIA
Nenhum comentário:
Postar um comentário