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segunda-feira, 28 de setembro de 2020

TEOLOGIA: A Catolicidade da Igreja (Parte 5/8)

Geoege Florovsky | ECCLESIA

A Catolicidade da Igreja

Trad.: Pe. Pedro Oliveira Junior

6. A inadequação do cânon vincentino

A bem conhecida fórmula de Vincente de Lerins é inexata, quando descreve a natureza católica da vida da Igreja nas palavras, Quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est. [O que foi acreditado em todo lugar, sempre e por todos]. Primeiro, não é claro se esse é um critério empírico ou não. E se é assim, então o "cânon vicentino" prova ser inaplicável e bastante falso. Pois a respeito de que omnes ele está falando? É uma exigência para um questionamento geral, universal de todos os fiéis, até mesmo daqueles que só se julgam fiéis? De qualquer modo, todos os fracos e pobres na fé, todos aqueles que duvidam e hesitam, todos aqueles que se rebelam, devem naturalmente ser excluídos. Mas o "cânon vicentino" não nos dá critério, pelo qual distinguir e selecionar. Muitas disputas são levantadas acerca da fé, ainda mais acerca de dogmas. Como, então, devemos entender omnes? Não estaríamos nós provando ser apressados se nos decidíssemos deixar todos os pontos duvidosos para serem decididos pela "liberdade" - in dubiis libertas - de acordo com a velha fórmula bem conhecida erroneamente atribuída a Santo Agostinho? Na verdade não há necessidade de questionamento universal. Muito freqüentemente, a medida da verdade é o testemunho de uma minoria. Pode acontecer que a Igreja Católica venha a se encontrar como um "pequeno rebanho." Talvez existam mais heterodoxos do que ortodoxos em mente. Pode acontecer que os heréticos espalhados por todos lugares, ubique, façam com que a Igreja seja relegada para segundo plano na História, que ela venha a se retirar para o deserto. Na História mais de uma vez, esse foi o caso, e muito possivelmente pode acontecer que mais uma vez seja assim. Falando estritamente, o "cânon vicentino" é alguma coisa de tautológico (redundante). A palavra omnes deve ser entendida como se referindo àqueles que são ortodoxos. Nesse caso o critério perde seu significado. Idem é definido per idem. E, de que eternidade e, de que onipresença essa regra fala? Para que relacionar semper com ubique? É à experiência de fé ou à definição de fé que ela se refere? Se é o segundo caso, então o "cânon vicentino" se torna uma fórmula perigosamente minimizante. Pois nenhuma das definições dogmáticas satisfaz estritamente a demanda de semper e ubique.

Será então necessário limitarmo-nos à letra morta dos escritos Apostólicos? Parece que o "cânon vicentino" é um postulado de simplificação histórica, de um nocivo primitivismo. Isso significa que não devemos procurar por critérios externos e formais de catolicidade; não devemos dissecar catolicidade em universalidade empírica. A tradição carismática é verdadeiramente universal. Em sua plenitude ela engloba todos os tipos de semper e ubique e une todos. Mas empiricamente ela pode não ser aceita por todos. De qualquer maneira não devemos tentar provar a verdade do cristianismo por meio de "consenso universal," per consensum omnium. Em geral, nenhum consensus prova a verdade. Esse seria um caso de agudo psicologismo e, em teologia, há ainda menos espaço para ele do que em filo. Ao contrário, verdade é a medida pela qual podemos avaliar o valor da "opinião geral." A experiência católica pode ser expressa mesmo por poucos, mesmo por confessores individuais da fé. Isso é suficiente. Falando estritamente, para sermos capazes de reconhecer e expressar a verdade católica, nós não precisamos de assembléia ecumênica, universal e voto; nem mesmo precisamos de um "Concílio Ecumênico." A sagrada dignidade dos concílios não esteve no número de membros representando suas igrejas. Um grande concílio "geral" pode acabar provando ser um "concílio de ladrões" (latrocinium), ou mesmo de apóstatas. E a ecclesia sparsa freqüentemente condena esse "concílio geral," por estar convencida de sua nulidade, com uma silenciosa oposição. Numerus Episcoporum não resolve a questão. Os métodos históricos e práticos de reconhecer Tradição sagrada e católica podem ser muitos; o de um Concílio Ecumênico é somente e nada mais do que um deles. Isso não significa que é desnecessário convocar concílios e conferências. Mas pode acontecer que durante o concílio a verdade venha a ser expressada pela minoria. E o que é mais importante: A verdade pode ser revelada mesmo sem um concílio. As opiniões dos padres e dos doutores ecumênicos da Igreja, freqüentemente tem maior valor espiritual e finalidade que as definições de certos concílios. E essas opiniões não necessitam serem verificadas e aceitas por "consenso universal." Ao contrário, são eles próprios que são o critério, e são eles que podem aprovar. É isso que a Igreja testifica em silencioso receptio. O valor decisivo reside na catolicidade interna e não em universalidade empírica. As opiniões dos padres são aceitas, não como uma sujeição formal a uma autoridade externa, mas por causa da evidência interna da verdade católica. O corpo todo da Igreja tem o direito de verificar e, para ser mais exato, o direito, e não só o direito mas o dever de certificar. Foi nesse sentido que, na bem conhecida carta e Encíclica de 1848 os patriarcas orientais escreveram que "o próprio povo" (λαος, laós), isto é, o Corpo da Igreja, "era o guardião da piedade" (υπερασπιοτης της Θρησκειας). E ainda antes disso o metropolita Philaret disse essa mesma coisa no seu catecismo. Em resposta à questão: "Existe um verdadeiro tesouro da sagrada Tradição?" ele diz: "todos os fiéis, unidos pela sagrada Tradição da fé, todos juntos e sucessivamente, são constituídos por Deus em uma Igreja, que é o verdadeiro tesouro da sagrada Tradição, ou para citar as palavras de São Paulo, "A Igreja do Deus vivo, a coluna e firmeza da verdade" (1 Tm 3:15).

A convicção da Igreja Ortodoxa de que o "guardião" da Tradição e piedade é o povo todo, isto é, o Corpo de Cristo, de forma alguma diminui ou limita o poder de ensinar dado à hierarquia. Isso só significa que o poder de ensinar dado à hierarquia é uma das funções da plenitude católica da Igreja; é o poder de testemunhar, de expressar e de falar da fé e da experiência da Igreja, que foi preservado no corpo todo. O ensinamento da hierarquia é, como foi, a boca da Igreja. De omnium fideli ore pendeamus, quia in omnem fidelem Spiritus Dei Spirat. [Nós dependemos da palavra de todos os fiéis, porque o Espírito de Deus assopra em cada um dos fiéis. São Paulino Nolan, epístola 23, 25, M.L. 61 col. 281]. Só para a hierarquia foi dado o ensinar "com autoridade." A hierarquia recebeu esse poder de ensinar, não do povo da Igreja, mas do Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, no sacramento da Ordem. Mas esse ensinamento encontra seus limites na expressão do todo da Igreja. A Igreja é chamada a testemunhar essa experiência, que é uma experiência inexaurível, uma visão espiritual. Um bispo da Igreja, episcopus in ecclesia, deve ser um mestre. Só o bispo recebeu plenos poderes e autoridade para falar em nome do seu rebanho. Esse recebe o direito de falar através do bispo. Mas para fazer isso o bispo deve conter a Igreja em si; ele deve tornar manifesta sua experiência e sua fé. Ele deve falar não de si mesmo, mas em nome da Igreja, ex consensu ecclesiae. Isto é justamente o contrário da fórmula do Vaticano: ex sese, non autem ex consensu ecclesiae. [De si próprio, mas não do consenso da Igreja].

Não é do seu rebanho que o bispo recebe o pleno poder para ensinar, mas de Cristo através da sucessão apostólica. Mas o pleno poder foi dado a ele para sustentar o testemunho da experiência católica do corpo da Igreja. Ele é limitado por essa experiência e, portanto, em questões de fé, o povo deve julgar da acordo com o ensinamento dele. O dever de obediência cessa quando o bispo desvia-se da norma católica e o povo tem o direito de acusá-lo e até mesmo depô-lo. (Para alguns detalhes a mais, ver meus artigos: "The Work of the Holy Spirit in Revelation," The Christian East, 5.13, No. 2, 1932, e o "The Sacrament of Pentecost," The Journal of the Fellowship of St Alban e St. Sergius, No 23, Março de 1934).

Ecclesia

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF