Cardeal Odílio Scherer |
Ter
religião é parte da vivência humana e das suas expressões culturais. Há muitas
formas de religião e religiosidade, por meio das quais o homem se relaciona com
a transcendência. Se a religião é, contudo, uma manifestação humana importante,
na visão cristã, não basta ter religião e religiosidade, mas importa vivê-las
de maneira correta.
Cardeal Odilo Pedro Scherer, arcebispo
metropolitano de São Paulo
Algum modo de viver a religião se expressa na
tentativa de tomar posse do divino para manipulá-lo e servir-se dele, ao
bel-prazer do homem. De certa maneira, essa seria a expressão do desejo de
submeter Deus à vontade e aos desejos do homem. Não seria, pois, uma forma
correta de viver a religião, mas, sim, um profundo desrespeito a Deus, e
revelaria a pretensão de estar acima Dele e de mandar Nele. Definitivamente,
isso não pode ser do Seu agrado.
Em outras formas de religiosidade, o homem faz da
religião uma fonte de lucro e de busca de prestígio e vaidades. Nesse caso, a
referência da religiosidade não é o sobrenatural e o divino, mas o ganho
econômico, reduzindo o divino à condição de mercadoria e objeto de transação
comercial. Também essa forma de conceber a religião não pode agradar a Deus, e
a Bíblia deixa claro que Ele rejeita essa forma desrespeitosa de tratá-lo e de
instrumentalizar a religião em vista do lucro material.
Há também formas de religiosidade mediante as quais
o homem tenta submeter seu semelhante a um regime de pavor e dependência, ou de
sujeição fanática. Nesse caso, não se trata de submeter o homem ao poder e à
soberania de Deus, mas do próprio homem. Também essa forma de propor ou viver a
religiosidade seria equivocada e perniciosa, pois não levaria a Deus e acabaria
produzindo uma espécie de ídolo para colocá-lo em Seu lugar e desviaria para o
homem a glória e a sujeição devidas somente a Deus. A verdadeira religiosidade
liberta e dá dignidade ao homem, em vez de escravizá-lo e de tirar a sua
dignidade.
Há ainda formas de religiosidade meramente formais,
reduzidas a ritos exteriores, afirmações intelectuais ou fórmulas cabalísticas,
sem incidência na vida pessoal e social. Os profetas do Antigo Testamento e
Jesus, no Novo Testamento, são muito críticos em relação a tal forma de
religiosidade esquizofrênica e hipócrita. A pretensão de agradar a Deus, sem
acolher os seus desígnios e sem obedecer à sua lei, seria profundamente
equivocada e falsa.
Qual seria, no entender cristão, a forma correta de
viver a religião? Diversos são os elementos da religiosidade bíblico-cristã.
Antes de tudo, o reconhecimento sincero e humilde de Deus e de sua soberania
sobre o mundo e o homem. O homem não é Deus, nem é igual a Deus, e a soberba
humana no trato com o divino e o sobrenatural é das coisas detestáveis diante
de Deus. Por outro lado, fazem parte da religiosidade verdadeira a atitude de
contemplação, a escuta e a perscrutação da sabedoria e da vontade de Deus a
nosso respeito e a respeito do mundo. Essas atitudes levam à adoração e à
acolhida do amor misericordioso de Deus para conosco.
Foi Deus que nos amou primeiro e pensou em nós
antes mesmo de existirmos. O homem não impõe nada a Deus, mas pode perguntar
tudo, quando se deixa envolver de paternidade e familiaridade por Ele. A
religiosidade verdadeira leva à obediência a Deus e a colaborar com alegre zelo
na sua obra, pois Deus dá ao homem essa dignidade extraordinária.
A religião e a religiosidade, segundo a nossa
compreensão cristã, incluem uma referência dupla: Deus e as realidades
sobrenaturais de um lado; o homem e as coisas naturais, de outro. Nossa fé nos
faz olhar para cima, para os lados e ao nosso redor. Como lembra São João, “não
podemos dizer que amamos a Deus, a quem não vemos, se não amamos nosso próximo,
a quem vemos” (cf. 1Jo 4,20). Respeito e amor verdadeiro a Deus, sem respeito e
amor ao próximo, não existe. E isso inclui também o apreço, respeito e cuidado
pela obra de Deus, nossa “casa comum”, como nos lembrou o Papa Francisco na
encíclica Laudato si`. A religião e a religiosidade cristã são confrontadas com
o Deus Criador, que também é o Deus Salvador, que se encarnou e se fez
humanidade, assumindo sobre si a realidade humana para redimi-la. A uma
religiosidade que não incluísse a atenção ao homem faltaria muito para ser
verdadeiramente cristã.
Fonte:
O São Paulo
Arquidiocese de São Paulo
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