George Florovsky | ECCLESIA |
A Catolicidade da Igreja
Trad.: Pe. Pedro Oliveira Junior
9. A nova realidade
O nome grego ekklesia adotado pelos primitivos cristãos para denotar a nova realidade na qual eles tinham consciência de estarem participando, presumia e sugeria uma concepção bem definida do que a Igreja realmente era. Adotada sob a influência óbvia do uso septuaginto, essa palavra acentuava, antes de tudo, a continuidade orgânica das duas promessas divinas. A existência cristã foi concebida na perspectiva sagrada da preparação e realização messiânica (Hb 1:1-2). Uma teologia da História muito definida estava implicada aí. A Igreja era o verdadeiro Israel, o novo povo escolhido de Deus, "A geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido" (1Pe 2,9). Ou melhor, ela, a fiel remanescente, escolhida dentre o antigo povo (Lc 12,32 "pequenino rebanho" parece significar precisamente o "remanescente," reconstituído, redimido e re-consagrado). E, todas as nações da terra, gregos e bárbaros, deveriam ser cooptadas e enxertadas nesse novo povo de Deus pelo chamado de Deus (esse foi o tema principal de São Paulo em Romanos e Gálatas, cf. Ef 2).
Já no Velho Testamento a palavra ekklisía (tradução em grego do hebreu Qahal) implicava numa especial ênfase na fundamental unidade do povo escolhido, concebida como um sagrado todo e essa unidade estava enraizada mais no mistério da divina eleição do que em qualquer característica "natural." Essa ênfase só poderia ser confirmada pela influência suplementar do uso helenístico da palavra ekklisía significando usualmente uma assembléia do povo soberano numa cidade, uma congregação geral de todos cidadãos regulares. Aplicada à nova existência cristã, a palavra manteve sua conotação tradicional. A Igreja era ambos, o povo e a cidade. Uma especial ênfase tem sido posta na unidade orgânica dos cristãos.
O cristianismo desde seu início existiu como uma realidade corporativa, como uma comunidade. Ser cristão significa justamente pertencer à comunidade. Ninguém pode ser cristão por si próprio, como um indivíduo isolado, mas só junto com os "irmãos," em uma "junção" com eles. Unus Christianus-nullus Christianus - (um cristão-nenhum cristão). Convicção pessoal ou mesmo uma regra de vida não faz de alguém um cristão. A existência cristã implica e presume numa incorporação, numa participação como membro da comunidade. Isso tem que ser qualificado imediatamente: na comunidade apostólica, isto é, em comunhão com os doze e com a mensagem deles. A "comunidade" cristã foi reunida e constituída pelo próprio Jesus Cristo "nos dias de sua carne," e foi dada a ela por Ele pelo menos uma constituição provisória pela eleição e indicação dos doze, a quem Ele deu o nome (ou melhor o título) de seus "mensageiros" ou "embaixadores" (ver Lc 6,13: "a quem também deu o nome de apóstolos"). Quanto ao "envio" dos doze não foi só uma missão, mas precisamente uma comissão, para a qual eles foram investidos com um poder (Mc 3,15; Mt 10,1; Lc 9,1). Em todo caso, como as "testemunhas" indicadas do senhor (Lc 24,48; At 1,8) os doze somente foram intituladas a assegurar a continuidade tanto da mensagem cristã quanto da vida em comunidade. Portanto, comunhão com os apóstolos foi uma nota básica da primitiva "Igreja de Deus" em Jerusalém (At 2,42 koinonia).
Cristianismo significa "vida comunitária," uma vida em comum. Os cristãos tem que ver a si próprios como "irmãos" (de fato esse foi um dos seus primeiros nomes), como membros de uma corporação, unidos muito próximos. E, por isso, caridade teve que ser a primeira marca e a primeira prova e também como se fosse o preço desse companheirismo. Estamos autorizados a dizer: O cristianismo é uma comunidade, uma corporação, um companheirismo, uma irmandade, uma "sociedade," coetus fidelium. E, seguramente, como primeira aproximação, tal descrição poderia ser uma ajuda. Mas, obviamente, ela requer uma melhor qualificação, e alguma coisa crucial está faltando nela. Pode-se perguntar: em exatamente o que essa unidade e junção dos muitos está baseada e enraizada? Qual é o poder que traz muitos a se juntarem e permanecerem unidos uns com os outros? É isso meramente um instinto social, algum poder de coesão social, um ímpeto de afeto mútuo, ou qualquer outra atração natural? Está essa unidade baseada simplesmente em unanimidade, em identidade de pontos de vista e convicções? Resumindo, é a comunidade cristã, a Igreja, meramente uma sociedade humana, uma sociedade de homens? Seguramente, a clara evidência do Novo Testamento nos leva a muito além desse nível puramente humano. Os cristãos são unidos não somente entre si mesmos, mas antes de tudo eles são um-em Cristo, e somente essa comunhão com Cristo faz a comunhão dos homens possível n'Ele. O centro da unidade é o Senhor, e o poder que efetua e ordena essa unidade é o Espírito. Os cristãos são constituídos nessa unidade por projeto divino, pela vontade e poder de Deus. A unidade deles vem de cima. Eles são um só em Cristo, como aqueles que renasceram n'Ele, "arraigados e sobre-edificados n'Ele" (Col. 2,7), que por um Espírito foram "batizados formando um Corpo" (1Cor. 12,13). A Igreja de Deus foi estabelecida e constituída por Deus através de Jesus Cristo, Nosso Senhor.: "ela é sua própria criação pela água e pela palavra." Então, não há sociedade humana, mas uma "sociedade divina," não uma comunidade secular, que ainda seria "desse mundo," ainda comensurável como outros grupos humanos, mas uma comunidade sagrada que, extrinsecamente não é "deste mundo," nem "desse tempo," mas do "tempo que há de vir."
Além disso, o próprio Cristo, pertence a essa comunidade, como sua cabeça e não só como seu Senhor e Mestre. Cristo não estava acima ou fora da Igreja. A Igreja está n'Ele. A Igreja não é meramente uma comunidade daqueles que acreditam em Cristo e seguem seus passos ou em seus mandamentos. Ela é comunidade daqueles que habitam, moram n'Ele e em quem Ele próprio está habitando e morando pelo Espírito. Cristãos são colocados à parte, "nascidos de novo", recriados e é dado a eles não só um novo padrão de vida como também um novo princípio: a nova vida no Senhor pelo Espírito. Eles são um "povo peculiar," "o povo da possessão do próprio Deus." O ponto é que a comunidade cristã, a ekklesía, é uma comunidade sacramental: communio in sacris, um "companheirismo em coisas sagradas," isto é, no Espírito Santo, ou até mesmo communio sanctorum (sanctorum sendo tomado como neutro e não como masculino talvez esse fosse o significado original da frase). A unidade da Igreja é efetuada através dos sacramentos: batismo e eucaristia são os dois "sacramentos sociais" da Igreja, e neles o verdadeiro significado da "junção" cristã é continuamente revelado e selado. Ou, ainda mais enfaticamente, os sacramentos constituem a Igreja. Só nos sacramentos a comunidade cristã vai além da medida puramente humana e torna-se a Igreja. Por isso, "a correta administração dos sacramentos" pertence à essência da Igreja. Os sacramentos devem de fato, serem recebidos "dignamente", portanto, não podem ser separados do esforço interior e da atitude espiritual dos fiéis. O batismo deve ser precedido por arrependimento e fé. A relação pessoal entre um aspirante e seu Senhor deve ser primeiro estabelecida pelo ouvir e receber do Verbo, a mensagem da salvação. E, de novo, um compromisso de fidelidade à Deus e seu Cristo é um pré-requisito e condição indispensável para a administração do sacramento (O primeiro significado da palavra sacramentum era precisamente "o compromisso" militar). Um catecúmeno já é "listado" entre os irmãos na base de sua fé. O dom batismal é recebido, e mantido por fé e fidelidade, pela firme permanência na fé e nas promessas. E, além disso, os sacramentos não são meramente sinais da fé professada, mas efetivos sinais da Graça salvadora, não só símbolos de aspiração e lealdade humanas, mas os símbolos exteriores da ação divina. Neles a nossa existência é ligada, ou melhor elevada para, a Vida divina, pelo Espírito, o doador de Vida.
A Igreja como um todo é uma comunidade sagrada (ou consagrada), distinguida por isso do "mundo (profano)." Ela é a santa Igreja. São Paulo, obviamente, usa os termos "Igreja" e "santos" como co-extensivos e sinônimos. É notável que no Novo Testamento a palavra "santo" é quase que exclusivamente usada no plural e, santidade sendo social no seu significado intrínseco. Pois o nome não se refere a nenhuma conquista humana, mas a um dom, para santificação ou consagração. Santidade vem do Santo, isto é, só de Deus. Ser santo para um homem significa partilhar da Vida divina. A santidade está disponível para indivíduos somente na comunidade, ou melhor "na comunidade do Espírito Santo." A expressão "comunhão dos santos" é um pleonasmo. Só se pode ser um "santo" na comunhão.
Falando estritamente, a comunidade messiânica reunida por Jesus o Cristo, ainda não era a Igreja, antes de sua Paixão e Ressurreição, antes da "promessa do Pai" ser enviada sobre ela sendo assim "legitimada com o poder do alto," "batizada com o Espírito Santo (conforme Lc 24-49 e At 1,4-5), no mistério do Pentecostes. Antes da vitória da Cruz revelada na gloriosa Ressurreição, ela estava ainda sub umbraculo legis (sob a sombra da lei). Era ainda a véspera da realização. E o Pentecostes esteve lá para testemunhar e selar a vitória de Cristo. "O poder do alto" havia entrado na história. O "novo tempo" tinha sido verdadeiramente revelado e iniciado. E a vida sacramental da Igreja é a continuação do Pentecostes.
A descida do Espírito Santo foi uma revelação suprema. Uma vez e para sempre, no "temível e inescrutável mistério" do Pentecostes, o Espírito Consolador entra no mundo no qual Ele não havia ainda estado presente da maneira como agora começa a habitar. Uma fonte abundante de água de vida é revelada naquele dia aqui na terra, no mundo que já tinha sido redimido e reconciliado com Deus pelo Senhor Crucificado e Ressuscitado. O Reino veio, pois o Espírito Santo é o Reino (cf. São Gregório de Nissa, De oratione Dominica 3, MG, 44, c.115f.-1160). Mas a "vinda" do Espírito depende da "ida" do Filho (Jo 16:7). "outro Consolador" vem para testemunhar o Filho, para revelar sua glória e selar sua vitória (Jo 15,26; 16,7 e 14). Na verdade, no Espírito Santo, o próprio Senhor Glorificado vem de volta ou retorna para seu floco para habitar com ele para sempre (Jo 14: 18 e 28) ... Pentecostes foi a consagração mística, o batismo de toda a Igreja. (At 1:5). Esse batismo ardente foi administrado pelo Senhor: Pois Ele batiza "com o Espírito Santo e com fogo" (Mt 3,15 e Lc 3,16). Ele enviou o Espírito da parte do Pai, como uma garantia em nossos corações. O Espírito Santo é o espírito de adoção, em Cristo Jesus, "O poder de Cristo" (2Co 12,9). Pelo Espírito nós reconhecemos e confessamos que Jesus é o Senhor (1Co 12,3). A obra do Espírito nos fiéis é precisamente sua incorporação em Cristo, o batismo em um corpo (1 Co 12,13), o Corpo de Cristo. Como Santo Atanásio expõe: "sendo-nos dado beber do Espírito, nós bebemos Cristo." Pois a pedra era Cristo (Santo Atanásio. Alex. Epist. I ad Seraponiem, M.G. 26. 576).
Pelo Espírito os cristãos são unidos ao Cristo, são constituídos em seu corpo. um só corpo, o de Cristo: essa excelente analogia usada por São Paulo em vários contextos, quando descrevendo o mistério da existência cristã, é ao mesmo tempo a melhor testemunha para a experiência íntima da Igreja apostólica. De maneira nenhuma essa foi uma imagem acidental, mas um sumário de fé e experiência. Com São Paulo, a principal ênfase foi sempre sobre a união íntima dos fiéis com o senhor, em sua participação em sua plenitude. Como São João Crisóstomo apontou, comentando (Col.3:4), em todos os seus escritos São Paulo esteve empenhado em provar que os fiéis " estão em comunhão com Ele em todas as coisas" e, "precisamente para mostrar essa união, refere-se a relação da cabeça e do corpo" (São João Crisóstomo, in Coloss. Hom. 7, MG, 62, 375). É muito provável que a expressão ou o termo tenha sido sugerida pela experiência eucarística (cf. 1 Co 10,17), e tenha sido deliberadamente usada para sugerir sua conotação sacramental. A Igreja de Cristo é una na eucaristia, pois a eucaristia é o próprio Cristo, e Ele sacramentalmente habita na Igreja, que é seu corpo. A Igreja, na verdade, é um corpo, um organismo, muito mais do que uma sociedade ou uma corporação. E talvez um "organismo" seja a melhor interpretação do termo soma, como usado por São Paulo.
Ainda mais, a Igreja é o corpo de Cristo e sua "plenitude." Corpo e plenitude (to soma e to pléroma) - esses dois termos são correlativos e firmemente ligados na mente de São Paulo, um explicando o outro: "Que é o seu corpo, a plenitude d'Aquele que cumpre tudo em todos" (Ef 1,23). A Igreja é o corpo de Cristo porque ela é seu complemento. São João Crisóstomo comenta a idéia Paulina justo nesse sentido. "A Igreja é o complemento do Cristo da mesma maneira pela qual a cabeça completa o corpo e o corpo é completado pela cabeça." Cristo não está sozinho. "Ele preparou todas as raças em comum para segui-Lo, aderir a ele, acompanhar seu séqüito." São João Crisóstomo insiste, "Observem como ele (isto é São Paulo) introduz Cristo como tendo necessidade de todos os seus membros. Isso significa que só então a cabeça estará preenchida, quando o corpo é tornado perfeito, quando estamos todos juntos, co-unidos e atados juntos" (São João Crisóstomo, in Ephes. Hom. 3, MG, 52, 29). Em outras palavras, a Igreja é a extensão e a "plenitude" da santa encarnação, ou melhor da vida encarnada do Filho, "com tudo que foi realizado por nós, a cruz, o sepulcro, a ressurreição ao terceiro dia, a ascensão aos céus, o trono à direita do Pai." (Liturgia de São João Crisóstomo, Oração de Consagração).
A Encarnação está sendo completada na Igreja. E, num certo sentido, a Igreja é o próprio Cristo, em sua plenitude toda-englobante (cf. 1 Co 12:12). Essa identificação foi sugerida e sustentada por Santo Agostinho: "Non solum nor Christianos factos esse, sed Christum" [Não fazer-nos só Cristãos, mas Cristo]. Pois, se Ele é a cabeça, nós somos os membros: o homem todo é Ele e nós-totus homo, ille et nos-Christus et Ecclesia." E de novo: "Pois Cristo não está simplesmente na cabeça e não no corpo, mas Cristo está inteiro na cabeça e no corpo" — "non enim Christus in capite et non in corpore, sed Christus totus in capite et in corpore" (São Agostinho em Evangelium Joannis tract, 21, 8, MG 35, 1568; cf. São João Crisóstomo em I Cor. Hom. 30, MG, 61, 279-283). Esse termo, totus Christu (Agostinho em Evangelium Joannis tr. ML, 38, 1622) é recorrente em Santo Agostinho, essa é sua idéia básica e favorita, sugerida obviamente por São Paulo. "Quando eu falo de cristãos no plural, eu entendo um no Cristo Uno. Vós sois portanto muitos, e vós sois no entanto um: nós somos muitos e nós somos um" — "cum plures Christianos appello, in uno Christiano unum intelligo" (São Agostinho em Ps. 127,3, ML, 37, 1679). "Pois nosso Senhor Jesus Cristo está não só em si próprio, mas também está em nós"- "Dominus enim Jesus non solum in se, sed et in nobis" (Santo Agostinio em Ps 90 enarr. 1, 9. ML 35, 1157). Um Homem até o final dos séculos" — "Unus homo usque ad finem saeculi extenditur" (Santo Agostinho em Ps 85, 5, ML, 37, 1083).
O principal resultado de todas essas afirmações é óbvio. Os cristãos são incorporados em Cristo e Cristo habita neles - essa íntima união constitui o mistério da Igreja. A Igreja é como sempre foi, o lugar e o modo da redentora presença do Senhor Ressuscitado no mundo redimido. "O Corpo de Cristo é o Próprio Cristo. A Igreja é Cristo, pois depois de sua Ressurreição Ele está presente conosco e nos encontra aqui na terra." (A. Nygren, Corpus Christi, em En Bok om Kyrkan, av Svenska teologer, Lund, 1943, p. 20). E, neste sentido, pode-se dizer: Cristo é a Igreja. "Ipse enim est Ecclesia, per sacramentum corporis sui in se ... eam continens" (Santo Hilário em Ps 125, 6, ML, 9, 688). [Pois Ele próprio é a Igreja, contendo-a em si próprio através do sacramento de seu Corpo.] Ou nas palavras de Karl Adam:Cristo, o Senhor, é o próprio Ego da Igreja" (Karl Adam, Das Wesen Katholizisimus, 4 Ausgabe, 1927, p. 24).
A Igreja é a unidade da vida carismática. A fonte dessa unidade está escondida no sacramento da Ceia do Senhor e no mistério do Pentecostes. E o Pentecostes continua na Igreja tornado permanente por meio da sucessão apostólica. Não é só meramente, como foi, o estrutura canônica da Igreja. Ministério (ou "hierarquia") em si é antes de mais nada um principio carismático, um "ministério de sacramentos" ou uma "divina economia." Ministério não é só uma comissão canônica, ele não pertence somente à estrutura institucional da Igreja, mas uma característica constitucional ou estrutural indispensável, exatamente porque a Igreja é um corpo, um organismo. Ministros não são, como foram, "oficiais comissionados" da comunidade, não somente líderes ou delegados das "multidões," do "povo" ou da "congregação" - eles não estão agindo somente in persona ecclesiae. Eles estão agindo primariamente in persona Christi. Eles são representantes do próprio Cristo, não dos fiéis, e neles e através deles, a Cabeça do Corpo, o único Sumo Sacerdote da Nova Aliança, está realizando, continuando e cumprindo Seu eterno serviço pastoral e sacerdotal. Ele é em Si o único verdadeiro Ministro da Igreja. Todos os outros não são mais do que dispenseiros dos seus mistérios. Eles se colocam por Ele, diante da comunidade - e justo porque o Corpo é um somente em sua Cabeça, é trazido junto e para a unidade por Ele e Nele, o Ministério na Igreja é primariamente o Ministério da unidade. No Ministério a unidade orgânica do Corpo é não somente representada ou exibida, mas também enraizada, sem nenhum prejuízo para a "igualdade" dos fiéis, assim como a "igualdade" das células de um organismo não é destruída por suas diferenças estruturais: todas as células são iguais como tais, e no entanto diferenciadas por suas funções, e de novo, essa diferenciação serve à unidade, capacita essa unidade orgânica a tornar-se mais compreensiva e mais íntima. A unidade de cada congregação local brota da unidade na refeição Eucarística. E é como celebrante da Eucaristia que o padre é o ministro e o construtor da unidade da Igreja. Mas há outro e mais elevado ofício: assegurar a unidade universal e católica de toda Igreja no espaço e no tempo. Esse é o ofício e função episcopal. De um lado, o Bispo tem autoridade para ordenar, e novamente esse não é só um privilegio jurisdicional, mas precisamente o poder de ação sacramental além daquele possuído pelo padre. Assim, o Bispo como "ordenador" é o construtor da unidade da Igreja numa escala maior. A Ultima Ceia e o Pentecostes estão inseparavelmente ligados um ao outro. O Espírito Consolador desce quando o Filho foi glorificado em Sua morte e Ressurreição. Mas eles ainda são dois sacramentos (ou mistérios) que não podem ser fundidos um no outro. Do mesmo modo o presbiterado e o episcopado diferem um do outro. No episcopado o Pentecostes torna-se universal e contínuo, no indivisível episcopado da Igreja (episcopatus unus de São Cipriano) e a unidade no espaço é assegurada. De outro lado, através de seu bispo, ou melhor, em seu bispo, toda Igreja particular ou local é incluída na plenitude católica da Igreja e é ligada com o passado e com todos os séculos. Em seu bispo toda Igreja se expande e transcende seus próprios limites e é organicamente ligada às outras. A Sucessão Apostólica não é tanto a canônica mas muito mais a mística base da unidade da Igreja. É alguma coisa outra do que a salvaguarda da continuidade histórica ou da coesão administrativa. É sim um último meio de manter a identidade mística do Corpo através do séculos. Mas, por certo, o Ministério nunca é separado do Corpo. Ele está no Corpo, pertence à estrutura deste. E dons ministeriais são dados dentro da Igreja (cf. 1 Cor. 12).
A concepção paulina do Corpo de Cristo foi tomada e muitas vezes comentada pelos padres, tanto no Oriente quanto no Ocidente e, então, completamente esquecida. (Ver E. Mersch, S.J., Le Corps Mystique du Christ, Etudes de Theologie Historique, 2 vols, 2a edição, Louvain, 1936). Está mais do que na hora de agora retornarmos a essa experiência da Igreja primitiva que pode nos prover com uma sólida base para moderna síntese teológica. Algumas outras metáforas similares foram usadas por São Paulo em outras partes do Novo Testamento, mas muitas com o mesmo propósito e efeito: acentuar a íntima e orgânica unidade entre Cristo e aqueles que são d'Ele. Mas, de todas essas várias imagens, a do Corpo é a mais inclusiva e impressionante e a mais enfática expressão da visão básica (a imagem da noiva e de seu místico casamento com Cristo, Ef. 5:23ss. , expressa a íntima união. Mesmo a imagem da casa construída com muitas pedras, a pedra angular sendo Cristo, Ef. 2:20; cf. 1 Pe. 2:6 tende ao mesmo propósito; muitos estão se tornando um e a casa aparece como se fosse construída com uma só pedra; conforme Hermas's Shephard, Vis. 3, 2, 6, 8. E de novo o "Povo de Deus" é para ser olhado como um todo orgânico. Não há qualquer razão para ficarmos incomodados com a variedade de vocábulos usados. A idéia principal é, obviamente, a mesma em todos os casos). Por certo, nenhuma analogia deve ser forçada excessivamente ou super-enfatizada. A idéia de um organismo, quando usada pela Igreja, tem suas próprias limitações. De um lado a Igreja é composta de pessoas humanas, que nunca podem ser encaradas meramente como elementos ou células do todo, porque cada um está em união direta e imediata com Cristo e com seu Pai. O pessoal não é para ser sacrificado ou dissolvido no corporativo, a "junção" cristã não deve degenerar em impersonalidades. A idéia de um organismo deve ser suplementada pela idéia de uma sinfonia de personalidades, na qual o mistério da Santíssima Trindade é refletido (cf Jo. 17:21 e 23), e isso é o âmago da concepção de "catolicidade" (sobornost, Cf. George Florovsky, "The Catholicity of the Church," acima). Esta é a razão principal pela qual nós deveriamos preferir uma orientação cristológica na teologia da Igreja ao invés de uma orientação pneumatológica (tal como a de Khomiakov ou na obra de Moehler, Die Einheit in der Kirche). Por outro lado, a Igreja, como, um todo, tem seu centro pessoal somente em Cristo, ela não é a encarnação do Espírito Santo, nem meramente uma comunidade do Espírito, mas precisamente o Corpo de Cristo, o Senhor encarnado. Isso salva-nos do impersonalismo sem comprometer-nos com qualquer personificação humanística. Cristo, o Senhor, é a única Cabeça e o único Mestre da Igreja. "Nele todo o edifício bem a justado, cresce para templo santo no Senhor. No qual também vós, sois juntamente edificados para morada de Deus em Espírito (Ef. 2:21-22).
A Cristologia da Igreja não nos conduz a um enevoado de vãs especulações ou misticismo sonhador. Ao contrário, ela assegura o único solo positivo e sólido para pesquisa teológica adequada. A doutrina da Igreja encontra ai seu lugar próprio e orgânico no esquema geral da divina economia da salvação. Pois nós ainda temos que procurar por uma visão compreensiva do mistério da nossa salvação, da salvação do mundo.
Uma última distinção precisa ser feita. A Igreja ainda está em statu viae e, no entanto, já está in statu patriae. Ela tem, como teve, uma dupla vida, "tanto no céu quanto na terra" (cf Santo Agostinho em Evang, Jaonnis tract, 124, 5, ML, 35, 19f, 7). A Igreja é uma sociedade histórica visível e o Corpo de Cristo. É tanto a Igreja dos redimidos como dos miseráveis pecadores. No nível histórico a meta final ainda não foi atingida. Mas a decisiva realidade foi aberta e revelada. Essa realidade decisiva está ainda à mão, é verdadeiramente disponível, apesar da imperfeição histórica e de estar em formas provisórias. Pois a Igreja é uma sociedade sacramental. Sacramental significa nada menos do que "escatológica' e escaton não significa primariamente final, na série temporal de eventos; seu significado é mais decisivo; e o decisivo está sendo realizado dentro da tensão dos acontecimentos e eventos históricos. O que é "não deste mundo" está aqui "neste mundo," não abolindo este mundo, mas dando-lhe novo valor, "trans-valorizando" o mundo como ele era. Seguramente isso é ainda somente uma antecipação, um "indício" da consumação final. No entanto o Espírito habita na Igreja. Isso constitui o mistério da Igreja: uma "sociedade" visível de homens frágeis é um organismo da Graça Divina (ver de Khomiakov o ensaio On the Church; tradução inglesa por W. J. Birkbeck, Russia and the English Church, primeira publicação 1895, cap. 23, pgs 193-222).
FONTE:
Folheto Missionário nP95. Holy Trinity
Orthodox Mission
466 Foothill Blvd, Box 397, La Canada, Ca 91011
Redator: Bispo Alexandre Mileant
Ecclesia
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