Veritatis Splendor |
- Autor: José Miguel Arráiz
- Fonte: http://infocatolica.com/blog/apologeticamundo.php
- Tradução: Carlos Martins Nabeto
“Didaqué” é uma palavra grega que significa “ensinamento”. Daí que o título completo da obra seja “A instrução do Senhor aos gentios através dos Doze Apóstolos” ou, de uma forma mais resumida, “Instruções dos Apóstolos”. É considerada como um dos documentos mais importantes da Igreja primitiva, pertencente ao grupo de escritos dos Padres Apostólicos[1]. Ainda que a data da sua composição não seja conhecida com exatidão, alguns autores opinam que foi escrita, aproximadamente, entre os anos 50 a 70, enquanto que outros a situam entre inícios e meados do século II.
O Batismo
Na Didaqué se encontra informação de valioso interesse apologético, porque são descritas as práticas católicas de batizar, tanto por imersão[2] quanto por infusão[3]:
- “Sobre o batismo, batiza desta maneira: ditas com anterioridade todas estas coisas, batiza em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo em água viva [corrente]. Se não tens água viva, batiza com outra água; se não podes fazê-lo com água fria, faz com quente. Se não tiveres uma nem outra, derrama água na cabeça três vezes, em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Antes do batismo, jejuem o batizante e o batizando, e alguns outros que o possam. Ao batizando, contudo, lhe mandarás jejuar um ou dois dias antes” (Didaqué 7,1-4).
Isto é relevante porque algumas denominações protestantes têm entendido que só é válido o batismo por imersão. Argumentam que a palavra “batismo” é uma romanização (“bapto” ou “baptizo”), cujo significado é “lavar” ou “submergir”, implicando que a forma de batizar deve ser dessa maneira. É por isso que se costuma aplicar o batismo por imersão em comunidades eclesiais protestantes, como as batistas e evangélicas, além de algumas seitas como A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias [mórmons] e os Testemunhas de Jeová. No entanto, o texto da Didaqué demonstra que para os primeiros cristãos o significado da palavra não estabelecia uma maneira fixa para a administração do sacramento, e que este poderia variar de acordo com as circunstâncias[4].
O texto da Didaqué também lança muita luz sobre a antiga polêmica relacionada à fórmula batismal, sobre se na Igreja primitiva se batizava somente em nome de Jesus, como menciona Atos 2,38; 8,16; 10,48; 19,5, ou em nome da Trindade, como Jesus ordena em Mateus 28,19. Isto, porque a Didaqué também faz referência ao batismo “em nome do Senhor” (Didaqué 9), porém, quando indica as palavras a serem empregadas no momento de batizar, diz que deve-se fazer “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”:
- “Que ninguém coma nem beba de vossa ação de graças, senão os batizados em nome do Senhor…” (Didaqué 9).
- “…batizai em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Didaqué 7).
Isto apoia a tese de que, efetivamente, quando na Escritura se faz referência ao batismo “em nome de Jesus”, o que se fazia era uma referência de forma abreviada ao batismo “em nome da Trindade”, diferenciando-o assim de outros batismos como o de João Batista. [Ademais, a presença da fórmula na Didaqué] também descarta a tese de que a fórmula trinitária foi uma interpolação tardia, originada no século IV, tal como supõem algumas seitas que rejeitam a doutrina da Trindade[5].
A forma de orar
No que diz respeito à forma de orar, a Didaqué apresenta instruções muito interessantes de ordem apologética em face às críticas do Protestantismo em relação às “orações pré-fabricadas” católicas. Isto porque ainda que o Protestantismo enxergue tradicionalmente neste tipo de oração uma forma de “oração vã”, [a Didaqué] precisamente ensina aqui a recitar o “Pai Nosso” – certamente uma “oração pré-fabricada” – em contraposição à oração dos hipócritas[6]:
- “Tampouco oreis à maneira dos hipócritas; ao contrário, tal como o Senhor ordenou em seu Evangelho, assim orareis: ‘Pai nosso celeste, santificado seja teu nome, venha teu reino, faça-se tua vontade assim no céu como na terra. O pão nosso de nossa subsistência dai-nos hoje e perdoa-nos nossa dívida, assim como também perdoamos a nossos devedores, e não nos leves à tentação, mas livra-nos do mal. Porque teu é o poder e a glória pelos séculos’. Assim orareis três vezes ao dia” (Didaqué 8,2-3).
A celebração da Eucaristia
Ainda que na Didaqué não encontremos um testemunho explícito a favor da presença real de Cristo na Eucaristia – doutrina católica rejeitada quase que unanimemente pelo Protestantismo – encontramos, porém, um texto que a insinua implicitamente, ao exigir que só possam se aproximar dela os batizados, por ser um alimento sagrado:
- “No tocante à ação de graças, dareis graças desta maneira. Primeiramente, sobre o cálice: ‘Te damos graças, Pai nosso, pela santa vinha de Davi, teu servo, que nos deste a conhecer por meio de Jesus, teu servo. A ti seja a glória pelos séculos’. Depois, sobre o fragmento: ‘Te damos graças, Pai nosso, pela vida e o conhecimento que nos manifestaste por meio de Jesus, teu servo. A ti seja a glória pelos séculos. Como este fragmento estava disperso sobre os montes e, reunido, se fez um, assim seja reunida tua Igreja dos confins da terra em teu Reino. Porque tua é a glória e o poder, por Jesus Cristo, eternamente’. Que ninguém, contudo, coma nem beba da vossa ação de graças senão os batizados no nome do Senhor, pois acerca disso disse o Senhor: ‘Não deis o sagrado aos cães’” (Didaqué 9,1-4).
Muitas denominações cristãs não-católicas, seguindo a Reforma Protestante, têm rejeitado também o caráter sacrificial da Eucaristia, ao ler em Hebreus 9,28 que “Cristo foi oferecido em sacrifício uma só vez, para quitar os pecados de muitos”; por isso, para eles a Missa católica é uma abominação[7]. Na Didaqué, pelo contrário, vemos que os primeiros cristãos enxergavam a Eucaristia como o sacrifício puro e perfeito profetizado pelo profeta Malaquias: “Pois desde o nascer do sol até o poente, grande é meu nome entre as nações e em todo lugar se oferece a meu nome um sacrifício de incenso e uma oblação pura” (Malaquias 1,11).
- “Reunidos a cada dia do Senhor, fracionai o pão e dai graças, …porque este é o sacrifício de que disse o Senhor: ‘Em todo lugar e a todo tempo se me oferece um sacrifício puro, porque eu sou Rei grande – diz o Senhor – e meu nome é admirável entre as nações” (Didaqué 14,1-3).
Cabe ressaltar que a doutrina católica não ensina que Cristo se “ressacrifica” a cada Missa, como assumem muitos protestantes de forma equivocada. O que [a Igreja] ensina é que o único sacrifício de Cristo é apresentado a Deus Pai em cada Eucaristia e, por isso, no Catecismo oficial da Igreja Católica se ensina que “atualiza o único sacrifício de Cristo Salvador” (CIC 1330) e não que “o repete”.
Confissão dos pecados
Em contraposição à prática comum do Protestantismo, onde a pessoa se confessa diretamente com Deus, na Didaqué encontramos um testemunho inicial da disciplina penitencial da Igreja primitiva, que no princípio implicava uma confissão pública dos pecados diante dos presbíteros e da comunidade, tal como se menciona na Sagrada Escritura (Atos 19,18; Tiago 5,16) e cuja forma se desenvolveu paulatinamente até a confissão auricular que conhecemos hoje em dia[8]:
- “Reunidos a cada dia do Senhor, fracionai o pão e dai graças, depois de haver confessado vossos pecados, a fim de que o vosso sacrifício seja puro” (Didaqué 14,1).
A esmola
Encontra-se também uma breve menção à esmola como obra piedosa ordenada pelo Evangelho.
- “No tocante às vossas orações, esmolas e todas as demais ações, as fareis conforme o tens ordenado no Evangelho de Nosso Senhor” (Didaqué 15,4).
Agora, esta esmola se referiria também à contribuição voluntária dos fiéis para o sustento da Igreja e a ajuda dos mais necessitados, mencionada em Romanos 15,26-28; 1Coríntios 16,1; 2Coríntios 8,10? Ainda que o texto não o indique, isto é bastante provável. O que parece ser seguro, também, é a ausência total da prática do dízimo, tal como foi adotada pelo Protestantismo e que é derivada da Lei Mosaica prescrita no Antigo Testamento. A norma cristã refletida na Didaqué é, pelo contrário, a própria norma evangélica onde cada fiel deve contribuir não com exatos 10%, mas “segundo o ditame do seu coração; não de má vontade nem forçado, pois: ‘Deus ama a quem dá com alegria’” (2Coríntios 9,7).
A segunda vinda de Cristo
Conforme se observa na Didaqué, os cristãos da Igreja primitiva pensavam que não era possível prever o momento da segunda vinda de Cristo, tentação esta em que têm caído uma e outra vez numerosas seitas (Adventistas, Testemunhas de Jeová, Crescendo em Graça, etc.). Ao contrário, para os primeiros cristãos, era preciso estar preparado porque ao não saberem nem o dia e nem a hora, o mais prudente era evitar que fossem pegos desprevenidos:
- “Vigiai sobre vossa vida; não se apaguem vossas lanternas, nem descarregai vossos lombos, mas estai preparados, porque não sabeis a hora em que vosso Senhor virá” (Didaqué 16,1-2).
Justificação e Salvação
Quanto à doutrina da justificação, a Didaqué, embora um texto cristão tão breve e antigo, contribui ricamente nesta doutrina. Rejeita, por um lado, e com antecipação, o Pelagianismo, heresia que surgiu formalmente no século V, onde o homem se justifica por seus próprios méritos e não pela graça de Deus mediante a fé:
- “Logo, tampoco nós, que fomos por Sua vontade chamados em Jesus Cristo, nos justificamos por nossos próprios méritos, nem por nossa sabedoria, inteligência e piedade, ou pelas obras que fazemos em santidade de coração, mas pela fé, pela qual o Deus onipotente justificou a todos desde o princípio” (Didaqué 32,4).
Porém, ao mesmo tempo, rejeita antecipadamente a heresia adotada por Lutero e o Protestantismo, onde só a fé basta para salvar-se (“Sola Fides”) mesmo que não esteja acompanhada da obediência aos mandamentos e uma vida conforme à vontade de Deus. Rejeita, ainda, a ideia de que a salvação não pode ser perdida (doutrina protestante que afirma: “uma vez salvo, sempre salvo”), assinalando que de nada serve ter tido fé durante muito tempo se a morte não surpreender o fiel na graça de Deus[9]:
- “Reuni-vos com frequencia, inquirindo o que convém a vossas almas. Porque de nada vos servirá todo o tempo de vossa fé se não estiverdes perfeitos no último momento” (Didaqué 16,2-3).
Você pode ler uma tradução católica (em espanhol) da Didaqué nesta url:
- A Didaqué – http://mercaba.org
Também pode ler a tradução protestante (em espanhol) nesta outra:
- A Didaqué – http://escrituras.tripod.com
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NOTAS:
[1] São conhecidos como Padres Apostólicos aqueles autores do Cristianismo primitivo que tiveram algum contato com um ou mais Apóstolos. São um subconjunto dentro dos Padres da Igreja, que se compõe de escritores do primeiro século e inícios do segundo, cujos escritos têm uma profunda importância para o conhecimento da Fé Cristã primitiva. Caracterizam-se por ser textos descritivos ou normativos, que tratam de explicar a natureza da novidade da doutrina cristã.
[2] O batismo por imersão realiza-se mergulhando totalmente a batizando na água.
[3] O batismo por infusão realiza-se derramando água sobre a cabeça [do batizando].
[4] Da mesma maneira que a Sagrada Escritura observa que a forma de batizar nem sempre pode ser por imersão. A este respeito pode-se mencionar o fato de que São Paulo parece ter sido batizado em uma casa e de pé. Atos 22,16 narra um batismo em Jerusalém, de 3000 pessoas em um mesmo dia e, visto que se trata de uma cidade que não possui nenhum rio, faz-se difícil crer que essa quantidade de pessoas foi mergulhada em algum tanque ou poço de água potável.
[5] Os que argumentam que a fórmula batismal em nome das Três Divinas Pessoas, mencionada em Mateus 28,19, é uma interpolação tardia, buscam apoio nos escritos de Eusébio de Cesareia, historiador da Igreja do século IV, fazendo observar que antes do Concílio de Niceia (ano 325) Eusébio citava Mateus 28,19 escrevendo: “Fazei discípulos a todas as gentes, bautizando-os em meu nome”, e só posteriormente começou a citar o texto como o conhecemos hoje. Isto, no entanto, mais que provar que na Antiguidade se constumava citar a Escritura de forma não-textual, não tem força em relação à evidência documental, já que na totalidade de manuscritos bíblicos existentes (incluindo os mais antigos) lê-se a fórmula completa: “…batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (quanto a isto, leia: “Batismo só em nome de Jesus?”).
[6] No Catolicismo não se crê que uma oração seja vã por ser “pré-fabricada”. Crê-se que quando Jesus adverte que ao orar não se deve “falar muito como os gentios, que se caracterizam por crerem que pelo palavrório serão ouvidos” (Mateus 6,7) não está criticando a repetição em si mesma, já que o próprio Jesus chegou a empregar repetições (Mateus 26,43-44) e as encontramos frequentemente em orações da Sagrada Escritura (Isaías 6,2-3; Daniel 3,52-57; Salmo 136; 150; Apocalipse 4,8; etc.); nem está criticando a oração longa, da qual o próprio Senhor deu exemplo no Getsemani (Mateus 26,39.42.44), permanecendo a noite inteira em oração. Crê-se, ao contrário, que a crítica se refira à forma de orar dos pagãos, que enxergavam a oração como uma espécie de fórmula mágica que, sendo repetida mecânicamente, alcançavam seus objetivos; era o que faziam, por exemplo, os sacerdotes de Baal no Antigo Testamento, com práticas intermináveis na oração (1Reis 18,26) (quanto a isto, consulte o meu livro “Conversas com meus Amigos Evangélicos”, Createspace, 2014, 1ª Edição, p. 170).
[7] Por otro lado, se se lê a Epístola aos Hebreus no seu contexto (capítulos 9 e 10), observa-se que o seu propósito não era rejeitar o caráter sacrificial da Eucaristia, mas admoestar aqueles cristãos, que estranhavam os sacrifícios rituais da Antiga Aliança, a não cair neles e judaizar. O cristão não tem necessidade dos ditos sacrificios, que não eram mais que uma prefiguração do sacrifício Eucarístico.
[8] Ainda que a confissão auricular pôde desenvolver-se em sua forma exterior através do tempo, sua essência, que reside no fato reconhecido da reconciliação do pecador por meio da autoridade da Igreja, se depreende do poder que Cristo outorgou a seus Apóstolos quando lhes disse: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem os retiverdes, eles lhes serão retidos” (João 20,23).
[9] Para mais detalhes a respeito da doutrina católica sobre a justificação, consulte os meus livros “Conversas com meus Amigos Evangélicos”, Createspace, 2014, 1ª Edição, p. 52s) e “Compêndio de Apologética Católica”, Creatspace, 2014, 2ª Edição, p. 205.
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