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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

A caridade e a prosopagnosia

Shutterstock | Hananeko_Studio
por Vitor Roberto Pugliesi Marques

Parece-nos que as máscaras criaram um ambiente de prosopagnosia global sem que ao menos percebêssemos.

Certa vez, estávamos, juntamente com toda equipe multiprofissional em saúde, realizando visita aos leitos dos pacientes como rotineiramente fazemos e uma situação nos chamou a atenção. Ao final da visita, tivemos de ajustar a máscara facial, momento no qual um colega de trabalho fez uma brincadeira dizendo: “Prazer em conhecê-lo sem máscara, creio que não o reconheceria”; caímos ambos em risadas. Esse episódio, todavia, lembrou-nos uma alteração neurológica que é por demais interessante, a chamada prosopagnosia. Também conhecida como agnosia de face ou agnosia facial, trata-se de uma situação clínica na qual um indivíduo apresenta incapacidade em reconhecer faces familiares. Os indivíduos acometidos são incapazes de olhar para rostos de pessoas familiares e dizer de quem se trata, sendo necessários outros estímulos para haver o reconhecimento: por exemplo, a escuta da voz.

Em tempos de pandemia, as máscaras tornaram-se acessório frequente (inclusive obrigatório) nos diversos cenários sociais. Há situações, inclusive, em que praticamente só se tem contato com certa pessoa em uso de máscara. Citamos uma experiência pessoal em que apenas após quase três meses de convivência profissional pudemos ver (e com distância, diga-se de passagem) o rosto de uma enfermeira. Comentei nesse momento que caso a encontrasse na rua e não a cumprimentasse que ela não se ofendesse, pois não iria reconhecê-la. Parece-nos que as máscaras criaram um ambiente de prosopagnosia global sem que ao menos percebêssemos. 

Nesse contexto, podemos extrapolar a reflexão para o campo espiritual. Na primeira epístola de São João, escreve-se que “temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também o seu irmão” (1Jo 4,21). Tais palavras são a retumbância do ensinamento do próprio Senhor que, em suas despedidas, nos exorta: “Amai-vos uns aos outros. Como eu vos tenho amado, assim também vós deveis amar-vos uns aos outros” (Jo 13,34). Nesse amor mútuo, o Senhor nos ensina como viver a verdadeira caridade. Ensina-nos Santo Tomás de Aquino que “por isso o hábito da caridade não só se estende ao amor de Deus, mas também ao próximo” (Summa theologica IIa-IIæ q.25 a.1). Completa ainda o Doutor Angélico nesse mesmo artigo: “por isso, amamos todos os próximos com o mesmo amor de caridade, enquanto referidos a um só bem comum, que é Deus”. Em um sincretismo neurológico-teológico, somos chamados pelo Senhor a reconhecer no nosso próximo o rosto de Cristo. 

Desse modo, o nosso próximo adquire uma “dupla face”: a face de si mesmo e a face do próprio Cristo. Somos assim chamados a negar a “prosopagnosia moderna” que nos leva a olharmos apenas para nós e para os nosso interesses e transportarmo-nos ao outro para acolhê-lo e socorrê-lo, pois nele vemos a face daquele que tanto amamos e tanto desejamos ter por perto: Nosso Senhor e salvador. “São repreensivos os que esperam no homem como autor principal de sua salvação”, alerta-nos, mais uma vez, Santo Tomás de Aquino, “não porém quem o ama por amor de Deus – o que é próprio da caridade” (Summa theologica IIa-IIæ q.25 a.1). Isso nos ensina a Mãe Igreja e isso praticaram nossos santos. Santa Teresa de Calcutá, em um dia de muito calor, recebeu em seus braços uma mulher tomada pela fome e pela doença, raquítica e mal cuidada, tendo o corpo repleto por chagas. Ajudada por suas irmãs começou um trabalho de cuidado delicado para com todo aquele corpo, de modo que sua assistida pergunta: Por que fazes isso? E a santa responde: Porque te quero bem. No coração dessa mulher luminosa certamente pulsava uma resposta tanto àquela mulher quanto a Nosso Senhor, pois só se consegue tamanha virtude quando se quer bem ao Deus que tanto buscamos e tanto honramos. 

Que saibamos, pois, sair da “prosopagnosia espiritual”, a nos impedir de ver a face de Deus no próximo e de praticar a caridade, e pratiquemos “a escola de serviço do Senhor” (RB prólogo 45) na qual exercemos a caridade ao próximo por amor ao Senhor.

Aleteia

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF