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Sem efetuar uma análise exaustiva nem tomar em consideração todos os aspetos da realidade que vivemos, em sua Carta Encíclica “Fratelli Tutti” o Papa Francisco deseja apenas manter-nos atentos a algumas tendências do mundo atual que dificultam o desenvolvimento da fraternidade universal.
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO
No capítulo 1 de sua Carta Encíclica, o Papa Francisco chama atenção para o reacendimento de conflitos “anacrônicos” que se consideravam superados; também fala sobre o ressurgimento de nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. “Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais”, afirma Francisco.
O Papa fala sobre os conflitos locais e o desinteresse pelo bem comum que são, de acordo com ele, instrumentalizados pela economia global para impor um modelo cultural único. “Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações, porque a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos”, salienta.
Francisco afirma ainda que o avanço do globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. “Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos de nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”, diz.
Aqui, ele faz uma asséptica descrição da realidade, pois “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração”.
UM ESTRANHO NO CAMINHO
Com a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos vivendo e antes de propor algumas linhas de ação, o Papa Francisco dedicou o capítulo 2 a uma parábola narrada por Jesus Cristo há dois mil anos: a do Bom Samaritano. “Com efeito, apesar desta encíclica se dirigir a todas as pessoas de boa vontade, independentemente das suas convicções religiosas, a parábola em questão é expressa de tal maneira que qualquer um de nós pode deixar-se interpelar por ela”, afirma Francisco.
A narração da parábola do Bom Samaritano é simples e linear, mas contém toda a dinâmica da luta interior que se verifica na elaboração da identidade; que se verifica em toda a existência projetada na realização da fraternidade humana.
“Enquanto caminhamos, inevitavelmente embatemos no homem ferido. Hoje, há cada vez mais feridos”, afirma o Papa. A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da estrada, segundo Francisco, define todos os projetos econômicos, políticos, sociais e religiosos. “Dia a dia enfrentamos a opção de ser bons samaritanos ou viandantes indiferentes que passam ao largo. E se estendermos o olhar à totalidade da nossa história e ao mundo no seu conjunto, reconheceremos que todos somos, ou fomos, como estas personagens: todos temos algo do ferido, do salteador, daqueles que passam ao largo e do bom samaritano”, salienta Francisco.
Para o Papa, a história do Bom Samaritano repete-se: torna-se cada vez mais evidente que a incúria social e política fazem de muitos lugares do mundo estradas desoladas, onde as disputas internas e internacionais e o saque de oportunidades deixam tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada. “Na sua parábola, Jesus não propõe vias alternativas, como, por exemplo, no caso daquele homem ferido ou de quem o ajudou terem dado espaço nos seus corações ao ódio ou à sede de vingança, que sucederia? Jesus não Se detém nisso. Confia na parte melhor do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor, reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome”, disse.
Especialmente neste capítulo, o Papa Francisco diz sentir-se triste pelo fato de a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, ele afirma não termos desculpas. “Todavia, ainda há aqueles que parecem sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender várias formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até maus-tratos àqueles que são diferentes”.
A fé, segundo Francisco, deve manter vivo um sentido crítico perante estas tendências e ajudar a reagir rapidamente quando começam a insinuar-se. “Para isso, é importante que a catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a todos”, garante.
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO
No Capítulo 3 de sua Encíclica, Francisco fala sobre o segredo da existência humana autêntica, já que “a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a morte”.
O amor que se estende para além das fronteiras, de acordo com ele, está na base daquilo que ele chama de amizade social em cada cidade ou em cada país.
“Se for genuína, esta amizade social dentro duma sociedade é condição para possibilitar uma verdadeira abertura universal. Não se trata daquele falso universalismo de quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade e direitos. Deste modo, nega que haja espaço para todos”, afirma Francisco.
De acordo com ele, para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância. “Se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente que o simples fato de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente. Trata-se de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou não serve os seus objetivos”, argumenta.
Para Francisco todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito fundamental: “Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou cresceu com limitações. De fato, isto não diminui a sua dignidade imensa de pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser. Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade”.
Por fim, o Papa diz que é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar numa humanidade diferente. “É possível desejar um planeta que garanta terra, teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira”, finaliza.
UM CORAÇÃO ABERTO AO MUNDO INTEIRO
No capítulo 4, o Papa Francisco afirma ser nosso dever respeitar o direito que tem todo o ser humano de encontrar um lugar onde possa não apenas satisfazer as necessidades básicas dele e da sua família, mas também realizar-se plenamente como pessoa.
“Os nossos esforços a favor das pessoas migrantes que chegam podem resumir-se em quatro verbos: acolher, proteger, promover e integrar. Com efeito, não se trata de impor do alto programas assistenciais, mas de percorrer unidos um caminho através destas quatro ações, para construir cidades e países que, mesmo conservando as respectivas identidades culturais e religiosas, estejam abertos às diferenças e saibam valorizá-las em nome da fraternidade humana”, disse.
Segundo Francisco a chegada de pessoas diferentes, que provêm dum contexto vital e cultural distinto, transforma-se num dom, porque “as histórias dos migrantes são histórias também de encontro entre pessoas e entre culturas: para as comunidades e as sociedades de chegada são uma oportunidade de enriquecimento e desenvolvimento humano integral para todos”.
Para ele, quando se acolhe com todo o coração a pessoa diferente, permite-se-lhe continuar a ser ela própria, ao mesmo tempo que se lhe dá a possibilidade dum novo desenvolvimento. “As várias culturas, cuja riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas para que o mundo não fique mais pobre. Isso, porém, sem deixar de as estimular a que permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades”, diz.
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