Pio XII com os judeus que escaparam do campo de extermínio |
Foi
lançado o livro “Pio XII e os Judeus” escrito por Johan Ickxx, responsável pelo
Arquivo Histórico da Seção para as Relações com os Estados da Secretaria de
Estado do Vaticano. O autor reconstrói os acontecimentos nos quais o Papa Pio
XII e seus colaboradores foram protagonistas dos anos em que o nazismo
perpetrou o extermínio do povo judeu.
Matteo Luigi Napolitano
Transgredir ordens superiores transforma o antigo
provérbio latino em seu oposto: ubi menor maior cessat. Um exemplo
paradoxal disso pode ser encontrado nos documentos do Vaticano. Durante a
Segunda Guerra Mundial, o governo eslovaco ofereceu a Ján Voitašak, bispo de
Spies que tinha simpatias nazistas, o cargo de Conselheiro de Estado. Para
assumir o cargo, o bispo deveria pedir o consentimento de Pio XII,
mas ao invés disso aceitou fazendo o pedido apenas depois da efetivação. Este é
apenas um dos muitos episódio presentes no livro “Pio XII e os Judeus”, edições
Rizzoli de Milão, escrito por Johan Ickx, Diretor do Arquivo
Histórico da Seção Relações com os Estados da Secretaria de Estado do Vaticano.
O livro abre um novo período de estudos sobre o
pontificado de Pio XII, com uma visão do que Ickx chama de Le Bureau (o
título da edição francesa do livro), que é a primeira seção da Secretaria de
Estado responsável não só pelas relações internacionais, mas também, de forma
cada vez mais densa e dramática, pelas histórias de muitos judeus que durante a
Segunda Guerra Mundial se dirigiram ao Vaticano em busca de ajuda, apoio, conselho
e proteção.
Ajuda aos judeus húngaros
Um primeiro fato se destaca nos documentos: para
Hitler e seus emuladores a conversão ao catolicismo não mudava o sangue judeu;
converter-se para ser considerado "não ariano" não era garantia.
O Bureau sabia destas coisas, e sabia que a Alemanha ostentava
numerosas imitações. A Eslováquia, por exemplo, escolhera o caminho
totalitário: "Batizados ou não - disse inexoravelmente o Ministro Mach -
todos os judeus terão que partir". A pressão alemã induziu então os húngaros
a entregarem aos alemães os judeus que tentaram atravessar a fronteira da
Eslováquia. Os bispos eslovacos escreveram uma denúncia coletiva totalmente
apoiada pelo Papa. Mas, também neste caso, o oposto do antigo provérbio era
válido: "O problema é que o presidente da Eslováquia é um sacerdote",
escreveu Monsenhor Tardini, "todos entendem que a Santa Sé não pode
controlar Hitler. Mas que não possa controlar um sacerdote, quem pode entender
isso?". Ubi menor maior cessat.
Pessoas em fuga
Eram situações muito graves nas quais os membros do
Bureau "podiam fazer muito pouco para punir os culpados". Vemos isso
nos despachos de Monsenhor Burzio, encarregado em Bratislava, em suas conversas
com o Premier Tuka: "Vale a pena continuar a informar a Vossa Eminência a
continuação de minha conversa com uma pessoa demente?”. Portanto as histórias
contadas neste livro devem ser entendidas como histórias de pessoas em fuga,
mas também como histórias de tentativas, feitas com forças humanas e limitações
humanas, para salvar essas vidas em fuga. Assim, é feita justiça a algumas
teses superficiais, mesmo recentes, sobre o anti-semitismo da cúria de Pio XII.
"Judeus"
"Judeus" é o nome da série de documentos
presentes em 170 posições ordenadas alfabeticamente, totalizando cerca de 2800
casos. No Bureau "o Cardeal Maglione tinha o comando geral de ambas as
seções. Não se pode excluir que a outra seção tivesse seu próprio registro ou
sistema de arquivamento, o que significaria que outros arquivos da Santa Sé,
tais como o Arquivo Apostólico, mantivessem material similar referente aos
judeus". A existência da série "judeus", que Ickx chama de
"lista de Pio XII", é "prova tangível do interesse demonstrado
por pessoas que, por causa das leis raciais, não eram consideradas cidadãos
comuns, fossem eles judeus ou judeus batizados".
Não é possível citar aqui todos os "casos
judeus" notificados ao Vaticano. Mas pode-se dizer que os documentos
mostram claramente, como escreve Ickx, que os esforços do Vaticano visavam
"salvar cada ser humano, independentemente da cor ou credo". Dois
episódios muito significativos o comprovam, entre os enumerados pelo autor do
livro.
História da família Ferenczy
O primeiro está no capítulo intitulado “Breve
história” de um caso lastimável. Diz respeito ao casal Oskar e Maria Gerda
Ferenczy, católicos austríacos de origem judaica, que emigraram da Áustria após
o Anschluss. Eles, com sua filha Manon Gertrude, mudaram-se para Zagreb,
assistidos pelo arcebispo da cidade, Dom Stepinac. Mas em 1939 as autoridades
locais, já próximas ao nazismo, enviaram todos os judeus estrangeiros,
convertidos ou não, para a fronteira italiana. Os Ferenczys foram para Abbazia,
na província de Fiume. No auge de sua miséria e desespero, Maria Gerda escreveu
uma primeira carta a Pio XII na qual confessava ter vendido sua Bíblia por um
pedaço de pão, e de sua busca mal sucedida de um passaporte para emigrar. Os
documentos nos informam que Pio XII leu pessoalmente a carta. Mas como ajudar a
mulher e sua família? Ela não havia expressado nenhum desejo. Monsenhor
Dell'Acqua foi encarregado de resolver o “lastimável caso” e o bispo de Fiume,
Dom Camozzo, foi convidado a se interessar pelos Ferenczys.
Visto para o Brasil
Mas situação piorou no final de 1939, quando os
Ferenczys quase foram entregues às autoridades alemãs e deportados para a
Polônia. Maria Gerda escreveu uma segunda carta ao Papa pedindo ajuda para
emigrar. O Bureau mais uma vez fez tentativas solicitando às
autoridades italianas o visto prolongado para os Ferenczys. Inexplicavelmente
dom Camozzo não se manifestou. Com a situação piorando Maria Gerda escreveu
pela terceira vez ao Papa renovando seus apelos. "Do Arquivo
Histórico", informa Ickx, "constata-se que o Bureau não
parou de acompanhar seu caso". Em 7 de agosto, Ferenczy soube pela
Superiora das Irmãs de Nossa Senhora de Sion que havia vistos para disponíveis
para o Brasil no Vaticano. Maria Gerda então suplicou em uma carta ao Papa para
obter vistos para sua família. O assunto chegou novamente à mesa de monsenhor
Dell'Acqua. Enquanto isso, foi enviada uma doação de oitocentas liras aos
Ferenczys para emergências. Mas coube à embaixada brasileira junto à Santa Sé
ter a última palavra sobre os vistos. O Bureau interveio e
finalmente, em 19 de agosto de 1940, o cardeal Maglione pôde anunciar a Maria
Gerda Ferenczy que os vistos haviam sido concedidos. Ainda tiveram um problema
na chegada ao Rio de Janeiro, por causa do visto de Oskar Ferenczy que não era
considerado válido. O capelão do navio telegrafou ao Bureau do
Vaticano e imediatamente foi enviado um comunicado às autoridades brasileiras.
Assim começou uma nova vida para os Ferenczys. O caso é sintomático de
"como os judeus batizados se viram literalmente presos e esmagados entre
suas duas identidades", pois, à medida que as leis raciais se tornaram
mais rigorosas, "a distinção entre judeus e judeus batizados se
perdeu".
Homem comum e menina de oito anos
Outro episódio simbólico está no capítulo
intitulado “Breve história de um homem comum e de uma menina de oito anos”. O
homem comum (é assim que ele gostava de se definir) era Mario Finzi, que
trabalhava na seção de Bolonha do Delasem (Delegação de Assistência aos
Emigrantes Judeus). Em agosto de 1942 Finzi escreveu diretamente a Pio XII,
pedindo-lhe para intervir com a caridade cristã "para salvar uma pobre
criatura de oito anos ameaçada pelo ódio e a ferocidade dos homens".
Tratava-se de Maja Lang, uma menina iugoslava que tinha um irmão de 17 anos,
Wladimir, em prisão domiciliar em uma vila pertencente ao empresário Alfonso Canova,
em Sasso Marconi. Wladimir pedira a Finzi para salvar sua irmãzinha. A família
tinha sido presa na Croácia e a menina, com o visto vencido para permanecer na
Hungria com uma tia, corria o risco de ser levada de volta para a fronteira
croata. Ciente dos riscos que Maja corria, Finzi elaborou um plano que
apresentou diretamente ao Papa: assegurar que a criança chegasse à Itália para
se reunir com seu irmão Wladimir. Mas para conseguir isso era preciso que a
Santa Sé fizesse contato direto com o Ministério das Relações Exteriores
italiano, que poderia passar a legalização a Budapeste. "Santo Padre, sei
que o que ouso pedir-lhe não é pouco - escreveu Finzi a Pio XII - mas agir de
maneira cristã em um mundo que em tão grande parte é a negação de Cristo não é
uma tarefa fácil para os homens comuns". O Vaticano não perdeu tempo.
Tendo recebido as instruções necessárias, em janeiro de 1943 o Padre Tacchi
Venturi conseguiu obter do Ministério do Interior italiano permissão para a
pequena Maja e seus pais entrarem e permanecerem em Sasso Marconi. A ordem das
autoridades italianas parecia chegar a tempo de salvar a vida de toda a
família.
Pio XII: única autoridade capaz de
intervir
Infelizmente, em algum momento não se soube mais do
paradeiro da pequena Maja. Mais tarde descobriu-se que morreu no Campo de
Concentração, de acordo com os arquivos do Yad Vashem. DE qualquer modo",
escreve Ickx, "seu caso lança luz sobre uma perspectiva
interessante", ou seja, que "o doutor Finzi de Bolonha considerou o
Papa Pio XII a única autoridade ainda capaz de intervir com sucesso em um caso
humanitário tão complexo e surpreendente". Mario Finzi, este jovem
"homem comum" com um coração de ouro foi preso e deportado para
Auschwitz, conseguiu ser libertado, mas morreu precocemente de uma doença
contraída no Campo. A família de Maja Lang voltou à Iugoslávia em 1945, e
depois se mudaram para Israel três anos mais tarde. "Junto com os heróis
locais de Sasso Marconi, cuja memória é honrada por Yad Vashem [Alfonso Canova
é "Justo entre as Nações", ed], e com um judeu comum,
Mario Finzi, vítima do terror nazista, Pio XII e o Bureau salvou uma
família".
Este
livro é, portanto, um viático para um novo período de estudos que desmantela
preconceitos ideológicos passados e recentes com a ideia de que Pio XII não
estava ciente. E mostra que o Papa, ao invés, estava no ápice de uma rede de
ajuda aos judeus e refugiados muito complexa, e com contornos muito claros. Um
grande passo, em suma, em direção à "democracia historiográfica"
desejada por muitos.
Vatican News
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