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Diz a Bíblia que Adão e Eva tiveram dois filhos: Caim e Abel. O primeiro matou o segundo; donde surge a pergunta: com quem se casou Caim? – Já houve quem respondesse que se casou com uma jovem proveniente de outro planeta, o que é totalmente preconcebido e infundado.
Uma leitura superficial do texto bíblico fornece a resposta mediata. Com efeito; em Gn 5,4 esta dito que Adão e Eva tiveram muitos filhos e filhas, de modo que Caim tinha com quem se casar, ainda que fosse com uma irmã sua. Eis o teor do texto sagrado:
“Quando Adão completou cento e trinta anos, gerou um filho a sua semelhança, como sua imagem, e lhe deu o nome de Sete. O tempo que viveu Adão depois do nascimento de Sete, foi de oitocentos anos, e gerou filhos e filhas” (Gn 5,3s).
Todavia, se Caim se casou com uma irmã sua (com a autorização do próprio Deus), como se pode condenar o incesto?
Respondemos: na hipótese de Caim ter-se casado com uma irmã sua, não houve violação da natureza nem pecado, pois na primeira geração humana não havia doenças hereditárias a transmitir ou não havia o perigo de acúmulo de taras. Também não havia muitas famílias a se congraçarem, como manda a lei natural. Em consequência não terá sido tal união contrária à lei natural. O mesmo não se dá em nossos dias, quando existem taras hereditárias e se verifica a necessidade de congraçamento entre as famílias, ao contrário do que ocorre em tribos de povos que vão declinando por causa de seu sistema de matrimônios endógenos.
Aproveitamos, porém, a ocasião para chamar a atenção para a exegese mais recente do episódio de Caim e Abel; segundo a moderna interpretação do relato, não se poderia falar de casamento entre irmãos na primeira geração da humanidade. É o que apresentamos sob o titulo seguinte:
Caim e Abel: como entender Gn 4,1-16?
Quem observa este episódio, verifica que supõe um estado adiantado da cultura humana, ou seja, o período neolítico: os homens já domesticavam os animais, de modo que Abel é pastor, e já cultivavam industriosamente a terra, de modo que Caim é agricultor (4,2); Caim funda uma cidade (4,17), tem medo de se encontrar com outros homens (4,14), sabe que haverá um clã pronto para defendê-lo… Diante destes traços literários, os autores propõem duas maneiras de entender o episódio:
1. Fato histórico antigo descrito com roupagem da época posterior. O autor sagrado estaria relatando um fratricídio realmente ocorrido nos inícios da pré-história bíblica, mas teria usado linguagem da época neolítica para tornar-se mais compreendido pelos leitores: Os atores da cena terão sido apresentados como se fossem homens contemporâneos do escritor sagrado. Esta interpretação é aceitável, mas não parece ser a melhor. É preferível a seguinte:
2. Fato meta-histórico ou trans-histórico. Observemos que houve urna tribo dos quenitas ou quineus ou cineus na época de Moisés (séc. XIII a.C.); tinham por patriarca fundador um certo Caim. Leiamos, por exemplo Nm 24,21: “Balaão viu os quenitas e pronunciou o seu poema. Disse: ‘A tua morada está segura, Caim, e o teu ninho firme sobre o rochedo'”; Os quenitas eram nômades (1 Cr 2,55); tinham relações estreitas com Madiã (Nm 10,29; Jz 1,16); ver também 1 Sm 15,4-6; Jz 4,11.17; 5,24. Ora pode-se crer que esse patriarca Caim tenha sido um fratricida famoso; o crime de Caim ocorrido nos tempos de Moisés ou pouco antes terá sido tornado como um fato típico da maldade humana. Por isto autor sagrado haverá colocado esse fato logo no inicio da pré-história bíblica, querendo assim significar, de maneira muito concreta, que, quando o homem diz Não a Deus, passa a dizer Não também ao seu irmão; a fidelidade a Deus e a fidelidade ao próximo são inseparáveis uma da outra; por isto também o Senhor Jesus quis resumir toda a Lei em dois preceitos: o do amor a Deus e o do amor ao próximo (cf. Mt 22,40).
Neste caso não se pode dizer que Caim e Abel foram filhos diretos dos primeiros pais. Nem era a intenção do autor sagrado dizê-lo. Nos onze primeiros capítulos do Gênesis, a Bíblia propõe fatos históricos, sim, dispostos, porém, de maneira a nos fazer compreender o porquê da vocação de Abraão; ela quer mostrar que o primeiro Não dito a Deus desencadeou uma série de outras negações, das quais a primeira é o Não dito ao homem. Segundo tal interpretação, o fratricídio cometido por Caim contra seu irmão Abel é fato histórico, mas um fato que não ocorreu apenas uma vez no século XIII a.C.; ocorre em todas as épocas, a partir da primeira fase da história da humanidade; até hoje há muitos Caíns que matam seus irmãos, como houve também um no inicio da história sagrada.
Quem aceita tal interpretação, já não formula a pergunta tão frequentemente colocada por leitores da Bíblia: com quem se casou Caim, se Adão e Eva só tiveram dois filhos e Caim matou Abel? Se o episódio de Caim e Abel é datado do século XIII a.C., vê-se que não há por que formular a questão; a população humana já se alastrara sobre a terra.
E a Longevidade dos Patriarcas em Gn 5,1-32?
O autor sagrado quis propor a linhagem dos bons; estes tem números, isto é, gozam de ordem e harmonia e estão inscritos no “livro da vida”. Diz o livro da Sabedoria que “o Senhor tudo dispõe conforme número, peso e medida” (Sb 11,20). Não se atribui aos descendentes de Adão e Sete nenhuma obra civilizatória, pois tais obras estavam associadas, na mente do autor, aos impérios pagãos da vizinhança de Israel.
A grande longevidade assinalada a cada patriarca não quer dizer que, na verdade, viviam séculos; mesmo que entendamos os 930 anos de Adão, os 912 de Sete… como anos lunares (um pouco mais breves do que o ano solar), não estaremos atinando com a mensagem do autor sagrado. Para os antigos, a longevidade era sinal de venerabilidade e respeitabilidade; por conseguinte, quando atribuíam a alguém longa duração de vida, queriam apenas dizer que tal pessoa era merecedora de toda estima e consideração. Este modo de falar esta documentado, por exemplo, na tabela dos reis pré-diluvianos que o sacerdote Berosso, da Babilônia, nos deixou:
Aloro reinou 36.000 anos; Alaparo 10.800; Almelon 46.800 anos; Amenon 43.200 anos; Amegalaro 64.800 anos; Amenfsino 36.000 anos; Otiartes 28.800 anos; Daono 36.000 anos; Edoranco 64.800 anos; Xisutro 64.800 anos.
Temos nesta lista dez nomes de reis de elevada longevidade. Também no Egito se encontrou a lista de dez reis que governaram o povo nos seus primórdios; os persas conheciam seus dez Patriarcas; os hindus enumeravam nove descendentes de Brama, com os quais Brama completava uma série de dez gerações pré-diluvianas.
É à luz destes documentos que se deve entender Gn 5,1-32. Os dez nomes significam os homens que transmitiram a fé e a fidelidade aos seus descendentes; visto que a vida é o bem fundamental, uma longa vida, para os antigos hebreus, era símbolo de bênção divina e honrabilidade; a indicação de que cada Patriarca viveu elevado número de anos após gerar o seu sucessor na lista, significa que esses pais do gênero humano tiveram a possibilidade de manter pura na sua família a revelação primitiva; donde se concluía que a religião que por tal via chegara a Israel, era a religião verdadeira, conservada através de urna série de gerações providencialmente favorecidas por Deus.
Em síntese, não se deverá crer que os Patriarcas bíblicos viveram séculos. Ao contrário, sabe-se hoje com certeza que a duração da vida humana na pré-história era muito breve: oscilava entre os 20 e 40 anos, os homens não gozavam dos benefícios da medicina e da cirurgia para debelar seus males.
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1 Meta-histórico ou trans-histórico é o fato histórico que não pertence a um determinado período da história apenas, mas se reproduz em diversas fases da história. Este conceito se esclarecerá no decorrer da nossa explicação.
Prof. Felipe Aquino
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