São GREGÓRIO DE NISSA |
(Aprox. 330-395)
Sobre a Vida de Moisés
Tradução segundo a Patrologia Grega de Migne
com base na versão de D. Lucas F. Mateo
História de Moisés
Capítulo 22
A narração conduz nossa consideração, uma vez mais, ao mais alto da virtude em uma contínua subida. Aquele que foi fortalecido pelo alimento, e mostrou sua força na luta corpo a corpo com os inimigos, e venceu seus oponentes, é levado agora àquele inefável conhecimento de Deus, àquela teognosia. A narração nos ensina com isto, quais e quantas coisas é necessário ter chegado a bom termo na vida para nos atrevermos a nos aproximar, com o pensamento, da montanha da teognosia, suportar o fragor das trombetas, penetrar nas trevas onde está Deus, gravar nas tábuas os divinos mandamentos e se, por causa do pecado, se quebrarem aquelas tábuas, apresentar de novo a Deus as tábuas polidas a mão, para que os caracteres que foram destruídos nas primeiras sejam desenhados novamente pelo dedo divino. Talvez seja melhor adaptar nosso conhecimento à interpretação espiritual, seguindo passo a passo a ordem da narração. Quem segue Moisés e a nuvem, pois ambos servem de guia aos que avançam na virtude, Moisés representaria aqui os preceitos da Lei, e a nuvem a interpretação espiritual da Lei que nos serve de guia, quem com mente purificada na passagem da água depois de haver matado e apartado de si o que era estrangeiro experimentou a água de Mara, isto é, a água da vida afastada dos prazeres, a qual primeiro parece amarga e sem sabor aos que a experimentam, porem regala com uma sensação doce a quem aceitou o lenho; quem depois disto se deleitou com a beleza das palmeiras e das fontes evangélicas e da água viva (Jo 4, 11) que é a pedra; quem foi saciado recebendo em si mesmo o pão do céu (Jo 6, 32) e lutou valentemente contra os estrangeiros, cuja vitória foi causada pelas mãos levantadas do Legislador que prefiguram o mistério da cruz, este é levado à contemplação da natureza que tudo transcende. O caminho que o conduz a este conhecimento é a limpeza, não só do corpo, purificado com algumas aspersões, mas também a das vestes, lavadas de toda mancha com água. Isto significa que é necessário que quem está a ponto de ascender à contemplação dos seres esteja completamente limpo, de forma que seja puro e sem mancha na alma e no corpo, havendo lavado as manchas igualmente de uma e de outro. Assim apareceremos puros a quem vê o secreto (Mt 6, 4) e o decoro exterior estará de acordo com a disposição interna da alma. Por ordem de Deus, as vestes são lavadas antes de subir a montanha (Ex 19, 10), indicando-nos com o simbolismo das vestimentas o decoro exterior da vida. Com efeito, ninguém diria que uma mancha exterior do vestido se converte em obstáculo para a subida de quem se aproxima de Deus, a menos que com vestido se aluda convenientemente - penso - ao exterior das ocupações desta vida. Feito isto, e havendo afastado da montanha o mais possível o rebanho dos irracionais, Moisés empreende a ascensão aos mais altos conhecimentos (Ex 19, 13). O não ter permitido a nenhum ser irracional aparecer na montanha significa, a meu ver, que na contemplação das realidades espirituais se transcende o conhecimento que provem da sensibilidade. De fato, é próprio dos seres irracionais deixar-se guiar pelos sentidos sem refletir. O sentido da visão é o guia dos sentidos; muitas vezes o ouvido desperta o impulso para alguma coisa. Todas as coisas através das quais se ativa a sensibilidade, têm um amplo espaço nos irracionais. Ao contrário, a contemplação de Deus não tem lugar nem no âmbito do que se vê, nem no âmbito do que se ouve. Não se prende e nenhum dos conceitos habituais. Nem o olho viu, nem o ouvido ouviu. Não consiste em nenhuma das coisas que ordinariamente sobem até o coração do homem (1Co 2, 9). Quem tenta ascender ao conhecimento das coisas do alto, deve limpar previamente seus costumes de todo impulso sensível e irracional, purificar qualquer opinião proveniente de um preconceito anterior ao pensamento, e afastar-se da relação ordinária com a própria companheira, isto é, com a sensibilidade que, de certa forma, está unida a nossa natureza como esposa e companheira. E purificado dela, enfrentar assim a montanha.
Capítulo 23
A montanha verdadeiramente escarpada e de difícil acesso designa o conhecimento de Deus: a teologia. A turba apenas alcança chegar trabalhosamente até sua base. Porem, se se trata de algum Moisés, talvez suba um grande trecho, suportando no ouvido o fragor das trombetas que, como diz o texto da narração, se faz mais forte quanto mais se avança (Ex 19, 19). Efetivamente, a pregação em torno da natureza divina é trombeta que golpeia o ouvido; parece já forte no começo, se faz maior e mais forte para o ouvido nas etapas finais. A Lei e os profetas proclamaram o mistério divino da Encarnação, porem as primeiras vozes eram muito débeis para alcançar os ouvidos dos indóceis. Por esta razão, a dureza de ouvidos dos judeus não percebeu o som das trombetas. Ao avançar, as trombetas, como diz o relato, se fazem mais fortes. Os últimos sons, emitidos através das pregações evangélicas, golpeiam os ouvidos pois, através destes instrumentos, o Espírito ressoou com maior clareza para aqueles que vieram depois, e produziram um ruído mais vigoroso. Os instrumentos que clamam no Espírito são os profetas e os apóstolos. Como diz a salmodia, seu clamor chegou a toda a terra e suas palavras aos confins do mundo (Sal 18, 5). Que a multidão não tenha podido suportar a voz que vinha do alto e tenha encarregado Moisés de conhecer por si mesmo os mistérios ocultos e comunicar ao povo a doutrina que houvesse aprendido através do ensinamento divino (Ex 19, 23-24), também isto está entre as coisas praticadas na Igreja: nem todos se lançam à compreensão dos mistérios mas elegem entre eles quem possa perceber as coisas divinas, prestam-lhe ouvidos confiantemente e tomam como digno de fé tudo quanto ouçam aqueles que tiverem sido iniciados nos mistérios divinos. Não todos - diz - são apóstolos, nem todos profetas (1Co 12, 29). Isto não está sendo observado muito hoje nas igrejas. Muitos que têm necessidade de se purificar de ações passadas, sem lavar-se e ainda com manchas em torno de suas vidas, colocando ante si mesmos a irracionalidade do sensível, cometem a ousadia de tentar a divina ascensão. Daí serem apedrejados por seus próprios raciocínios. Com efeito, as opiniões heréticas são realmente pedras que matam o próprio inventor de doutrinas perversas. Que significa o fato de Moisés penetrar as trevas e nelas ver Deus? O que se narra aqui parece contrário à primeira teofania (Ex 20, 21). Pois então a divindade foi vista na luz; agora, nas trevas. Não pensemos que isto destoa quanto à coerência com o que consideramos em nossa interpretação espiritual. Através disto, o texto nos ensina que o conhecimento da piedade, no começo, se faz luz em quem o recebe. De fato, concebemos como trevas o contrário da piedade, e o afastamento das trevas é produzido pela participação na luz. Mas a seguir a mente, avançando na compreensão do conhecimento dos seres mediante uma atenção sempre maior e mais perfeita, quanto mais avança na contemplação, tanto mais percebe que a natureza divina é invisível. Em conseqüência, abandonando tudo o que é visível, não só tudo o que está no campo da sensibilidade, mas também tudo quanto a inteligência parece ver, marcha sempre para o que está mais oculto, até penetrar, com o trabalho intenso da inteligência, no invisível e incompreensível, e ali vê Deus. Nisto consiste o verdadeiro conhecimento do que buscamos, em ver no não ver, pois o que buscamos transcende todo o conhecimento, totalmente circundado pela incompreensibilidade como por trevas. Por esta razão disse o elevado João que esteve nas trevas luminosas: A Deus nunca ninguém viu (Jo 1, 18), definindo com esta negação que o conhecimento da essência divina é inacessível não só aos homens, senão também a toda natureza intelectual.
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