Página de um manuscrito da Biblioteca Deir al-Surian (foto: Angélica Tarnowska) (@angelicatarnowska Levantine Foundation ) |
Há 20 anos, uma fundação
anglo-egípcia trabalha para conservar, preservar e restaurar uma das mais
importantes e prestigiosas coleções de manuscritos antigos: textos cristãos de
valor histórico excepcional, mantidos em segredo por séculos.
Jean Charles Putzolu
Deir al-Surian é um dos mosteiros
mais antigos que o mundo moderno conhece. Foi fundado no século VI, depois de
Cristo, mas é apenas uma hipótese, da qual muitos compartilham. Na verdade, o
mosteiro de Santa Maria Mãe de Dio é um dos quatro, dos cerca de 600,
construídos entre os séculos III e VI, que sobreviveram à erosão. Ao longo dos
anos, Deir al-Surian, situado no deserto de Nitria, perto de Alexandria, no
Baixo Egito, foi sede de várias comunidades monásticas, do Levante à Etiópia,
mas, sobretudo, da Síria.
Vista ao mosteiro Deir al-Surian (foto: Angélica Tarnowska) |
Mateus, Abraão e Teodoro foram os
três monges sírios que, no século IX, receberam a tarefa de fundar, neste
lugar, a primeira Biblioteca, para preservar os manuscritos cristãos. A seguir,
no século X, foi enriquecida com 250 manuscritos, que o abade Moisés de Nisbi
havia trazido, após sua viagem a Bagdá, que durou cinco anos. Desde então, o
Mosteiro Deir al-Surian conserva os escritos cristãos mais antigos em copta,
siríaco, árabe e etíope, bem como as obras dos primeiros Padres da Igreja, como
São João Crisóstomo e Gregório Niceno.
Trata-se de manuscritos únicos e
excepcionais, que permaneceram em "segredo" por muito tempo, até
quando, nos séculos XVIII e XIX, alguns visitantes roubaram algumas obras:
algumas foram doadas ao Papa Clemente XI e, hoje, se encontram na Biblioteca
Vaticana, enquanto outras foram parar na Biblioteca Britânica. Para evitar tais
desvios, os monges de Deir al-Surian fecharam e lacraram a porta da Biblioteca.
Logo, por mais de um século, esta Biblioteca ficou oculta aos olhos do mundo,
até quando tiveram início as obras de restauração, nos anos Noventa do século
passado.
Fragmentos de manuscritos sob o
pavimento
O bibliotecário Abouna Bigoul
estava indo ao “kip”, - a torre quadrada e fortificada do mosteiro, - quando
avistou fragmentos de manuscritos sob um pavimento, que estava desabando por
causa da reforma. Alguns daqueles manuscritos estavam em péssimas condições,
por terem permanecido, durante séculos, debaixo dos pés dos monges. Abouna
Bigoul era o padre bibliotecário e, por isso, tinha absoluta certeza do valor
daqueles volumes da coleção do mosteiro. Porém, não era um especialista e nem
saberia como restaurar aquelas páginas preciosas, tampouco os textos antigos,
mas precisavam, absolutamente, ser preservados da destruição. Assim,
precisamente naquele momento, o padre ortodoxo escreveu para Elisabeth
Sobczynski, encarregada da manutenção dos arquivos em Londres: “Senhora,
descobrimos fragmentos de manuscritos muito antigos entre os escombros de uma
sala secreta, cujo pavimento desabou. Alguns pesquisadores, que trabalhavam na
restauração dos afrescos da nossa igreja, me indicaram seu nome. A senhora
poderia vir ajudar-nos? Eu sou apenas o bibliotecário, não saberia o que
fazer…”.
Elisabeth leu e releu aquela
mensagem, surpreendida por ter sido escolhida para resolver o problema. Então,
voou para o Egito para encontrar, no deserto, o bibliotecário daquele mosteiro.
Obra de restauração de um manuscrito |
No início, o Conselho de
Administração do mosteiro não confiou muito. Por isso, Elisabeth teve que
esperar vários dias sem ver um livro, até que, no quinto dia, o bibliotecário
apareceu com um enorme molho de chaves. Juntos, dirigiram-se para a porta da
Biblioteca. Abouna Bigoul quebrou os sigilos e a porta se abriu em meio a uma
nuvem de poeira. Assim, Elisabeth descobriu um tesouro: "Foi um momento
único na minha vida", - disse mais tarde; - "uma emoção sem
precedentes". Ela se encontrou, com grande admiração, diante de 1.200
volumes. Em 2005, um fragmento, de modo particular, chamou a sua atenção, por
causa da sua data “Novembro de 411”, que se encaixava, perfeitamente, com a
última página de um volume, que havia encontrado na Biblioteca Britânica: um manuscrito
precioso, com textos da antiguidade grega, escrito em língua siríaca. De fato,
na última página havia uma lista de nomes de cristãos perseguidos e
assassinados por um rei persa. A lista havia sido elaborada, a pedido do Bispo
siríaco, Maruta, em homenagem à memória dos mártires. No final da página do
fragmento, encontrado em Deir al-Surian, havia a assinatura de Maruta e a data.
A sua "assinatura" fez com que esta página se tornasse o texto
cristão mais antigo, com data exata.
Há dezenas de anedotas
semelhantes que podem ser narradas. A própria descoberta de tais manuscritos
representa uma verdadeira história em si, pois, seu conteúdo é a narração da
nossa história. Por isso, deve-se fazer de tudo para salvá-los.
Veja o documentário completo sobre
os manuscritos de Deir al-Surian, realizado pela “Levantine Foundation”
Link https://youtu.be/SwA2IybZZg0
“Levantine Foundation” (Fundação
Levantina)
Elisabeth Sobczynski ficou
encantada. Mas, seus meios são limitados. Sozinha, nada pode fazer, a não ser
alimentar sua paixão e curiosidade. Porém, gostaria que esta herança literária
e cristã inestimável fosse transmitida às gerações futuras. É impensável deixar
perecer um dos dois Evangelhos de João, completo e mais antigo, traduzido em
língua copta, que sobreviveu até hoje. Para iniciar uma boa campanha de
manutenção e formação de técnicas de conservação era preciso arrecadar fundos.
Por isso, Elisabeth criou a “Fundação Levantina”, que contou com o apoio do
Príncipe Carlos. Os doadores apareceram, rapidamente, e a campanha pôde
começar.
A nova Biblioteca de Deir al-Surian (foto: Angélica Tarnowska) |
Desde então, até hoje, foram
restaurados 130 manuscritos e 300 fragmentos, graças, de modo particular, à
generosidade do “British Council” e do “British Department for Digital,
Culture, Media and Sport”, que sustentaram, nos últimos dois anos, a “Fundação
Levantine”, permitindo a conservação de 22 Códigos. Nem todas as obras precisam
ser restauradas, mas outras centenas terão que passar pelas mãos expertas da
equipe de manutenção, comprometida com esta aventura. No ano passado, por causa
da pandemia, as campanhas foram suspensas, mas deverão ser retomadas em 2022.
Elisabeth terá que convocar os doadores para financiar as próximas campanhas. A
pandemia, certamente, não impedir...
Elisabeth Sobczynski e o bibliotecário do mosteiro (foto: Angélica Tarnowska) |
Para as gerações futuras
Um dos compromissos assumidos
este ano diz respeito aos mais jovens, para que saibam qual o caminho que a
história percorreu para chegar até nós. A “Fundação Levatine” lançou um projeto
pedagógico intitulado “as maravilhas da escritura”, ou seja, como os livros
antigos ou “códigos” foram escritos ao longo da história. A Fundação realizou
um vídeo para crianças, de 9 a 11 anos, cuja versão completa é em inglês e
árabe, destinado aos professores de ensino fundamental, no Egito e em todas as
partes, bem como aos que desenvolvem programas educativos em museus e
bibliotecas. Desta forma, pretende sensibilizar todos sobre a importância
histórica da escritura e mostrar qual a origem de um simples caderno, mediante
técnicas de encadernação copta, que foram as bases para a atual realização de
livros, desde o século I d.C.
Vatican News
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