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segunda-feira, 26 de abril de 2021

O compromisso cristão com a liberdade religiosa

bioraven | Shutterstock
Por Francisco Borba Ribeiro Neto

Quase todos os países onde existe perseguição religiosa sofrem com regimes autoritários, desigualdades sociais entre grupos étnicos e castas e conflitos entre facções armadas.

No último dia 20 de abril, foi lançado mundialmente o 15º Relatório sobre liberdade religiosa no mundo, da entidade internacional Ajuda à Igreja que Sofre (em inglês, Aid to the Church in Need, ACN). Trata-se de uma iniciativa que acontece desde 1999, realizada por uma das mais importantes organizações católicas de auxílio humanitário e pastoral no mundo. A ACN atende milhões de pessoas todos os anos por meio de aproximadamente 5 mil projetos em cerca de 130 países – incluindo o Brasil. O Relatório detalha a situação da liberdade religiosa nos 196 países do mundo, entre 2018 e 2020.

Muita gente vai se perguntar, por que uma entidade católica com esse perfil – que promove e financia ações como formação de padres e religiosos, construção e reconstrução de igrejas, obras de recuperação de jovens dependentes químicos, construção de escolas e casas para refugiados no Oriente Médio – se dedica a um relatório que trata da perseguição religiosa não só a cristãos, mas a muçulmanos, budistas, praticantes de religiões afro, etc.? Não deveriam cuidar mais dos católicos e das iniciativas concretas de ajuda pastoral?

Compreender a razão de ser do Relatório é tão fundamental, para nós católicos, quanto compreender por que o Papa Francisco fez questão de visitar o Iraque, correndo risco de vida e em meio a uma pandemia, ou porque a Oração Universal, rezada na Sexta-feira Santa, na celebração do Paixão do Senhor, termina com súplicas a todos os seres humanos, também àqueles que não creem e, eventualmente, perseguem os cristãos. A história e a geografia nos ajudam a entender melhor essa questão.

Nos perseguidos, a esperança da paz

O cristianismo é uma religião de mártires. Nossa fé é sustentada, historicamente, pelo seu testemunho (cf. Catecismo da Igreja Católica, CIC 8522473-2474). Os missionários e os primeiros convertidos nos diferentes lugares do mundo frequentemente foram – e ainda são – martirizados. É verdade que os cristãos muitas vezes acreditaram que a força da espada lhes traria segurança e converteria “os gentios” que não conheciam a fé. Existem, inclusive, histórias de grandes eventos em que a intervenção miraculosa de Deus levou as tropas cristãs à vitória contra os infiéis, como na célebre batalha naval de Lepanto. Mas o aprendizado histórico da comunidade cristã não vai em direção ao uso da força, mas ao testemunho do amor, inclusive com sacrifícios pessoais.

Essa convicção na força do amor leva-nos a valorizar todas as pessoas, não querer que ninguém sofra e perceber na amizade entre os perseguidos um caminho para a paz. O frade Pierbattista Pizzaballa, que foi Custódio da Terra Santa (uma espécie de Núncio Apostólico), numa palestra em 2014, que, no Oriente Médio, cristãos, judeus e muçulmanos moderados se ajudavam e procuravam resistir juntos às atrocidades do terrorismo jihadista. Para ele, essa amizade apontava os caminhos do futuro para a região.

https://youtu.be/sdrW8Jy_j1s

Nossa esperança está no Senhor, mas é nos perseguidos, nos mais frágeis, nos excluídos e martirizados que Ele se manifesta de modo mais evidente. O próprio Cristo morreu numa cruz, injustamente perseguido e torturado pelos poderes de seu tempo. A solidariedade com todos os que sofrem, independentemente da confissão religiosa, faz parte do nosso caminho de seguimento a Ele. A ACN faz um imenso trabalho de apoio aos cristãos perseguidos no Oriente Médio, por isso reconhece esse dever de solidariedade para com todos os que sofrem por desejarem manter a sua fé, e com esse espírito produz esses Relatórios sobre liberdade religiosa no mundo.

A quem muito foi dado, muito será cobrado

O levantamento da ACN traz um mapa-múndi onde os países que sofrem com perseguição ou discriminação religiosa severa aparecem em vermelho ou laranja. A grande maioria encontra-se num eixo que vai da Coréia do Norte até o Congo, passando pela China, Sudeste Asiático, Índia, praticamente todo o Oriente Médio e África saariana. Em termos proporcionais, 31,6% dos países, com 67,0% da população mundial, apresentam graves violações à liberdade religiosa.

A perseguição religiosa ainda é uma realidade muito presente no mundo, como podemos constatar. É importante notar que, ao contrário do que supõe uma certa mentalidade laicista, a origem dos conflitos religiosos não é uma questão confessional. A religião é utilizada como pretexto para a perseguição e a opressão, mas não é a verdadeira causa dos conflitos. Quase todos os países onde existe perseguição religiosa sofrem com regimes autoritários (como a China), desigualdades sociais entre grupos étnicos e castas (como a Índia) e conflitos entre facções armadas disputando o poder, como o Estado Islâmico e o Boko Haram. Em todos esses casos, a religião é instrumentalizada por interesses políticos e econômicos.

Por outro lado, salta aos olhos que as democracias ocidentais, marcadas pelo cristianismo, ainda que tenham muitos problemas de intolerância religiosa, não integram essa lista de países problemáticos. É que essas democracias reconhecem os direitos humanos, inclusive aquele à liberdade de crença, e a dignidade da pessoa humana. Bem ou mal, os governos estão comprometidos a salvaguardar esse direito. É uma herança que recebemos de nossa tradição cristã. A mensagem evangélica nos ensinou a dignidade de toda a pessoa humana e o amor ao próximo. Os nossos erros históricos – e foram muitos, como as terríveis guerras religiosas entre cristãos na Europa (séculos XVI e XVII) – nos ensinaram a importância de respeitar o outro e não recorrer à violência.

Seria um erro grave pensar nessa herança com arrogância ou pretensão. Cada um de nós, individualmente, não tem nenhum mérito por essa construção histórica da liberdade em nossas sociedades. Pelo contrário, temos a responsabilidade de continuar construindo-a e combater todas as formas de intolerância. É Cristo que nos adverte: “A quem muito foi dado, muito será exigido; e a quem muito foi confiado, muito mais será pedido” (Lc 12, 48). Se recebemos uma sociedade que respeita a liberdade religiosa, temos uma obrigação muito maior de defender a liberdade religiosa para todos.

Não deixe de assistir ao vídeo com as principais conclusões do Relatório de Liberdade Religiosa:

https://youtu.be/8mDN_kb1rPA

Aleteia

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF