Ricardo Jayme / AGIF |
Os idosos mais pobres enfrentam dificuldades de acesso aos postos de saúde e locais de vacinação.
Ninguém, em sã consciência, quer morrer de Covid-19, nem ficar trancado em casa, impossibilitado de trabalhar, ir à missa ou encontrar os amigos. É natural, portanto, que esperemos com ansiedade para sermos vacinados e ficarmos imunizados – ou, ao menos, passarmos a ter baixa probabilidade de adoecermos gravemente com o vírus. Contudo, o crescimento do número de infectados e mortos em 2021, mais o advento das vacinas, desnudou uma série de perversidades, que podem até ser não-intencionais, mas nem por isso deixam de acontecer, decorrentes das desigualdades socioeconômicas de nosso País.
Na cidade de São Paulo, um levantamento mostrou que nos bairros mais pobres, com menores índices de desenvolvimento humano (IDH), a mortalidade por Covid-19, atualmente, é mais elevada do que nos bairros ricos, mas a porcentagem de idosos já vacinados é menor. Por exemplo, no bairro de Cidade Tiradentes (zona leste de São Paulo), apenas 42% dos idosos tinha sido vacinada e a taxa de mortalidade, entre eles, é de 2,7%. No mesmo período, em Pinheiros, na zona oeste da cidade, onde a mortalidade dos mais velhos por Covid-19 é a metade (1,4%), a vacinação havia atingido 91% dos idosos.
Em teoria, o Estado deu as mesmas possibilidades de vacinação para todos. Na prática, isso não é verdade. A rede de postos de saúde e locais de vacinação é mais densa em bairros tradicionais, de ocupação antiga, do que nas periferias, de ocupação recente. Os idosos mais pobres enfrentam dificuldades de acesso aos postos, como ruas precárias, falta de dinheiro para sua locomoção e dos acompanhantes (mesmo que os ônibus sejam gratuitos para os mais velhos), ausência de parentes que possam levá-los. O acesso à informação sobre como e quando se vacinar também é limitado e trata-se de uma população particularmente vulnerável a fake news. Por todos esses fatores, justamente aqueles idosos que mais precisam receber as vacinas são os que menos estão sendo vacinados.
Quem são os mais vitimados
Logo no início da pandemia, dizia-se que a Covid-19 era uma “doença de rico”. Era pega em viagens internacionais ou eventos sociais frequentados por essas pessoas. A realidade rapidamente mudou e hoje são os bairros pobres que apresentam maior número de infectados pelo vírus. Três fatores causaram essa mudança:
1. Os trabalhadores de menor renda têm mais dificuldade de aderir ao home office. Muitos deles se dedicam aos chamados serviços essenciais. Com isso, se expõem mais à contaminação. Uma pesquisa em Belo Horizonte revelou que 62% dos internados por Covid-19 eram faxineiros, garis ou auxiliares de limpeza. Porcentagem duas vezes maior do que a de aposentados (30%). Empregadas domésticas, diaristas e cozinheiras respondiam por mais 6%… Somadas, todas as outras profissões perfaziam apenas 2% dos hospitalizados. Os dados podem mudar, conforme a realidade local, mas esses e outros profissionais dos serviços essenciais, como motoristas de ônibus e policiais, estão entre os mais afetados pela Covid-19. No Estado de São Paulo, mais policiais militares morreram vítimas do vírus em março de 2020 do que em serviço nos 10 meses anteriores (10 contra 9). Um outro estudo mostrou que, depois que iniciaram-se as aulas presenciais, a incidência de Covid-19 entre professores de SP é três vezes maior do que entre população adulta em geral.
2. As condições de habitação também influem nesse quadro. Famílias que moram em casas pequenas ou mesmo em condomínios e prédios com muito contato entre vizinhos têm mais dificuldade em isolar seus doentes e praticar distanciamento social. A maior distância do local de trabalho à moradia e a duração da viagem em transporte público também aumenta a exposição ao vírus. Assim, as pessoas pobres dos bairros periféricos se contaminam com mais facilidade.
3. Os estudos têm mostrado ainda que os serviços de saúde estão menos disponíveis nos locais mais pobres. Com isso, os doentes são menos acompanhados por especialistas e a probabilidade de não se curarem aumenta. Fatores como baixo número de leitos disponíveis em hospitais e falta de médicos para realizar o atendimento explicam o número elevado de mortes em algumas regiões do Brasil.
Com isso, apesar dos vírus não escolherem entre ricos e pobres, as desigualdades socioeconômicas passam a ser determinantes na mortalidade frente à Covid-19.
Um olhar justo e solidário para a fila de vacinação
Essa realidade bem merece o juízo sobre a saúde dado por Bento XVI, em 2010: “Também no campo da saúde, parte integrante da existência de cada um e do bem comum, é importante instaurar uma verdadeira justiça distributiva que garanta a todos, com base nas suas necessidades objetivas, os cuidados adequados […] a Doutrina Social da Igreja sempre evidenciou a importância da justiça distributiva e da justiça social nos vários âmbitos dos relacionamentos humanos (cf. Caritas in veritate, CV 35). Promove-se a justiça, quando se acolhe a vida do outro e se assume a responsabilidade por ele, correspondendo às suas expectativas, porque nele se entrevê o semblante do próprio Filho de Deus, que por nós se fez homem […] ‘A justiça é o primeiro caminho da caridade’ (CV 6)”.
Todos temos direito aos recursos necessários para preservar nossa saúde. Ninguém faz beneficência ao reconhecer esse direito do outro. É um dever de justiça. Contudo, num contexto de carência de recursos, critérios de prioridade devem ser utilizados. As normas para distribuição das vacinas precisam ser coordenadas pelos órgãos públicos e uma decisão individual, seja “vou me vacinar agora” ou “vou me vacinar mais tarde, porque outros precisam mais do que eu”, não seria nem praticável, nem útil. Contudo, todos podemos colaborar para construir uma opinião pública que pressione os governos a vacinar primeiro os mais vulneráveis ou que correm maiores riscos.
Existem muitas possibilidades para uma distribuição mais justa das vacinas entre a população. Além do critério etário, pode-se priorizar os profissionais de serviços essenciais, as categorias hospitalizadas em maior proporção, aumentar o esforço de vacinação nas áreas com maior número de casos, etc. Alguns, por exemplo, defendem que a população negra seja vacinada prioritariamente, pois os estudos mostram que estão numa situação mais vulnerável, são mais frequentes entre os profissionais de serviços essenciais e entre a população dos bairros pobres – seria um critério sintético que ajudaria a se vacinar um processo de vacinação mais justo e equitativo.
Bento XVI concluía, na Mensagem acima citada: “É necessário o esforço conjunto da parte de todos, mas é preciso também e sobretudo uma profunda conversão do olhar interior. Somente se contemplarmos o mundo com o olhar do Criador, que é olhar de amor, a humanidade aprenderá a viver sobre a face da terra na paz e na justiça, destinando com equidade[*] a terra e os seus recursos para o bem de cada homem e de cada mulher […] ‘que se adote um modelo de desenvolvimento fundado na centralidade do ser humano, na promoção e partilha do bem comum, na responsabilidade, na consciência da necessidade de mudar os estilos de vida e na prudência, virtude que indica as ações que se devem realizar hoje, em previsão do que poderá acontecer amanhã’ (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2010, n. 9).
[*] Equidade é diferente de igualdade. Uma distribuição igualitária dá a mesma coisa a todos, uma distribuição equitativa dá a cada um conforme a sua necessidade. O mais necessitado, numa lógica equitativa, deve ganhar o suficiente para satisfazer a sua necessidade. A doutrina social da Igreja defende a equitatividade (cf. Compêndio da Doutrina Social da Igreja, CDSI 171ss).
Aleteia
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