Henryk Paprocki (1946) |
«O Espírito Santo e a Realidade da Ressurreição»
(Capítulo do Livro: "A Promessa do Pai" a experiência do Espírito Santo na Igreja Ortodoxa -
Páginas 61 a 67 - Edições Paulinas - São Paulo, 1993).
Henryk Patrocki nascido em Kolo (Polônia), em 1946 é Sacerdote ortodoxo. Depois de Estudos na Universidade Católica de Lublin e no Instituro São Sérgio de Paris, atualmente é professor no Seminário Ortodoxo de Teologia de Varsóvia (Polônia).
La crise geral da consciência pascal e escatológica, talvez só a Igreja ortodoxa tenha conservado até hoje na celebração da ressurreição todos os elementos que os primeiros cristãos compreendiam nesse mistério central de Cristo. "Festa das festas", proclama um dos hinos do cânone das matinas da Páscoa, obra de são João Damasceno. A festa central de Cristo, o "mistério de Cristo", como o define Odon Case contém toda a oikonomia, sendo, portanto, a festa por excelência[1],. Parece que a ortodoxia conservou a idéia da Páscoa precisamente graças à teologia do Espírito Santo.
Mas essa mesma teologia ou, melhor, a experiência constantemente renovada da presença do Espírito Santo impediu a ortodoxia de fechar-se no liturgismo. Quando a liturgia pascal chegava ao termo de sua elaboração na Igreja do Oriente, talvez com o perigo de ritualização excessiva do culto, de ruptura desnecessária entre a experiência da ressurreição de Cristo (mystike anastasis) e a da ressurreição do resto da humanidade (ênfase supérflua na escatologia do futuro projetou num futuro indefinido a idéia da ressurreição geral) - na charneira dos séculos X e XI, um teólogo deu novo impulso à teologia do Espírito Santo e reinterpretou o mistério da ressurreição. Foi são Simeão, que seus contemporâneos chamaram o "Novo Teólogo", tão novas eram as correntes das quais seu ensinamento estava penetrado.[2] São Simeão o Novo Teólogo está profundamente enraizado na tradição da teologia joanina (da Luz), desenvolvida por são Gregório o Teólogo. Notemos que é a essa teologia que se refere são Serafim de Sarov.
São Simeão o Novo Teólogo dizia que:
"Começamos a nos tornar participantes da ressurreição aqui e agora, no decorrer da vida presente. A ressurreição de todos realiza-se pelo Espírito Santo. [...] Não falo da ressurreição final dos corpos - mas da que se verifica cada dia, nas almas, regeneração e ressurreição espiritual, que nos dá Aquele que morreu e ressuscitou e que, através de todos e para todos os que tiverem vivido dignamente, ressuscita e faz ressuscitar consigo as almas, consigo pela vontade e pela fé, e isso por seu Espírito muito Santo, concedendo-lhes desde já o dom do reino dos céus. [...] Nesta vida podemos, devemos até, ver o Cristo, porque, se somos dignos de contemplá-lo aqui em pensamentos, não morreremos. [...] Assim, pois, não esperemos contemplá-lo no futuro, mas esforcemo-nos para vê-lo desde o presente”.[3]
Apressando assim a escatologia (podemos dizer que são Simeão o Novo Teólogo foi precursor da idéia da "escatologia realizada"), ele não fazia diferença entre o futuro e o presente, nem entre o presente e o passado, assegurando que o Espírito Santo está presente do mesmo modo em cada momento da história da Igreja, como estava presente nos tempos apostólicos.
São Simeão julgava essa experiência espiritual totalmente normal e pensava que "em cada geração, podemos e devemos ser movidos pelo Espírito divino e sentir sua presença de maneira perceptível à consciência[...], como os apóstolos sentiam Cristo". [4]
Olivier Clément descreve assim a doutrina de são Simeão o Novo Teólogo: a experiência de um são João ou de um são Paulo é possível a quem recebe agora o selo do Espírito Santo. A vida eterna começa nesta vida: “não ter consciência disso é comprazer-se na condição de cadáver e arriscar-se a ficar prisioneiro dela para sempre”.[5]
São Simeão o Novo Teólogo sublinha expressamente que os "grandes mistérios de Deus" começam como mistério da encarnação. Em espírito podemos ressuscitar todos os dias. A ressurreição das almas é, ao mesmo tempo, espiritualização e divinização, e tornamo-nos indestrutíveis, inteiros na graça. A ressurreição de Cristo se manifesta no sacramento da eucaristia, que é ato do Espírito Santo. Como o sublinha a XIII Catequese de são Simeão, o hino para depois da comunhão proclama: "Tendo contemplado a ressurreição de Cristo, prostremo-nos diante do Santo Senhor Jesus, o único sem pecado", e não: "Tendo crido na ressurreição[6]". Podemos contemplar essa ressurreição no Espírito Santo, como participantes dos sofrimentos de Cristo.
O julgamento é pronunciado sem cessar, mas será visível somente na segunda vinda de Cristo. Simeão o Novo Teólogo estigmatiza os que rejeitam a ressurreição final. Estas três divinizações são a sorte de cada um de nós: durante a vida, após a morte e no julgamento. Isso sublinha a universalidade da ressurreição de Cristo e da transfiguração cósmica. A graça da ressurreição é igualmente final, última [7]. Por isso também santo Isaac, o Sírio, considera cada pecado como "um punhado de areia atirado num mar imenso" e que o único pecado verdadeiro é o de não dar importância ao fato da ressurreição, que, por Cristo, se tomou nossa - porque, após a ressurreição, o que é ainda a geena? [8]
A visão da luz, da qual são Simeão, o Novo Teólogo, falou tanto, é sinônimo de divinização e de ressurreição:
Paredes me cercam,
e meu corpo me retém,
Mas sem nenhuma dúvida
estou verdadeiramente fora delas;
Não escuto os sons
nem distingo as vozes,
Não tenho medo da morte,
eu a venci.
Não conheço a tristeza,
embora todos me contristem.
Os prazeres me são amargos,
todas as tentações fogem de mim.
E de dia e de noite,
sem cessar, vejo a luz;
O dia para mim é noite, e a noite é dia.
E não quero dormir,
porque para mim isso é castigo... [9]
Desde esta terra, as relíquias incorruptíveis dos ascetas podem ser interpretadas como sinal da vitória sobre a morte, como o Espírito que se descobre na natureza corporal. [10]
O Espírito Santo é o autor de nossa ressurreição como o é da ressurreição de Cristo (1Pd 3,18). No mesmo raciocínio, são Simeão, o Novo Teólogo, chama o Espírito Santo de "clâmide de nosso grande Deus e Senhor" (trata-se do manto de púrpura real do qual Cristo foi revestido antes de sua paixão - cf. Mt 27,31; Ex 39,2-30; 28,5), o que corresponde ao texto da antiga liturgia de são Clemente, na qual o Espírito Santo é chamado "testemunha dos sofrimentos do Senhor Jesus".[11] As palavras enigmáticas de Cristo: "Hoje estarás comigo no paraíso", em resposta ao pedido do ladrão: "Jesus, lembra-te de mim, quando vieres em teu reino" (Lc 23,42) - isto é, no Espírito Santo -, permitem compreender logo o nexo entre o reino, o Espírito Santo e o paraíso. Comparemos essas palavras de Cristo com a descrição de Gn 2, 8-14: juntas elas permitem esclarecer a questão do paraíso dos antigos como o estado dos que "têm o Espírito Santo." [12]
Canta o Akathistos em honra de são Serafim: [13]
Alegra-te, tu,
que submeteste os animais selvagens,
tomando-os mansos por tua humildade.
As palavras de Cristo: "Hoje estarás comigo no paraíso", também permitem compreender melhor a idéia da ressurreição.
Parece que a realização da ressurreição se dará, antes de tudo, pela liturgia. É precisamente na liturgia, e em particular nos sacramentos, como veremos adiante, que "a alma se alimenta do Espírito Santo", que é o reino e a nossa ressurreição.
O Espírito Santo penetra o ser humano igualmente pelo outro lado (na morte) como penhor da ressurreição universal ("no dia da cólera de Iahweh, pelo fogo de seu zelo toda a terra será devorada", Sf 1,18). Todavia o ensinamento de são Paulo (Ef 1,10: "Em Cristo renovar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra"; 1Cor 15,28: "para que Deus seja tudo em todos"; 1Cor 15,22: "assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida"; Rm 11,32: "Deus encerrou todos na desobediência para, a todos, fazer misericórdia"), de são Gregório de Nissa [14] e de santo Ireneu, proclamando que Cristo unirá tudo em sua parusia, proclamando a esperança da salvação universal, não foi condenado. Como será isso realizado é um mistério, mas Orígenes, pondo o acento na misericórdia divina, fundamenta a salvação de todos os homens e o desaparecimento final do mal.[15]
A escola Alexandrina e são Gregório de Nissa afirmam que sem a universalidade da salvação (apokatastasis ton panton) não haveria vitória total de Deus sobre o mal.[16] Gregório de Nissa considerava a possibilidade até de renascimento depois da ressurreição de todos,[17] e a possibilidade da salvação de Satã, [18] mas isso como sua opinião pessoal.[19] São Máximo o Confessor mantinha-se numa posição mais prudente.[20] O último combate contra o mal se trava à luz da ressurreição; sobre isso pode ser instrutivo o fim da Lenda do Anticristo de Vladimir Soloviov.[21] É por isso também que a Igreja ora por todos os mortos, sem exceção, nas vésperas de Pentecostes, a fim de que Cristo, que vem "en atomo, en ripe ophthalmou" (1Cor 15,52), torne-os participantes de sua glória, porque tem o poder "de enviar aos infernos e de libertar de lá".
FONTE:
[1] O Casel, La fête de Pâsques dans l'Église des Pères, cit., pp. 93-94.
[2] Cf. V. Krivosein, "Neistovyj revnitel" ("Zelotes manikotatos"), in MEPR 1/1957, n. 25, pp. 38-40. V. N. Il'in, Prepodobnyj Serafim Sarovskij, cit., p. 140. Simeão o Novo Teólogo, Catequeses, SC 104, Paris, 1964, pp. 45-47, 193.
[3] V. Krivosein, op. cit., pp. 37-38; cf. J. Klinger, Geneza sporu e opikleze (A gênese da controvérsia sobre a epiclese. Aspecto escatológico e memorial da eucaristia no cânone dos primeiros séculos), Varsóvia, 1969, pp. 23-24.
[4] Capítulos teológicos, gnósticos e práticos, p. 66. Segundo O. Clément, L 'essor du christianisme oriental, cit., p. 31.
[5] O. Clément, op. cit., p. 31.
[6] SC 104, pp. 197-201; cf. B. Bobrinskoy, "Quelques réflexions sur la pneumatologia du culte", in EL 90/1976, nn. 5-6, pp. 383-384.
[7] Recentemente duas obras foram consagradas à teologia de são Simeão: W. Voelker, Praxis und Theoria bei Symeon den Neuen Theologen. Ein Beitrag zur Byzantinischen Mystik, Wiesbaden, 1974, e G.-A. Maloney, The mystic offire and light. Saint Symeon the New Theologian, Denville, Nova Jersey, 1975.
[8] Sentenças, Paris, 1949, pp. 28, 30.
[9] Hino XVIII: "Ensinamento misturado com teologia sobre as operações do amor, que não é senão a luz do Espírito Santo" (São Simeão o Novo Teólogo, Hinos, II, SC 174, Paris, 1971, pp. 83-85). As catequeses 1,5, 10 e 13 de são Simeão tratam especialmente da ressurreição.
[10] P. Florensky, La colonne et le fondement de la Vérite, cit., p. 79 (em russo, p. 112). As cartas de N. F. Fiodorov podem ser instrutivas aqui (Philosophie de La cause commune, Vernyj, 1906: I, Moscou, 1913; II, 2a ed., Westmead, 1970; 3a ed., Lausânia, 1988).
[11] "Clâmide"; cf. são Simeão o Novo Teólogo, Hinos, I (SC 156), Paris, 1969, pp. 150-151. Eis o texto da liturgia dita de são Clemente (chamada também "liturgia das Constituições apostólicas): "Nós te pedimos, Senhor, envia sobre este sacrifício teu Espírito Santo, testemunha dos sofrimentos do Senhor Jesus..." Cf. J. M. Neale e R. F. Littledale, The liturgies of SS. Mark, James, Clement, Chrysostom and Basil, and the Churches of Malabar, translated with introduction and appendices by..., 7a ed., Londres, s/d, p. 85; VIII livro: SC 326, p. 199; A Hamman, Prieres eucharistiques, ("Foi vivante" 113), Paris, 1969, p. 74; A. Hamman, Prieres des premiers chrétiens, 22ª ed., Paris, 1959, p. 168, com alusão a Hb 9,14: "...O sangue de Cristo, que, por um Espírito eterno, se ofereceu a si mesmo a Deus como vítima sem mancha...".
[12] Cf. o diálogo de são Serafim com Motovilov, especialmente a partir do momento da transfiguração. - Assinalemos que Luís Cláudio São Martinho (+ 1803) ensinava que antes da queda o tempo não existia. Considerava o tempo como resultado do pecado original, como o companheiro do nascimento e da morte. O tempo é também a fonte de nossa ressurreição (segundo V. N. Il'in, op. cit., pp. 139-140).
[13] Ikos 12, segundo V. N. Il'in, op. cit., p. 105.
[14] Contrariamente a uma opinião muito difundida, os pontos de vista de Orígenes, em particular no De Principiis I, 6 (PG 11, 165-169; SC 252, pp. 194-207) e III, 6 (PG 11, 331-332; SC 268, pp. 228-234) e no Contra Celsum (PG 11. 1641-1642; SC 132, 136, 147, 150, 227), e de são Gregório de Nissa (canonizado antes do III concílio ecumênico de 431 e chamado "Pai dos Padres" no VII concílio) não influenciaram o desenvolvimento da noção de apocatástase. Veja P. Evdokimov, L'amour fou de Dieu, Paris. 1973, pp. 101-103.
[15] Cf. G. Maloney, The cosmic Christ. Nova Iorque, 1968, pp. 124-125 (trad. pol.: Varsóvia, 1972. pp. 116-117). Não sabemos como isso sucederá, mas (Mc 9,49) "todos serão salgados com fogo".
[16] In illud, quando sibi subiecerit omnia, PG 44, 1316.
[17] De anima et resurrectione dialogus, PG 46. 157.
[18] Oratio catechetica magna, PG 45, 168; In Christi Ressurrectionem oratio 61, PG 46,612.
[19] In illud, quando sibi subiecerit omnia, PG 44, 1325.
[20] Capita ducenta, PG 90, 1172.
[21] Edição de Pierre Pascal, Braine-le-Comte (Bélgica), 1976, p. 235; cf. W. Hryniewicz, "Apokatastaza II: W. teologii", Encyklopedia Katolicka, Lublin, 1973, I. pp. 756-758, e especialmente Id., "L'espérance du salut universal. Réflexions sur la tradition orientale", in Wiez 21/1978, n. 237, pp. 27-44. obra que engloba com precisão todos os aspectos da concepção ortodoxa da apocatástase. A. Dapinski adota o ponto de vista oposto, resultante de juízo errôneo sobre ã condenação de Orígenes pelos concílios ecumênicos: "La doctrine de l'apocatastase avant as condamnation par les conciles oecuméniques", in WPAKP 7/1977. nn. 3-4. Ver também G. Sérikoff, "La doctrine de l'apocatastase chez le Pére des Péres et chez l'archiprête Serge Boulgakov", in Le Messager, 38/1971, nn. 101-102. p. 27; o sentido dado ao termo "eterno" na Bíblia e sua concepção do tempo têm aqui papel essencial.
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