Carta dos bispos da Amazônia ao povo brasileiro |
A
Comissão Episcopal Especial para a Amazônia da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB) e a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM-Brasil) divulgam nesta
quarta-feira, 19 de maio, a carta aprovada pelos bispos da Amazônia que
reunidos, de modo on-line, entre os dias 18 e 19 de maio, se dirigirem ao povo
brasileiro diante às ameaças a toda casa comum e, especialmente, ao bioma
amazônico.
Vatican News
No texto da carta aprovada pelos bispos da Amazônia
os prelados a firmam que se sentem “sensibilizados pela situação de
vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa comum, agravada pela pandemia da
Covid-19, e pelo acirramento das disputas territoriais com expansão das
atividades minerais e do agronegócio em terras de populações
tradicionais”. Na mensagem, os bispos ressaltam que o cenário político
indigenista vivido no Brasil é de “retrocesso” e que a “crise socioambiental,
denunciada em 2019 durante o Sínodo, acentuou-se durante a pandemia”.
Os bispos fazem, ainda, um apelo às mais variadas
lideranças de cristãos leigos e leigas que “não desaminem da luta” e pedem que
a “sensibilidade para com os mais pobres seja permanente”.
Confira a versão na íntegra da carta no arquivo em
formato PDF aqui e abaixo:
CARTA ABERTA DO ENCONTRO DOS BISPOS DA AMAZÔNIA
LEGAL
Ao povo brasileiro,
“Vi, então, um novo céu e uma nova terra, morada de
Deus com sua gente (…).
Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.
Sim! As coisas antigas passaram! Eis que faço novas todas as coisas” (cf Ap
21, 1- 5).
“Cristo aponta para Amazônia”
A convocação de São Paulo VI, que repetidas vezes
nos inspirou como interpelação, se configura agora como profecia: os olhares se
voltam para Amazônia, pela riqueza da sua biodiversidade e de seus povos, e
isto nos alegra; mas também olhares ambiciosos, que lançam sobre a região um
avanço de depredação e ameaça à vida, e isto nos causa indignação. Como Igreja
Católica, também nós, lançamos nosso olhar vigilante, nossa escuta
contemplativa e esperançosa, nosso comprometimento inequívoco; levantamos nossa
voz, renovamos os apelos à ecologia integral, ao cuidado com a casa comum, à
proteção e preservação da região e renovamos nosso empenho como aliados dos
povos desta Querida Amazônia.
Nós, bispos da Amazônia, presbíteros e diáconos,
religiosos e religiosas, cristãos leigos e leigas em profunda sintonia com o
Sínodo Pan-Amazônico, reunidos nos dias 18 e 19 de maio de 2021, desta vez nos
servindo das tecnologias de comunicação, de distantes nos fizemos próximos,
como nos fazemos próximos do nosso povo como uma Igreja que se põe à escuta e
acolhe as culturas e tradições amazônicas, expressão do Espírito de Deus. No
exercício de nossa missão evangelizadora dirigimos esta mensagem a toda
sociedade, aos povos da Amazônia, aos homens e mulheres comprometidos com a
defesa da vida. E o fazemos profundamente sensibilizados pela situação de
vulnerabilidade e ameaças que sofre toda casa comum, agravada pela pandemia da
Covid-19, e pelo acirramento das disputas territoriais com expansão das
atividades minerais e do agronegócio em terras de populações tradicionais. A
consequência desse cenário de morte tem sido as inúmeras e incontáveis vítimas
da pandemia. Chegamos aos quase 440.000 mortos, além dos que sucumbiram diante
de processos de violência no campo e na cidade. Nos solidarizamos com todos os
que tombaram vítimas do descaso e dos projetos de morte. Como o salmista,
reconhecemos a preciosidade da vida de cada homem e de cada mulher que partiu:
“É de alto preço, aos olhos do Senhor, a morte dos seus fiéis” (Sl 116,15).
Nosso olhar vigilante
Acompanhamos estarrecidos, mas não inertes, o
desenrolar de um arquitetado projeto genocida que, por sua vez, revela o
devastador agravamento de uma crise que escancara a pobreza diante da
escandalosa concentração de riquezas. Este é o sinal evidente da perversidade
de uma economia de mercado, embasada no capital especulativo, que se alimenta
das necessidades dos estados nacionais, fazendo destes seus novos consumidores.
Assim, o capital sequestra a autonomia dos Estados, exige e dita os novos rumos
da política, rompe com as históricas conquistas sociais, desmonta as
instituições e políticas de seguridade, alimenta-se das posturas extremistas,
que por sua vez buscam na religião sua legitimidade de expressão. Essa
perversidade busca revestir-se de um maquiado desejo de liberdade e de
autonomia diante da lei, derruba os marcos legais que garantem o equilíbrio das
relações e a salvaguarda do bem comum. As lutas das populações da Amazônia têm
diante de si o escandaloso desafio da pretensiosa legalidade do ilícito. Ou
apelamos para a garantia legal da vida e dos territórios, ou nos defendemos
quando o extermínio se torna lei!
Este dinamismo é escancaradamente presente diante
da questão das lutas dos povos indígenas. O cenário político indigenista vivido
no Brasil é de retrocesso, com o agravamento das violações dos direitos destes
povos, principalmente no que se refere à regularização dos seus territórios.
Eles enfrentam invasões de suas terras, incentivadas por estratégias políticas
que favorecem a exploração, por garimpeiros, mineradoras, madeireiros,
desmatadores, agentes do agronegócio, entre tantos outros, gerando toda espécie
de violências e violações de direitos humanos e da natureza. Somam-se os
incêndios, poluição das águas dos rios, contaminação de peixes, contaminação
das pessoas e dos animais; assassinatos, violência sexual, pandemia,
desassistência.
Percebemos, também, que a crise socioambiental,
denunciada em 2019 durante o Sínodo, acentuou-se durante a pandemia e revela os
limites de um sistema que está sendo rapidamente destruído e que tende a
perecer se a crise não for detida. Preocupa-nos a cadeia de iniciativas em
vista do desmonte e fragilização da legislação socioambiental e fundiária: O PL
3729/2004 que desmonta o sistema de licenciamento ambiental; o PL 2633/2020 e
PL 510/2021 que abrem as “porteiras” para a grilagem de terras; o PL 191/2020
permitindo a mineração e atividades econômicas em terras indígenas; o PL
6299/2002 que flexibiliza fabricação e uso de agrotóxicos. A profecia não
silencia diante destas práticas: “Ai dos que inventam leis injustas, dos
escribas que referendam a injustiça para oprimirem os pobres no julgamento” (Is
10,1-2).
Enquanto escrevemos estas linhas, populações que há
mais de 30 anos estavam presentes em seu chão, são despejadas no Assentamento
Jacutinga em Porto Nacional – Tocantins, contrariando a recomendação do
Conselho Nacional de Justiça de não executar decisões desse tipo em tempo de
pandemia.
Outra série de agressões vão se acumulando neste
cenário que não escapa aos nossos olhos: as ameaças às unidades de conservação,
o acirramento da violência no campo e na cidade, a crise migratória, o
feminicídio, a exploração sexual, o trabalho escravo, o tráfico de pessoas,
entre tantos. Como se não bastassem essas crises provocadas pela intervenção
humana, o fenômeno das enchentes, que pode ser agravado pelas mudanças
climáticas, castiga nossas populações ribeirinhas. De olho nas águas,
percebemos uma iminente crise hídrica como pauta de um próximo embate.
Somos sabedores que os governantes têm o dever
constitucional de agir para evitar a destruição das riquezas naturais e
implementar políticas públicas que amenizem a situação de desigualdade e
pobreza, porém, na Amazônia isso não vem acontecendo. Assistimos um governo que
vira as costas a esses clamores, opta pela militarização em seus quadros,
semeia estratégias de criminalização de lideranças e provoca conflito entre os
pequenos. Dói em nossos corações de pastores as imagens de escárnio e zombaria
das dores de nossa gente: “Nossa alma está farta, em extremo, da
zombaria dos satisfeitos e do desprezo dos soberbos” (Sl 123,4).
Não obstante este cenário, mantemos viva e acesa
nossa esperança no Ressuscitado: “No mundo tereis aflições, mas tende coragem!
Eu venci o mundo”. (Jo 16,33)
Nossa escuta contemplativa e esperançosa
Aprendemos da experiência do Sínodo da Amazônia um
olhar esperançoso. A Amazônia é também resposta! Ela irrompe como novo sujeito
e como novo paradigma pela questão ecológica e pelos seus povos originários. A
partir da Amazônia fomos desafiados a assumir esses novos paradigmas em nossa
ação evangelizadora. Os caminhos traçados pelo Sínodo da Amazônia, catalogados
em forma de compromisso no novo Pacto das Catacumbas pela Casa Comum, deixaram
evidente a necessidade de superar uma lógica colonizadora, de escolher a
periferia como centro da Igreja, de assumir o caminho da inculturação e
interculturalidade, seja no campo dos ministérios como das estruturas: uma
Igreja com o rosto Amazônico.
Constatamos com alegria a atuação de uma infinidade
de comunidades constituídas e milhares de lideranças de cristãos leigos, na sua
maioria mulheres, que atuam no campo da evangelização e educação
socioambiental. A partir dos relatórios dos Regionais da CNBB na Amazônia,
verificamos que estamos a passos lentos, mas progressivos, tornando concretos
os caminhos de conversão propostos no Documento Final do Sínodo e os quatro
Sonhos do Papa Francisco na Exortação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia.
Foi justamente para retomarmos o ardor do Sínodo da Amazônia e apreciar os
passos dados que fomos convocados para este encontro. Perguntamo-nos: “Que
mudanças efetivamente têm ocorrido em nossa ação evangelizadora desde as
indicações do Sínodo?”
Nosso comprometimento inequívoco
A Igreja na Amazônia já tem um caminho. Somos uma
Igreja que age sob a força e inspiração do Espírito de Deus. A liberdade e
ousadia do Evangelho são mais fortes que as amarras e os desgastes das
estruturas. A conversão pastoral, desde a Conferência de Aparecida (2007), nos
interpela, a conversão integral, desde o Sínodo da Amazônia, nos inquieta.
Somos sabedores dos desafios de manter a unidade em tempos de conflitos, do
nosso papel mediador. Não somos ingênuos de pautar nosso agir em polarizações
agressivas, como insistem até mesmo alguns que dizem professar a fé em Jesus
Cristo, mas não haja dúvidas de que lado nós estamos: por causa do Evangelho e
do Reino reafirmamos nossa incondicional escolha por estas populações, por
estes territórios, por estas vidas ameaçadas. Em nada nos fascina qualquer
aproximação com esses sistemas perversos, mas também aos que neles se envolvem,
anunciamos a Boa Nova de Jesus: “Cumpriu-se o tempo, e está próximo o Reino de
Deus. Arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15)!
Não estamos sozinhos, há outros interlocutores da
fé cristã, de outras expressões religiosas, de organizações populares, novos
sujeitos emergentes; a partir dos pequeninos nos sentimos irmanados neste
compromisso. “Tudo isso nos une. Como não lutar juntos? Como não rezar juntos e
trabalhar lado a lado para defender os pobres da Amazônia, mostrar o rosto
santo do Senhor e cuidar de sua obra criadora?” (Querida Amazônia 110).
Sentimo-nos impulsionados e animados a reafirmar
alguns compromissos:
- Prosseguir
e avançar em nossa pauta pastoral as reflexões e indicações ousadas do Sínodo
em torno dos ministérios, como apresenta o Documento Final do Sínodo nos
números 103 e 111, e da formação inculturada dos nossos agentes;
- Elaborar
um plano estratégico com diretrizes pastorais, que encarne o sonho social,
ecológico, cultural e eclesial para a Pan Amazônia;
- Incentivar
a questão da segurança alimentar como estratégia de cuidado pela vida;
- Reafirmar
nosso envolvimento efetivo com o Pacto pela Vida e pelo Brasil, unindo-nos
ao “coro dos lúcidos” fazendo nossas as suas pautas: a vacina para todos,
a defesa do SUS, o auxílio emergencial digno, pelo tempo que se fizer
necessário e a investigação da responsabilidade pela má gestão do sistema
de saúde em meio à pandemia do coronavírus. Da mesma forma tornar vivo o
Pacto Educativo Global, proposto Papa Francisco, em todas as regiões da
Amazônia. Conclamamos todas as instâncias eclesiais e a sociedade como um
todo a unir-se neste engajamento;“O que vos é sussurrado ao ouvido,
proclamai-o sobre os telhados” (Mc 10,27). Tendo descoberto a capilaridade
das novas dinâmicas de comunicação, das quais nos servimos para chegar
junto às nossas comunidades em tempos de distanciamento social, igualmente
queremos por meio destes recursos fazer chegar a todos e todas estas
nossas inquietações, esperanças e compromissos.
Exortamos, às mais variadas lideranças de cristãos
leigos e leigas, que não desanimem da luta, que renovem continuamente o senso
de comunhão eclesial, que a paixão pelo Reino de Deus seja sempre alimentada, e
que a sensibilidade para com os mais pobres seja permanente.
Não nos faltem a intercessão de nossos mártires,
companheiros de caminhada, e o olhar benevolente da Senhora de Nazaré, Mãe da
Amazônia: “esses vossos olhos misericordiosos a nós volvei”! A Mãe de Deus está
conosco. Sigamos em frente!
Amazônia, 19 de maio de 2021.
Participantes do Encontro Bispos da Amazônia Legal
Fonte:
CNBB
Vatican News
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