Papa
Francisco durante celebração em Roma Foto: Stefano Rellandini - 30.mar.2018 / Reuters |
Documento
que evidenciou preocupações sociais da Igreja foi publicado em 1891 pelo papa
Leão 13; Francisco pratica a doutrina no dia a dia.
Edison Veiga,
colaboração para a CNN
15 de maio de 2021
A doutrina social da Igreja Católica não é uma inovação do Papa Francisco, embora tenha
protagonismo em seu pontificado. Ela tem raízes no século 19 e completa 130
anos neste sábado (15), ganhando força em tempos de mudanças e crises, como a
que o mundo vive atualmente na pandemia do novo coronavírus,
e com problemas ambientais.
Comandar a Igreja significa, trocando em miúdos, ditar as regras de uma instituição
que se propõe universal a partir de um trono localizado em Roma. Assim, é
natural que há séculos a comunicação dos papas com bispos e comunidades ao
redor do planeta fosse por meio de cartas.
O formato contemporâneo das cartas, chamadas de encíclicas, começou com
o papa Bento 14 (1675-1758), que em 1740, ano em que assumiu o pontificado,
escreveu um documento dirigindo-se a todos os bispos do mundo, a “Ubi Primum”.
Mas se os grandes temas abordados pelos papas nessas missivas oficiais
versavam tão somente sobre questões teológicas, da fé, foi há exatos 130 anos,
em 15 de maio de 1891, que Leão 13 (1810-1903) inaugurou uma nova era: com a
encíclica “Rerum Novarum” — “Das Coisas Novas”, em português —, tratou de um
tema social. O subtítulo de sua carta era “sobre a condição dos operários”.
Para os estudiosos do Vaticano, “Rerum Novarum” é o documento basilar da
doutrina social da Igreja, um compilado de 12 encíclicas publicadas de lá para
cá, inclusive as duas últimas escritas pelo papa.
Francisco e a marca social
“Se os últimos papas manifestavam o ensino social da Igreja por meio das
encíclicas, Francisco não se limita a elas. Seu pontificado é todo social, por
gestos e articulações, junto à sociedade”, explica frei Marcelo Toyansk
Guimarães, assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB).
Isso fica claro nos diálogos de Francisco com lideranças de várias
regiões e autoridades políticas, buscando um mundo mais justo. E também em
gestos cotidianos, como quando ele determina que o Vaticano cuide de pessoas em
situação de rua, acolha imigrantes e, em tempos de pandemia, atue na defesa
irrestrita do direito universal à vacinação.
“Francisco tem muito bem expresso o ensino social da Igreja no mundo
desigual de hoje, quando a desigualdade tem avançado, pela pandemia e pelo
capitalismo financeiro que se impõe com desmonte de direitos sociais,
trabalhistas em benefício cada vez mais de uma pequena elite que controla o
mercado”, completa Guimarães.
“No caso de Francisco, quase tudo o que ele faz é social: os textos, as
falas… Não tem nenhum [gesto ou documento] de caráter puramente teológico”,
analisa o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade
Gregoriana de Roma.
Em seus oito anos de pontificado, Francisco publicou três encíclicas. A
primeira, “Lumen Fidei” — ou “Luz da Fé” —, é teológica e já estava toda
rascunhada por seu antecessor, Bento 16.
A marca do pontificado do argentino veio nas seguintes, ambas sociais:
“Laudato Si’”, de 2015, é uma crítica ao consumismo e um alerta sobre a
necessidade de uma unidade global para limitar o aquecimento global e conter a
degradação ambiental. “Fratelli Tutti”, do ano passado, é um apelo para que a
fraternidade e a consciência social sejam empregadas na reconstrução de um
mundo mais justo, considerando o cenário pós-Covid-19.
As mudanças e as crises do mundo
A primeira encíclica social surgiu como uma resposta de Leão 13 aos
movimentos decorrentes da primeira fase da industrialização. A Europa vivia uma
época de formação dos Estados nacionais, o Manifesto Comunista, publicado em
1848, ecoava, e o fenômeno do êxodo rural começava a inflar as cidades. “A
carta de Leão 13 denuncia a exploração a que eram submetidos os operários que
viviam em condições aviltantes e morriam miseravelmente sem saúde nem recursos,
particularmente crianças e mulheres”, explica o filósofo e teólogo Fernando
Altemeyer Júnior, chefe do departamento de Ciências Sociais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Encíclica do Papa Leão 13 foi a primeira da doutrina social
da Igreja CatólicaFoto: Vaticano, domínio público via
Wikimedia Commons
“O documento surge em resposta ao socialismo e aos movimentos
sindicais”, complementa a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de
história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “O
pontífice quis, através do texto, promover, grosso modo, a conciliação entre
patrões e empregados, ressaltar a importância da solidariedade cristã, bem como
promover uma visão equilibrada em relação à intervenção estatal e à propriedade
privada.”
Por tradição, das 12 cartas que compõem a doutrina social da Igreja,
metade foi publicada em maio — em referência à pioneira. “Quadragesimo Anno”
foi lançada pelo papa Pio 11 (1857-1939) há exatos 90 anos. Era um contexto
pós-crise de 1929, e o pontífice criticou os rumos do capitalismo, mas
rejeitando o socialismo. Defendeu a ideia de priorizar a ética e a política
social antes da economia.
Com a crise atual, é inevitável traçar paralelos. “[Na ocasião,] o papa
leu a situação econômica e social e analisou também alguns grupos financeiros.
E reafirmou que o salário do trabalhador deve ser proporcional às necessidades
do trabalhador e também de sua família”, aponta Guimarães. “Isso é importante,
porque após uma crise, a tendência é jogar o peso sobre os mais frágeis da
sociedade”.
Tais princípios acabaram se tornando a base da democracia cristã,
sobretudo nas vertentes europeias, com a defesa de um Estado de bem-estar
social — e o princípio da subsidiariedade.
O Papa João 23 (1881-1963) divulgou “Mater et Magistra” em 15 de maio de
1961. “Das encíclicas sociais, a ‘Mater et Magistra’ é considerada uma das mais
populares da história”, contextualiza Medeiros. “O estilo em que o texto foi
redigido visava, justamente, atingir as massas. De linguagem acessível, foi
feita ‘para ser comunicada’ realmente, acompanhando a tendência do tempo”.
No contexto da Guerra Fria, o documento é uma clara defesa da
democracia, do estado de bem-estar social e da descolonização da África e da
América Latina.
Papa João 23 defendeu a democracia,
o estado de bem-estar social e a descolonização
da ÁfricaFoto: De Agostini,
Domínio público via Wikimedia Commons
Meio século atrás, Paulo VI (1897-1978) escreveu “Octogesima
Adveniens”. Como aponta Guimarães, era um mundo com ditaduras acirradas,
principalmente na América Latina, e pós-manifestações de maio de 1968, com suas
utopias. “[O documento] buscava novos horizontes em meio à opressão e ao
autoritarismo, já com o espírito do diálogo, resultante do Concílio Vaticano II
[série de conferências realizadas entre 1962 e 1965 para modernizar a Igreja]”,
diz o frade.
Os problemas ambientais e a pandemia
Em 1991, João Paulo II (1920-2005) publicou “Centesimus Annus”. E foi
também em maio, mas em um dia 25, que Francisco lançou a “Laudato Si’”, em 2015
— considerada a primeira encíclica verde, ou seja, a primeira que trata
fundamentalmente de temas ambientais.
E foi com o mundo desnorteado pela pandemia de Covid-19 que Francisco
apresentou sua mais recente carta, “Fratelli Tutti”, em outubro. “Nela fica
explícita a crise civilizatória da humanidade mergulhada na pandemia e o
planeta atingido pelo aquecimento e crises ecológicas graves e destrutivas. O
papa pede uma nova economia e uma nova política. Outro mundo possível, para
curar esse mundo doente”, ressalta Altemeyer. “Critica o neoliberalismo como
mortal e desumano e busca debater com os economistas uma nova proposta
sistêmica. É de fato uma carta revolucionária contra os grandes conglomerados e
grupos coloniais em favor da paz”, completa.
Francisco também não se furta a abordar temas espinhosos do presente,
como ao fazer uma contundente crítica à indústria de armas e quando analisa o
uso das fake news para embasar os fenômenos totalitaristas de
extrema-direita.
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