Crédito: Impacto Ambiental |
PARA ALÉM DA ALDEIA Entrada vertiginosa da
internet, das redes sociais e dos celulares afetou a dinâmica das comunidades e
suas tradições, mas, ao mesmo tempo, despertou nos jovens a vontade e a
criatividade para levar a valorização da cultura indígena para os meios
digitais.
por Cibele Lana em 19/04/2021
QUANDO começou a
frequentar uma escola na cidade, ainda criança, o indígena xavante Cristian Wariu era alvo de bullying, com apelidos pejorativos por parte dos
amiguinhos. “Existiam esses apelidos, mas quando eu explicava por que um
indígena estava ali e sobre a minha cultura, isso se tornava admiração,
interesse. No fim da escola, as pessoas já me chamavam pelo nome”, conta.
Hoje, com 22 anos e
consciente do poder da informação e da dinâmica da internet, Cristian é um
influenciador digital indígena, com mais de 400 mil visualizações
em seu canal do YouTube, aproximadamente 30 mil seguidores no Instagram e outros milhares no Tik Tok. “A minha missão ao produzir conteúdo indígena
sempre foi a mesma e sempre vai ser: melhorar a convivência com os povos
indígenas, desconstruir essas ideias que se enraizaram sobre o povo indígena,
trazer não só a minha voz, mas também a de outros indígenas e ocupar esses
espaços para mostrar por que somos indígenas e por que existimos”,
completa.
A história de
Cristian retrata um dos impactos muito positivos das novas tecnologias em povos
originários ao retransmitir a valorização da cultura e do modo de vida,
amplificando suas vozes para a sociedade.
Mas a entrada das
novas tecnologias nessas comunidades também desencadeou uma série de desafios,
especialmente pela rapidez e escassez de informação sobre seus usos e
malefícios. Muitas aldeias já têm sinal de wi-fi e
amplo acesso à internet e às redes sociais. “Os nativos estão
sendo bombardeados por fake news sobre
a vacina e não estão com capacidade de lidar com isso”, explica Delcio Yokota,
coordenador de gestão da informação no Instituto de Pesquisa e Informação
Indígena, que tem ampla atuação com povos indígenas no Amapá, especialmente na
formação de professores. De acordo com Yokota, muitos nativos têm se recusado a
receber a vacina por conta de mensagens no WhatsApp, mesmo
sendo um grupo prioritário para vacinação.
Ao expandirmos o
olhar para a história, compreendemos que essa é apenas uma consequência recente
de um processo que já acontece há muito tempo a partir da relação de contato
com não indígenas.
Entre
riscos e conquistas
A professora da
Universidade do Estado do Amazonas e doutoranda em Antropologia Social Romy
Cabral trabalha com povos indígenas há 20 anos, especialmente com o povo
Munduruku, na terra Coatá-Laranjal, que também abriga o povo Sateré-Mawé. Ela
relata que nas últimas duas décadas as relações de contato nessa região também
foram muito fortes. A professora acompanha as comunidades desde 2001, quando o
principal meio de comunicação era a radiofonia e
ainda havia apenas dois aparelhos de televisão na região. “Às 19h, eles ligavam
o motor de luz (com diesel) e muitos iam para as portas da casa de quem tinha
TV para ver o jornal e a novela. Em tempo de Copa do Mundo, faziam ‘cotinha’
para colocar diesel no motor e poder assistir aos jogos durante o dia.”
Em meados de 2010,
os povos indígenas começaram a receber os auxílios do governo federal, e um
programa levou a energia elétrica para muitas aldeias. O cenário começou a
mudar desde então. “Teve início uma relação de consumo que não foi diferente da
nossa”, relata a professora. As cidades mais próximas começaram a enviar barcos
carregados de eletrodomésticos. “Cada família tem, hoje, um ou dois aparelhos
celulares usados para tirar fotos, para o ensino tecnológico nas escolas, para
baixar jogos e aplicativos de conversa”, completa.
O kumu (expressão
similar a pagé), também antropólogo e escritor indígena, Jaime Diakara, do povo
Desano, admite que o impacto das novas tecnologias tem provocado mudanças de
hábitos nas aldeias, especialmente na transmissão das histórias de forma oral e
na formação das crianças sobre o papel das lideranças indígenas. “Você não vê
as crianças perguntarem para os pais quem era a vovó, o papel de liderança da
vovó. O pai está sendo trocado por aplicativo.”
Por outro lado,
Diakara enfatiza que a cultura é dinâmica e que o fato de as novas tecnologias
terem chegado aos povos originários não faz deles menos indígenas. “A cultura
sempre evolui, movimenta conforme o tempo e o espaço. O homem cria e recria. Essas tecnologias chegaram para
as comunidades como ferramenta para a educação, pesquisa, divulgação de
produtos e da sua identidade. Antes, os nativos só assistiam ao que os brancos
faziam, mas agora os brancos começam a assistir à cultura dos indígenas.”
Essa é também a
percepção dos jovens indígenas Erimar Miquiles (Sateré-Mawé) e Davi Marworno
(Galibi-Marworno). Eles concordam que as novas tecnologias impactaram o
cotidiano especialmente da juventude, deixando-a mais ociosa, dificultando a
transmissão da língua e da oralidade e que há um amadurecimento no processo de
conscientização de uso da internet nas aldeias. Mas, ao mesmo tempo, defendem
que a inclusão digital tem uma importância crucial para o ativismo dessa
parcela da população. Antigamente, era preciso um esforço enorme de juntar as
aldeias para denunciar barcos pesqueiros, hidrelétricas e outras intervenções
em terras indígenas. Atualmente, com o acesso às plataformas digitais, conseguem se articular e fazer denúncias mais eficazes na internet.
Davi é cineasta e já produziu dois filmes no Oiapoque.
Para ele, o momento é de experimentação e cada um tem uma relação com as
ferramentas. “Mas também é tempo de provocarmos os povos: como podemos melhorar
nossas escolas, nossos coletivos de artistas, valorizar nossa cultura e nossa
identidade. (...) Com o meu trabalho, sinto que é importante valorizar os mais
velhos, a língua, o que a comunidade está desenvolvendo e usar isso como
combate ao discurso de ódio. São processos de amadurecimento individual e
coletivo que estamos desenvolvendo.”
De acordo com a
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a população indígena brasileira é
formada por aproximadamente 900 mil pessoas, de 305 povos, falantes de 274 línguas.
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