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sexta-feira, 21 de maio de 2021

TEOLOGIA: Cristo, o Espírito Santo e a Igreja (Parte 3/5)

Ecclesia

Cristo, o Espírito Santo e a Igreja

Ioannis D. Zizioulas*
Trad.: Pe. André Sperandio

3. Implicações para a síntese da eclesiologia

Tudo isto soa assim como algo teórico. Aplicando-se a existência concreta da Igreja será mais fácil explicar algumas das peculiaridades da eclesiologia ortodoxa.

a) A importância da Igreja local em eclesiologia

Chegou a brilhar em nossa época com força especial a raiz da obra de N. Afanasiev e sua «eclesiologia eucarística». Isto porém não foi ainda justificado em termos de pneumatologia. Tratarei de fazer aqui um primeiro intento referindo-me ao que acabei de dizer sobre o caráter constitutivo da pneumatologia tanto na cristologia como na eclesiologia.

A Igreja é o Corpo de Cristo, o que significa que foi instituída mediante o único acontecimento cristológico: é una porque Cristo é uno, e deve seu ser a este Cristo. Se a pneumatologia não é ontologicamente constitutiva da cristologia, isto pode significar que há primeiro uma igreja e depois muitas igrejas. Por exemplo, K. Rahner argumenta que a «essência» da Igreja radica na Igreja universal; é a existência da Igreja o que a faz local [20]. Entretanto, se se faz da pneumatologia algo constitutivo da cristologia e da eclesiologia, não é possível falar nesses termos. O espírito é neste caso o que constitui ontologicamente o Corpo de Cristo. O acontecimento pentecostal é um acontecimento eclesiologicamente constitutivo. O único acontecimento de Cristo toma a forma de acontecimentos (em plural) que são tão ontologicamente primordiais como o próprio acontecimento de Cristo. As Igrejas locais são tão primordiais em eclesiologia como a Igreja universal. Nessa eclesiologia não se pode conceber uma prioridade da Igreja universal sobre a Igreja local.

Desde Afanasiev essa ideia  se tornou frequente na teologia ortodoxa. Porém, nisso há um perigo que Afanasiev não contemplou e que muitos teólogos ortodoxos tampouco são capazes de ver. Devido à falta de uma síntese adequada entre cristologia e pneumatologia na eclesiologia ortodoxa, frequentemente se assume demasiado facilmente que a eclesiologia eucarística conduz a prioridade da Igreja local sobre a Igreja universal [21], a uma espécie de «congregacionalismo». Porém, como tentei mostrar em outro estudo [22], Afanasiev estava equivocado ao tirar estas conclusões, porque a natureza da eucaristia aponta não em direção a prioridade da Igreja local, mas em direção a simultaneidade da local e da universal. Há somente uma eucaristia que sempre se oferece em nome da «Igreja una, santa, católica e apostólica». O dilema «local ou universal» é transcendido na eucaristia e o mesmo ocorre com qualquer dicotomia entre cristologia e pneumatologia.

Para tornar isto ainda mais concreto, ocupemo-nos de como de fato funciona esta simultaneidade em eclesiologia. Isto nos leva diretamente à questão das instituições eclesiais: que estruturas e instituições eclesiais existem que ajudam a Igreja a manter o equilíbrio adequado entre o local e o universal? Como devem interpretar-se estas estruturas e instituições para que façam justiça a essa síntese adequada entre cristologia e pneumatologia pela qual temos advogado?

b) O significado da conciliaridade

É verdade que a ortodoxia não tem um papa. Mas não é verdade que em substituição celebre concílios. O Concílio não se apresenta na teologia ortodoxa como um substituto do Papa católico, e isso pela simples razão de que o concílio não pode exercer o papel do Papa ou substituir seu ministério. A verdadeira natureza da conciliaridade na teologia ortodoxa somente pode se entender à luz do que foi denominado o papel constitutivo da pneumatologia na eclesiologia e do fato de que a pneumatologia supõe a noção de comunhão.

raison d'être teológica de la conciliaridade - ou da instituição do sínodo - há de encontrar-se na idéia de que a comunhão (que, como vimos, é uma característica da pneumatologia) é uma categoria ontológica da eclesiologia. Aqui se torna evidente a importância que a teologia trinitária tem para eclesiologia. Parece existir uma equivalência completa entre a teologia trinitária como se desenvolveu particularmente entre os Padres capadócios -especialmente com São Basílio - e a eclesiologia ortodoxa. Deixe-me dizer algo a este respeito, porque acredito que isto é essencial e não suficientemente valorizado.

Uma das particularidades mais chamativas do ensino de São Basílio sobre Deus, comparada com a de Santo Atanásio e certamente com a dos Padres latinos, é que parece não estar satisfeito com a noção de substância como categoria ontológica, e tende a substitui-la pela de κοινωνία, o que é suficientemente significativo para a nossa discussão. Em vez de falar da unidade de Deus em termos de sua natureza una, prefere falar dela em termos da comunhão de pessoas: a comunhão é, para Basílio, uma categoria ontológica. A natureza de Deus é a comunhão [23]. Isto não significa que as pessoas tenham a prioridade ontológica sobre a substância una de Deus, mas que a substância una de Deus coincide com a comunhão das três pessoas.

Em eclesiologia pode-se aplicar tudo isto à relação entre a Igreja local e a universal. Há uma Igreja como há um Deus. Porém, a expressão desta Igreja una é a comunhão das muitas Igrejas locais. A comunhão e a unidade coincidem em eclesiologia.

Contudo, ao contemplar o aspecto institucional da eclesiologia, segue-se que a instituição que se supõe deva expressar a unidade da Igreja deve ser uma instituição que expresse a comunhão. Posto que não existe nenhuma instituição que derive sua existência ou sua autoridade de algo que preceda ao acontecimento de comunhão, senão do acontecimento de comunhão mesmo (isto é o que significa fazer da comunhão algo ontologicamente constitutivo) a instituição da unidade universal não pode ser autossuficiente ou explicável por si mesma  ou anterior ao acontecimento da comunhão; depende dele. Entretanto, de igual maneira não há comunhão anterior à unidade da Igreja: a instituição que expressa esta comunhão deve ser acompanhada mediante uma indicação de que há um ministério que salvaguarda a unidade que a comunhão pretende expressar.

Na sequência podemos ser mais concretos e interpretar nossa visão da sinodalidade à luz destes princípios teológicos.

A instituição canônica do sínodo  é frequentemente mal-entendida na teologia ortodoxa. Às vezes, chama ao sínodo de «a maior autoridade da Igreja» como se a ortodoxia fosse o contraponto «democrático» à Roma monárquica. Muitos ortodoxos consideram o concílio em termos de konziliarismus ocidental do final da Idade Média. O verdadeiro significado do sínodo na tradição ortodoxa, entretanto, me parece que se dá no cânon 34 dos chamados Cânones Apostólicos;  e seu sentido se baseia em dois princípios fundamentais expressos pelo cânon. O primeiro princípio é que em cada província deve haver uma cabeça - uma instituição de unidade -. Não há possibilidade de  alternância ou de ministério coletivo que substitua a esta única cabeça . Os bispos ou as Igrejas locais não podem fazer nada sem a presença desse «uno». Por outro lado, o mesmo cânon proporciona um segundo princípio fundamental, a saber, que o «uno» não pode fazer nada sem os «muitos» [24]. Não há ministério ou instituição que não se expresse em forma de comunhão. Não há «uno» que não seja ao mesmo tempo «muitos». E isto não é o mesmo que a cristologia determinada pela pneumatologia mencionado anteriormente? A pneumatologia, ao ser constitutiva tanto da cristologia como da eclesiologia, torna impossível considerar Cristo como um indivíduo, isto é, sem seu Corpo, ou considerar a Igreja como una  sem considera-la simultaneamente como «muitas».

Para concluir este tema, não se pode compreender corretamente a teologia ortodoxa se se considera a Igreja como uma confederação de Igrejas locais. A visão ortodoxa da Igreja, ao menos é o que a mim parece ser, requer uma instituição que expresse a unidade da Igreja e não simplesmente sua multiplicidade. Porém, a multiplicidade não deve ser submetida à unidade; é constitutiva da unidade. As duas, a unidade e a multiplicidade, devem coincidir em uma instituição que possua um duplo ministério: o ministério do πρώτος (o primeiro) e o ministério dos «muitos» (as cabeças das Igrejas locais).

Notas:

[21] Cf. infra, capítulo 5, nota 11 (216).

[22] Cf. infra, capítulo 4 (p. 157ss.).

[23]. Por exemplo, cf. Basílio, De Sp. S . 18 (PG 32, 194C): «A unidade (de Deus) se acha na koinonia tes theotetos ». Cf., ibid, 153A e 156A. Um estudo detalhado de Basílio mostra que para ele o sentido de homoousios se expressa melhor mediante (...) o uso do termo koinonia . (De Sp. S. 68; Ep. 52, 3; C. Eun. 2,12 etc.) Sobre isto cf. A. Jevtich, Between the ‘Niceans' and the ‘Easterns' The Catholic Confession of. St. Basil : St. Vladimir's Theological Quartely 24, (1980) 244. Para um tratamento mais amplo, cf. meu trabalho The Teaching of the Second Ecumenical Council on the Holy Spirit and Ecumenical Perspective , em J. Saraiva Martins, Credo in Spiritum Sanctum (Atas do Congresso teológico internacional sobre Pneumatologia, Roma, 22-26 de março de 1982), vol. I, 1983, especialmente 29-54.

[24]. O texto do cânon é o seguinte: «Os bispos de toda nação (região ou povo) devem saber quem é o primeiro ( próton) entre eles e lhe estimar como seu cabeça e não fazer nada importante sem seu consentimento; porém cada deverá ocupar-se somente dos assuntos que pertençam a sua própria diocese e ao território submetido a ela. Que ele (isto é, o primeiro) não faça nada sem o consentimento de todos os demais (bispos) porquê deste modo haverá unanimidade e Deus será glorificado por Cristo no Espírito Santo.

Referência:

*ZIZIOULAS, Ioannis D. . Cristo, el Espírito y la Iglesia. In: ZIZIOULAS, Ioannis D. El Ser Eclesial. Persona, comunión, Iglesia . 1ª. ed. Salamanca: Sígueme, 2003. cap. 3, p. 137-155.


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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF