Garotada Católica |
Cada
mês, em 10 episódios, um vídeo com as reflexões do Papa e o testemunho de
famílias de todas as partes do mundo – realizado em colaboração entre o
Dicastério Leigos Família e Vida e Vatican News – ajuda a reler a Exortação
apostólica, com a contribuição de um subsídio que pode ser baixado para o
aprofundamento pessoal e comunitário. Porque ser família, recorda Francisco, é
sempre “principalmente uma oportunidade”.
(n. 58-88)
O OLHAR FIXO EM JESUS: A VOCAÇÃO DA FAMÍLIA
58. Diante das famílias e no meio delas, deve
ressoar sempre de novo o primeiro anúncio, que é o «mais belo, mais importante,
mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário»[50] e «deve ocupar o centro da atividade
evangelizadora».[51] É o anúncio principal, «aquele que
sempre se tem de voltar a ouvir de diferentes maneiras e aquele que sempre se
tem de voltar a anunciar, duma forma ou doutra».[52]Porque «nada há de mais sólido, mais
profundo, mais seguro, mais consistente e mais sábio que esse anúncio» e «toda
a formação cristã é, primariamente, o aprofundamento do querigma».[53]
59. O nosso ensinamento sobre o matrimónio e a
família não pode deixar de se inspirar e transfigurar à luz deste anúncio de
amor e ternura, se não quiser tornar-se mera defesa duma doutrina fria e sem
vida. Com efeito, o próprio mistério da família cristãs só se pode compreender
plenamente à luz do amor infinito do Pai, que se manifestou em Cristo entregue
até ao fim e vivo entre nós. Por isso, quero contemplar Cristo vivo que está
presente em tantas histórias de amor e invocar o fogo do Espírito sobre todas
as famílias do mundo.
60. Dentro deste quadro, o presente capítulo
recolhe uma síntese da doutrina da Igreja sobre o matrimónio e a família.
Também aqui citarei várias contribuições prestadas pelos Padres sinodais nas
suas considerações acerca da luz que a fé nos oferece. Eles partiram do olhar
de Jesus, dizendo que Ele «olhou para as mulheres e os homens que encontrou com
amor e ternura, acompanhando os seus passos com verdade, paciência e
misericórdia, ao anunciar as exigências do Reino de Deus».[54] De igual modo nos acompanha, hoje,
o Senhor no nosso compromisso de viver e transmitir o Evangelho da família.
Jesus recupera e realiza plenamente o projecto
divino
61. Contrariamente àqueles que proibiam o
matrimónio, o Novo Testamento ensina que «tudo o que Deus criou é bom e nada
deve ser rejeitado» (1Tim 4, 4). O matrimónio é um «dom» do Senhor
(cf. 1 Cor 7, 7). Ao mesmo tempo que se dá esta avaliação
positiva, acentua-se fortemente a obrigação de cuidar deste dom divino: «Seja o
matrimónio honrado por todos e imaculado o leito conjugal» (Heb 13,
4). Este dom de Deus inclui a sexualidade: «Não vos recuseis um ao outro» (1Cor 7,
5).
62. Os Padres sinodais lembraram que Jesus, «ao
referir-Se ao desígnio primordial sobre o casal humano, reafirma a união indissolúvel
entre o homem e a mulher, mesmo admitindo que, “por causa da dureza do vosso
coração, Moisés permitiu que repudiásseis as vossas mulheres; mas, ao
princípio, não foi assim” (Mt 19, 8). A indissolubilidade do
matrimónio (“o que Deus uniu não o separe o homem”: Mt 19, 6)
não se deve entender primariamente como “jugo” imposto aos homens, mas como um
“dom” concedido às pessoas unidas em matrimónio. (...) A condescendência divina
acompanha sempre o caminho humano, com a sua graça, cura e transforma o coração
endurecido, orientando-o para o seu princípio, através do caminho da cruz. Nos
Evangelhos, sobressai claramente a postura de Jesus, que (...) anunciou a
mensagem relativa ao significado do matrimónio como plenitude da revelação que
recupera o projecto originário de Deus (cf. Mt 19, 3)».[55]
63. «Jesus, que reconciliou em Si todas as coisas, voltou
a levar o matrimónio e a família à sua forma original (cf. Mc10,
1-12). A família e o matrimónio foram redimidos por Cristo(cf. Ef 5,
21-32), restaurados à imagem da Santíssima Trindade, mistério donde brota todo
o amor verdadeiro. A aliança esponsal, inaugurada na criação e revelada na
história da salvação, recebe a revelação plena do seu significado em Cristo e
na sua Igreja. O matrimónio e a família recebem de Cristo, através da Igreja, a
graça necessária para testemunhar o amor de Deus e viver a vida de comunhão. O
Evangelho da família atravessa a história do mundo desde a criação do homem à
imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-27) até à realização
do mistério da Aliança em Cristo no fim dos séculos com as núpcias do Cordeiro
(cf. Ap 19, 9)».[56]
64. «A postura de Jesus é paradigmática para a
Igreja (...). Ele inaugurou a sua vida pública com o sinal de Caná, realizado
num banquete de núpcias (cf. Jo 2, 1-11). (…) Compartilhou
momentos diários de amizade com a família de Lázaro e suas irmãs (cf. Lc10,
38) e com a família de Pedro (cf. Mt 8, 14). Escutou o pranto
dos pais pelos seus filhos, restituindo-os à vida (cf. Mc 5,
41; Lc 7, 14-15) e mostrando assim o verdadeiro significado da
misericórdia, a qual implica a restauração da Aliança (cf. João Paulo II, Dives in
misericordia, 4).Vê-se isto claramente nos encontros com a
mulher samaritana (cf. Jo 4, 1-30) e com a adúltera (cf. Jo 8,
1-11), nos quais a noção do pecado é avivada perante o amor gratuito de Jesus».[57]
65. A encarnação do Verbo numa família humana, em
Nazaré, comove com a sua novidade a história do mundo. Precisamos de mergulhar
no mistério do nascimento de Jesus, no sim de Maria ao anúncio do anjo, quando
foi concebida a Palavra no seu seio; e ainda no sim de José, que deu o nome a
Jesus e cuidou de Maria; na festa dos pastores no presépio; na adoração dos
Magos; na fuga para o Egipto, em que Jesus participou no sofrimento do seu povo
exilado, perseguido e humilhado; na devota espera de Zacarias e na alegria que
acompanhou o nascimento de João Baptista; na promessa que Simeão e Ana viram
cumprida no templo; na admiração dos doutores da lei ao escutarem a sabedoria
de Jesus adolescente. E, em seguida, penetrar nos trinta longos anos em que
Jesus ganhava o pão trabalhando com suas mãos, sussurrando a oração e a
tradição crente do seu povo e formando-Se na fé dos seus pais, até fazê-la
frutificar no mistério do Reino. Este é o mistério do Natal e o segredo de
Nazaré, cheio de perfume a família! É o mistério que tanto fascinou Francisco
de Assis, Teresa do Menino Jesus e Charles de Foucauld, e do qual bebem também
as famílias cristãs para renovar a sua esperança e alegria.
66. «A aliança de amor e fidelidade, vivida pela
Sagrada Família de Nazaré, ilumina o princípio que dá forma a cada família e a
torna capaz de enfrentar melhor as vicissitudes da vida e da história. Sobre
este fundamento, cada família, mesmo na sua fragilidade, pode tornar-se uma luz
na escuridão do mundo. “Aqui se aprende (…) uma lição de vida familiar. Que
Nazaré nos ensine o que é a família, a sua comunhão de amor, a sua austera e
simples beleza, o seu carácter sagrado e inviolável; aprendamos de Nazaré como
é preciosa e insubstituível a educação familiar e como é fundamental e
incomparável a sua função no plano social” (Paulo VI, Alocução em
Nazaré, 5 de Janeiro de 1964)».[58]
A família nos documentos da Igreja
67. O Concílio Ecuménico Vaticano II ocupou-se, na
Constituição pastoral Gaudium et spes,
da promoção da dignidade do matrimónio e da família (cf. nn. 47-52). «Definiu o
matrimónio como comunidade de vida e amor (cf. n. 48), colocando o amor no
centro da família (...). O “verdadeiro amor entre marido e mulher” (n. 49)
implica a mútua doação de si mesmo, inclui e integra a dimensão sexual e a
afectividade, correspondendo ao desígnio divino (cf. nn. 48-49). Além disso
sublinha o enraizamento dos esposos em Cristo: Cristo Senhor “vem ao encontro
dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio” (n. 48) e permanece com
eles. Na encarnação, Ele assume o amor humano, purifica-o, leva-o à plenitude e
dá aos esposos, com o seu Espírito, a capacidade de o viver, impregnando toda a
sua vida com a fé, a esperança e a caridade. Assim, os cônjuges são de certo
modo consagrados e, por meio duma graça própria, edificam o Corpo de Cristo e
constituem uma igreja doméstica (cf. Lumen gentium,
11), de tal modo que a Igreja, para compreender plenamente o seu mistério, olha
para a família cristã, que o manifesta de forma genuína».[59]
68. Em seguida, «na esteira do Concílio Vaticano
II, o Beato Paulo VI aprofundou a doutrina sobre o matrimónio e a família. Em
particular, com a Encíclica Humanae vitae,
destacou o vínculo intrínseco entre amor conjugal e procriação: “o amor
conjugal requer nos esposos uma consciência da sua missão de ‘paternidade
responsável’, sobre a qual hoje tanto se insiste, e justificadamente, e que deve
também ela ser compreendida com exactidão (...). O exercício responsável da
paternidade implica, portanto, que os cônjuges reconheçam plenamente os
próprios deveres para com Deus, para consigo próprios, para com a família e
para com a sociedade, numa justa hierarquia de valores”(n. 10). Na Exortação
apostólica Evangelii
nuntiandi, Paulo VI salientou a relação entre a família e a
Igreja».[60]
69. «São João Paulo II dedicou especial atenção à
família, através das suas catequeses sobre o amor humano, a Carta às famílias Gratissimam sane e
sobretudo com a Exortação apostólica Familiaris
consortio. Nestes documentos, o Pontífice definiu a família
«caminho da Igreja»; ofereceu uma visão de conjunto sobre a vocação ao amor do
homem e da mulher; propôs as linhas fundamentais para a pastoral da família e
para a presença da família na sociedade. Concretamente, ao tratar da caridade
conjugal (cf. Familiaris
consortio, 13), descreveu o modo como os cônjuges, no seu amor
mútuo, recebem o dom do Espírito de Cristo e vivem a sua vocação à santidade».[61]
70. «Bento XVI, na Encíclica Deus caritas est,
retomou o tema da verdade do amor entre o homem e a mulher, que se vê iluminado
plenamente apenas à luz do amor de Cristo crucificado (cf.n. 2). Sublinha que
“o matrimónio baseado num amor exclusivo e definitivo torna-se o ícone do
relacionamento de Deus com o seu povo e, vice-versa, o modo de Deus amar
torna-se a medida do amor humano”(n. 11).Além disso, na Encíclica Caritas in
veritate, destaca a importância do amor como princípio devida na
sociedade (cf. n. 44), lugar onde se aprende a experiência do bem comum».[62]
O sacramento do matrimónio
71. «A Sagrada Escritura e a Tradição abrem-nos o
acesso a um conhecimento da Trindade que Se revela com traços familiares. A
família é imagem de Deus, que (…) é comunhão de pessoas. No baptismo, a voz do
Pai chamou a Jesus Filho amado; e, neste amor, podemos reconhecer o Espírito
Santo (cf. Mc 1, 10-11). Jesus, que tudo reconciliou em Si
mesmo e redimiu o homem do pecado, não só voltou a levar o matrimónio e a
família à sua forma original, mas também elevou o matrimónio a sinal
sacramental do seu amor pela Igreja (cf. Mt 19, 1-12; Mc 10,
1-12; Ef 5, 21-32). Na família humana, reunida em Cristo, é
restaurada a “imagem e semelhança” da Santíssima Trindade (cf. Gn 1,
26), mistério donde brota todo o amor verdadeiro. O matrimónio e a família
recebem de Cristo, através da Igreja, a graça para testemunhar o Evangelho do
amor de Deus».[63]
72. O sacramento do matrimónio não é uma convenção
social, um rito vazio ou o mero sinal externo dum compromisso. O sacramento é
um dom para a santificação e a salvação dos esposos, porque «a sua pertença
recíproca é a representação real, através do sinal sacramental, da mesma
relação de Cristo com a Igreja. Os esposos são, portanto, para a Igreja a
lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz; são um para o outro, e para
os filhos, testemunhas da salvação, da qual o sacramento os faz participar».[64] O matrimónio é uma vocação, sendo
uma resposta à chamada específica para viver o amor conjugal como sinal
imperfeito do amor entre Cristo e a Igreja. Por isso, a decisão de se casar e
formar uma família deve ser fruto dum discernimento vocacional.
73. «O dom recíproco constitutivo do matrimónio
sacramental está enraizado na graça do baptismo, que estabelece a aliança
fundamental de cada pessoa com Cristo na Igreja. Na mútua recepção e com a
graça de Cristo, os noivos prometem-se entrega total, fidelidade e abertura à
vida, e também reconhecem como elementos constitutivos do matrimónio os dons
que Deus lhes oferece, tomando a sério o seu mútuo compromisso, em nome de Deus
e perante a Igreja. Ora, na fé, é possível assumir os bens do matrimónio como
compromissos que se podem cumprir melhor com a ajuda da graça do sacramento.
(...) Portanto, o olhar da Igreja volta-se para os esposos como o coração da
família inteira, que, por sua vez, levanta o seu olhar para Jesus».[65] O sacramento não é uma «coisa» nem
uma «força», mas o próprio Cristo, na realidade, «vem ao encontro dos esposos
cristãos com o sacramento do matrimónio. Fica com eles, dá-lhes a coragem de O
seguirem, tomando sobre si a sua cruz, de se levantarem depois das quedas, de
se perdoarem mutuamente, de levarem o fardo um do outro».[66] O matrimónio cristão é um sinal que
não só indica quanto Cristo amou a sua Igreja na Aliança selada na Cruz, mas
torna presente esse amor na comunhão dos esposos. Quando se unem numa só carne,
representam o desposório do Filho de Deus com a natureza humana. Por isso, «nas
alegrias do seu amor e da sua vida familiar, Ele dá-lhes, já neste mundo, um
antegozo do festim das núpcias do Cordeiro».[67] Embora «a analogia entre o casal
marido-esposa e Cristo-Igreja» seja uma «analogia imperfeita»,[68] convida a invocar o Senhor para que
derrame o seu amor nas limitações das relações conjugais.
74. Vivida de modo humano e santificada pelo
sacramento, a união sexual é, por sua vez, caminho de crescimento na vida da
graça para os esposos. É o «mistério nupcial».[69] O valor da união dos corpos está
expresso nas palavras do consentimento, pelas quais se acolheram e doaram
reciprocamente para partilhar a vida toda. Estas palavras conferem um
significado à sexualidade, libertando-a de qualquer ambiguidade. Mas, na
realidade, toda a vida em comum dos esposos, toda a rede de relações que hão-de
tecer entre si, com os seus filhos e com o mundo, estará impregnada e
robustecida pela graça do sacramento que brota do mistério da Encarnação e da
Páscoa, onde Deus exprimiu todo o seu amor pela humanidade e Se uniu
intimamente com ela. Os esposos nunca estarão sós, com as suas próprias forças,
a enfrentar os desafios que surgem. São chamados a responder ao dom de Deus com
o seu esforço, a sua criatividade, a sua perseverança e a sua luta diária, mas
sempre poderão invocar o Espírito Santo que consagrou a sua união, para que a
graça recebida se manifeste sem cessar em cada nova situação.
75. No sacramento do matrimónio, segundo a tradição
latina da Igreja, os ministros são o homem e a mulher que se casam,[70] os quais, ao manifestar o seu
consentimento e expressá-lo na sua entrega corpórea, recebem um grande dom. O
seu consentimento e a união dos seus corpos são os instrumentos da acção divina
que os torna uma só carne. No baptismo, ficou consagrada a sua capacidade de se
unir em matrimónio como ministros do Senhor, para responder à vocação de Deus.
Por isso, quando dois cônjuges não-cristãos recebem o baptismo, não é
necessário renovar a promessa nupcial sendo suficiente que não a rejeitem,
pois, pelo baptismo que recebem, essa união torna-se automaticamente
sacramental. O próprio direito canónico reconhece a validade de alguns
matrimónios que se celebram sem um ministro ordenado.[71] É que a ordem natural foi assumida
pela redenção de Jesus Cristo, pelo que, «entre baptizados, não pode haver
contrato matrimonial válido que não seja, pelo mesmo facto, sacramento».[72] A Igreja pode exigir que o acto
seja público, a presença de testemunhas e outras condições que foram variando
ao longo da história, mas isto não tira, aos dois esposos, o seu carácter de
ministros do sacramento, nem diminui a centralidade do consentimento do homem e
da mulher, que é aquilo que, de por si, estabelece o vínculo sacramental. Em
todo o caso, precisamos de reflectir mais sobre a acção divina no rito nupcial,
que aparece muito evidenciada nas Igrejas Orientais ao ressaltarem a
importância da bênção sobre os contraentes como sinal do dom do Espírito.
Sementes do Verbo e situações imperfeitas
76. «O Evangelho da família nutre também as
sementes ainda à espera de desenvolver-se e deve cuidar das árvores que
perderam vitalidade e necessitam que não as transcurem»,[73] de modo que, partindo do dom de
Cristo no sacramento, «sejam conduzidas pacientemente mais além, chegando a um
conhecimento mais rico e uma integração mais plena deste mistério na sua vida».[74]
77. Assumindo o ensinamento bíblico de que tudo foi
criado por Cristo e para Cristo (cf. Col 1, 16), os Padres
sinodais lembraram que «a ordem da redenção ilumina e realiza a da criação.
Assim, o matrimónio natural compreende-se plenamente à luz da sua realização
sacramental: só fixando o olhar em Cristo é que se conhece cabalmente a verdade
das relações humanas. “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do
Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. (...) Cristo, novo Adão, na
própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e
descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gaudium et spes,
22). Em particular é oportuno compreender, em chave cristocêntrica, (...) o bem
dos cônjuges (bonum coniugum)»,[75] que inclui a unidade, a abertura à
vida, a fidelidade, a indissolubilidade e, no matrimónio cristão, também a
ajuda mútua no caminho que leva a uma amizade mais plena com o Senhor. «O
discernimento da presença das semina Verbi nas outras culturas
(cf. Ad gentes,
11) pode-se aplicar também à realidade matrimonial e familiar. Para além do
verdadeiro matrimónio natural, há elementos positivos também nas formas
matrimoniais doutras tradições religiosas»,[76] embora não faltem também as
sombras. Podemos dizer que «toda a pessoa que deseja formar, neste mundo, uma
família que ensine os filhos a alegrar-se por cada acção que se proponha vencer
o mal – uma família que mostre que o Espírito está vivo e operante – encontrará
gratidão e estima, independentemente do povo, região ou religião a que
pertença».[77]
78. «O olhar de Cristo, cuja luz ilumina todo o
homem (cf. Jo 1, 9; Gaudium et spes,
22), inspira o cuidado pastoral da Igreja pelos fiéis que simplesmente vivem
juntos, que contraíram matrimónio apenas civil ou são divorciados que voltaram
a casar. Na perspectiva da pedagogia divina, a Igreja olha com amor para
aqueles que participam de modo imperfeito na vida dela: com eles, invoca a
graça da conversão; encoraja-os afazerem o bem, a cuidarem com amor um do outro
e colocarem-se ao serviço da comunidade onde vivem e trabalham. (...) Quando a
união alcança uma estabilidade notável por meio dum vínculo público – e se
reveste de afecto profundo, responsabilidade pela prole, capacidade de
superaras provações –, pode ser vista como uma oportunidade a encaminhar para o
sacramento do matrimónio, sempre que este seja possível».[78]
79. «Perante situações difíceis e famílias feridas,
é preciso lembrar sempre um princípio geral: “Saibam os pastores que, por amor
à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações” (Familiaris
consortio, 84). O grau de responsabilidade não é igual em todos
os casos, e podem existir factores que limitem a capacidade de decisão. Por
isso, ao mesmo tempo que se exprime com clareza a doutrina, há que evitar
juízos que não tenham em conta a complexidade das diferentes situações, e é
preciso estar atentos ao modo como as pessoas vivem e sofrem por causa da sua
condição».[79]
A transmissão da vida e a educação dos filhos
80. O matrimónio é, em primeiro lugar, uma «íntima
comunidade da vida e do amor conjugal»,[80]que constitui um bem para os próprios
esposos;[81]e a sexualidade «ordena-se para o amor
conjugal do homem e da mulher».[82]Por isso, também «os esposos a quem Deus
não concedeu a graça de ter filhos podem ter uma vida conjugal cheia de
sentido, humana e cristãmente falando».[83]Contudo, esta união está ordenada para a
geração «por sua própria natureza».[84]O bebé que chega «não vem de fora
juntar-se ao amor mútuo dos esposos; surge no próprio coração deste dom mútuo,
do qual é fruto e complemento».[85]Não aparece como o final dum processo,
mas está presente desde o início do amor como uma característica essencial que
não pode ser negada sem mutilar o próprio amor. Desde o início, o amor rejeita
qualquer impulso para se fechar em si mesmo, e abre-se a uma fecundidade que o
prolonga para além da sua própria existência. Assim nenhum acto sexual dos
esposos pode negar este significado,[86]embora, por várias razões, nem sempre
possa efectivamente gerar uma nova vida.
81. O filho pede para nascer, não de qualquer
maneira, mas deste amor, porque ele «não é uma dívida, mas uma dádiva»,[87] que é «o fruto do acto específico
do amor conjugal de seus pais».[88] Com efeito, «segundo a ordem da
criação, o amor conjugal entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida
estão ordenados reciprocamente (cf. Gn 1, 27-28). Deste modo,
o Criador tornou participantes da obra da sua criação o homem e a mulher e, ao
mesmo tempo, fê-los instrumentos do seu amor, confiando à sua responsabilidade
o futuro da humanidade através da transmissão da vida humana».[89]
82. Os Padres sinodais referiram que «não é difícil
constatar como se está espalhando uma mentalidade que reduza geração da vida a
uma variável dos projectos individuais ou dos cônjuges».[90] A doutrina da Igreja «ajuda a viver
de maneira harmoniosa e consciente a comunhão entre os cônjuges, em todas as suas
dimensões, juntamente com a responsabilidade geradora. É preciso redescobrira
mensagem da Encíclica Humanae vitae de
Paulo VI, que sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa na
avaliação moral dos métodos de regulação da natalidade. (...)A escolha da
adopção e do acolhimento exprime uma fecundidade particular da experiência
conjugal».[91] Com particular gratidão, a Igreja
«apoia as famílias que acolhem, educam e rodeiam de carinho os filhos
deficientes».[92]
83. Neste contexto, não posso deixar de afirmar
que, se a família é o santuário da vida, o lugar onde a vida é gerada e
cuidada, constitui uma contradição lancinante fazer dela o lugar onde a vida é
negada e destruída. É tão grande o valor duma vida humana e inalienável o
direito à vida do bebé inocente que cresce no ventre de sua mãe, que de modo
nenhum se pode afirmar como um direito sobre o próprio corpo a possibilidade de
tomar decisões sobre esta vida que é fim em si mesma e nunca poderá ser objecto
de domínio doutro ser humano. A família protege a vida em todas as fases da
mesma, incluindo o seu ocaso. Por isso, «a quem trabalha nas estruturas
sanitárias, lembra-se a obrigação moral da objecção de consciência. Da mesma
forma, a Igreja não só sente a urgência de afirmar o direito à morte natural,
evitando o excesso terapêutico e a eutanásia», mas também «rejeita firmemente a
pena de morte».[93]
84. Os Padres quiseram sublinhar também que «um dos
desafios fundamentais que as famílias enfrentam hoje é seguramente o desafio
educativo, que se tornou ainda mais difícil e complexo por causa da realidade
cultural actual e da grande influência dos meios de comunicação».[94] «A Igreja desempenha um papel
precioso de apoio às famílias, a começar pela iniciação cristã, através de
comunidades acolhedoras».[95] Mas parece-me muito importante
lembrar que a educação integral dos filhos é, simultaneamente, «dever
gravíssimo» e «direito primário» dos pais.[96] Não é apenas um encargo ou um peso,
mas também um direito essencial e insubstituível que estão chamados a defender
e que ninguém deveria pretender tirar-lhes. O Estado oferece um serviço
educativo de maneira subsidiária, acompanhando a função não-delegável dos pais,
que têm direito de poder escolher livremente o tipo de educação – acessível e
de qualidade – que querem dar aos seus filhos, de acordo com as suas
convicções. A escola não substitui os pais; serve-lhes de complemento. Este é
um princípio básico: «qualquer outro participante no processo educativo não
pode operar senão em nome dos pais, com o seu consenso e, em certa media, até
mesmo por seu encargo».[97] Infelizmente, «abriu-se uma fenda
entre família e sociedade, entre família e escola; hoje, o pacto educativo
quebrou-se; e, assim, a aliança educativa da sociedade com a família entrou em
crise».[98]
85. A Igreja é chamada a colaborar, com uma acção
pastoral adequada, para que os próprios pais possam cumprir a sua missão
educativa; e sempre o deve fazer, ajudando-os a valorizar a sua função
específica e a reconhecer que quantos recebem o sacramento do matrimónio são
transformados em verdadeiros ministros educativos, pois, quando formam os seus
filhos, edificam a Igreja[99] e, fazendo-o, aceitam uma vocação
que Deus lhes propõe.[100]
A família e a Igreja
86. «Com íntima alegria e profunda consolação, a
Igreja olha para as famílias que permanecem fiéis aos ensinamentos do
Evangelho, agradecendo-lhes pelo testemunho que dão e encorajando-as. Com
efeito, graças a elas, torna-se credível a beleza do matrimónio indissolúvel e
fiel para sempre. Na família, “como numa igreja doméstica” (Lumen gentium,
11), amadurece a primeira experiência eclesial da comunhão entre as pessoas, na
qual, por graça, se reflecte o mistério da Santíssima Trindade. “É aqui que se
aprende a tenacidade e a alegria no trabalho, o amor fraterno, o perdão
generoso e sempre renovado, e sobretudo o culto divino, pela oração e pelo
oferecimento da própria vida” (Catecismo da
Igreja Católica, 1657)».[101]
87. A Igreja é família de famílias, constantemente
enriquecida pela vida de todas as igrejas domésticas. Assim, «em virtude do
sacramento do matrimónio, cada família torna-se, para todos os efeitos, um bem
para a Igreja. Nesta perspectiva, será certamente um dom precioso, para o
momento actual da Igreja, considerar também a reciprocidade entre família e
Igreja: a Igreja é um bem para a família, a família é um bem para a Igreja. A
salvaguarda deste dom sacramental do Senhor compete não só à família
individual, mas a toda a comunidade cristã».[102]
88.
O amor vivido nas famílias é uma força permanente para a vida da Igreja. «O fim
unitivo do matrimónio é um apelo constante a crescer e aprofundar este amor. Na
sua união de amor, os esposos experimentam a beleza da paternidade e da
maternidade; partilham projectos e fadigas, anseios e preocupações; aprendem a
cuidar um do outro e a perdoar-se mutuamente. Neste amor, celebram os seus
momentos felizes e apoiam-se nos episódios difíceis da história da sua vida.
(...)A beleza do dom recíproco e gratuito, a alegria pela vida que nasce e a
amorosa solicitude de todos os seus membros, desde os pequeninos aos idosos,
são apenas alguns dos frutos que tornam única e insubstituível a resposta à
vocação da família»,[103] tanto para a Igreja como para a
sociedade inteira.
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