Caminho das Missões, em Jesus PY. Foto: José Roberto de Oliveira |
Cooperativismo
jesuítico-guarani
"Um
processo de cooperação é extremamente importante para o mundo novo que nós
sonhamos, para esse mundo mais igualitário, mais fraternal". A cooperação
deve ser o fundamento do nosso mundo cristão, porque é um jeito de romper os
individualismos que existem dentro de cada um de nós, afirma o pesquisador das
Missões jesuítico-guaranis, uma "utopia" que existiu na América do
Sul nos séculos XVII e XVIII.
Jackson Erpen – Cidade do Vaticano
O que poderia nos levar a pensar que
não haveria então um salário, uma remuneração por um trabalho, mas todos
trabalhariam de uma forma comum e aquilo que fosse vendido, ou não sei se havia
um sistema de troca também seria para o sustento da comunidade, é isso?
Perfeitamente, exatamente isso. E aí vem a tua
segunda pergunta. Como era o mundo, afinal de contas, como é que isso conseguiu
subsistir ou existir naquele período. A êssencia do mundo guarani é uma
essência de união dentro de suas aldeias. As aldeias funcionam em um modelo
extremamente coletivo, os guaranis têm como essência a colaboração, a ajuda
mútua entre os seus seres. Por exemplo, aqueles que são caçadores, outros são
pescadores, os outros são produtores, agricultores. Claro, é uma agricultura de
pequeno porte, digamos, no mundo nativo, mas que todos trabalham para que o
conjunto todo funcione. Por exemplo, ainda hoje nas aldeias. Por exemplo, se
alguém vai pescar e pega muitos peixes, ou o que ele consegue pegar de peixe,
ele volta e divide entre as famílias da sua aldeia, isso ainda hoje. Por quê?
Porque eles não têm essa ideia do guardar, de que eu tenho que ficar guardando
muita coisa para depois, ou essa ideia nossa bem eurocêntrica de que temos que
poupar, e ter, digamos, o nosso bem, essa coisa do dinheiro. Então no mundo
nativo, daquele período dos anos 1600, isso estava muito presente dentro do
processo. Então como isso tudo pode funcionar do jeito que funcionou?
“Os
guaranis entraram com toda essa ideia da cooperação, da colaboração, da ajuda
mútua, enquanto que os jesuítas trouxeram a ideia daquilo que estava na Europa
naquele período, porque nunca podemos esquecer quem eram esses jesuítas que
chegaram aqui.”
Vamos pegar um exemplo: o Antônio Sepp von
Rechegg. Quem é esse jesuíta? Ele é um príncipe, na verdade, ele é o filho do
rei do Condado de Kaltern, onde era a Áustria. Então esse jesuíta, foi
menino cantor de Viena, o pai dele era um industrial dessa região aí da Europa,
era um produtor de fundidos, conhecia tudo sobre fundição, sobre produção de
instrumentos musicais, ele foi um Menino Cantor de Viena, aí na Áustria. Então
ele foi um grande maestro, um grande conhecedor de todos os processos que
Europa trazia para aquele tempo de 1680-70-90, que é o período que ele chega
aqui. Então ele traz todo aquele conhecimento das principais universidades
europeias para cá, e traz um processo obviamente de industrialização, de
musicalidade, de produção de instrumentos, de fundição, tanto que aqui em São
João Batista, que é a Redução que ele fundou, é a primeira fundição de aço da
América. Então veja, como pode então, porque isso é muito importante essa tua
pergunta, como pode então um mundo do neolítico em pouquíssimo tempo se
transformar em que tinha de melhor no barroco e na produção europeia daquele
período, através de um processo de compreensão, de união, de integração e da palavra
completa de “cooperação”, que é isso, que é a ideia central do que hoje nós
estamos levantando, que o cooperativismo inicia lá naquele período, nessa união
entre o mundo muito coaborativo dos guaranis – que milenarmente o faziam - com
esse mundo novo que chega da Europa, através dos jesuítas, e que por um milagre
ocorre esse processo de união entre essas duas culturas e que conseguiu durante
159 anos, se manter muito forte, muito ativo, exportativo, um estado de
produção muito importante.
Uma outra coisa importante, que a gente normalmente
não diz, é sempre importante pensar, que por exemplo, quando ocorreu a
finalização do projeto, que é através da expulsão dos jesuítas, muitos daquelas
famílias dos guaranis já estavam com 159, com – os que menos tinham tempo de
cristãos - 130 anos de cristãos, aquelas famílias. Então aquela ideia que nós
ainda hoje - eu vejo em muitas pessoas, em muitos textos do mundo, ou às vezes
até em desenhos, e que estavam os índios ali sem roupa, de arco e flecha
somente. Não! Veja que uma comunidade que já tinha quase sempre 160 anos de
cristãos, já estava num estágio muito mais adiantado de, entre aspas, vamos
dizer assim “civilidade” e não uma ideia de um mundo nativo, ainda de mato, com
gente caçando. Então esses tantos anos de produção e de organização, de sistema
cooperativo, já estava no mundo muito mais adiantado, tanto que, depois da
expulsão dos jesuítas, essas mesmas famílias, esses mesmos guaranis, vão se
mesclar com a comunidade nova que começava a chegar, do mundo luso-brasileiro,
português aqui, ali na Argentina o mundo espanhol, argentino, e mesma coisa no
Paraguai, e esses guaranis vão rapidamente se mesclando com aquelas novas
etnias que foram chegando, e vão se transformando nesse povo da América Latina
que nós temos hoje.
Aqui do lado brasileiro, um pouco mais luso, mas
ali na Argentina, um pouco mais espanholado, como no Paraguai, mas sempre
guardando os rostos, esse modelo de mutirão, de cooperação, e que está tão vivo
ainda nessas regiões missioneiras dos 30 Povos, Brasil Argentina e Paraguai.
Tanto que esses turistas que nos visitam hoje, um dos elementos que eles mais
falam, é desse jeito da sociedade daqui, como ela trata as pessoas, como ela é
cooperadora com as pessoas. Nós temos caminhadas de 30 dias, que unem esse
conjunto todo dos 30 Povos, então quando esses turistas estão passando por
aqui, todos dizem isso. Ontem mesmo, havia uma caminhada, e as pessoas estavam
entregando bergamotas para as pessoas que estavam caminhando, levavam até o
local aonde as pessoas estavam na estrada, onde elas passam, demonstrando que
esse modelo de cooperação, de união, aonde isso ainda tá vivo nos dias de hoje!
Porque obviamente essas milenaridades do passado, se a gente pensar em 8.000,
10.000 anos atrás, isso não morre por causa de 300 e 400 anos. Então esse
modelo ainda está muito vivo na sociedade atual e nessa região da América, o
que é muito interessante para estudar, a antropologia ainda viva, reflexo
daquele processo, daquele período.
Mapa da ocupação norte do RS pelas Missões. Foto: José Roberto de Oliveira |
Nós somos gerações e gerações pós-Revolução
Industrial que teve início na Inglaterra na segunda metade do século XVIII. O
cooperativismo entre nós envolve uma gama de atividades. Como se poderia fazer
um gancho do modelo atual com esse cooperativismo que era praticado nas Missões
jesuíticas?
Para você ter ideia desse movimento todo, então a
gente tem todo aquele reconhecimento de 1844, Rochdale, na Inglaterra, aonde se
diz como o início, esse reconhecido especialmente pelo mundo ocidental,
europeu. E essa visão que agora que vários estudiosos estão trabalhando, de que
a ideia seja lá 1626-1627 o início do processo, agora aparece um estudioso,
muito interessante, que é Holyoake, que tem uma obra sobre Rochdale, e que diz
que os documentos iniciais na Inglaterra, a base disso, usava um termo chamado
“colônias indígenas” para aquele processo do início do processo do
cooperativismo na Inglaterra. O que significa dizer, que no mínimo eles tinham
noção da experiência sul-americana lá de 1626-1627. Então veja como é
importante. E obviamente que aquele processo então, ele vem se integrando, e
quanto mais o capital social que é esse caldo de união existente nas
comunidades, mais esse processo todo do cooperativismo, ele se faz na
humanidade.
Nós aqui na América Latina, temos grandes experiências.
Por exemplo no Paraguai - nós aqui estamos muito pertinho, de onde Santo
Ângelo, em linha reta, 80 km, já chegamos no Rio Uruguai, mais 80 km passamos a
Argentina, ali em Missiones, aí estamos no Paraguai, ou seja, os 30 Povos aqui
é tudo muito pertinho. Então as experiências nossas do lado de cá, com relação,
por exemplo, ao trigo – que foram as cooperativas que iniciaram, as
Cooperativas Tritícolas, então iniciaram aqui nessa região, na Argentina todas
as ligadas especialmente à produção de erva-mate, que ali continua muito forte,
no Paraguai, um conjunto importante de cooperativas ligadas a todos os setores,
como nós no Brasil todo, na área de serviços, desde essa questão toda
relacionada ao meio ambiente e tudo mais. Então esse processo todo do cooperativismo,
ele traz a chance, especialmente às famílias de menos condições econômicas,
importantes, ele traz essa condição de que une esse conjunto de famílias ou
pessoas e consegue constituir daí um capital econômico, às vezes de
mão-de-obra, que pode transformar a vida tanto local como a vida daquelas
famílias.
“Então
o cooperativismo segue sendo esse modelo, vamos dizer assim, cristão, e eu
coloco o modelo missioneiro, eu chamo de cooperativismo cristão, nesse sentido,
de que é essa ideia fundamental de Cristo, de que as pessoas têm que se unir,
elas têm que se integrar, têm que se ajudar, essa questão da colaboração e que
obviamente traz a expressão fundamental do cooperativismo.”
Então é para determinados lugares, é uma receita
fundamental, tanto que hoje tem vários trabalhos, por exemplo de gente da
América, trabalhando por exemplo na África, e em outros lugares do mundo, na
tentativa de erguer o maior número de cooperativas possíveis, por quê? Porque
ali é o momento de unir toda aquela comunidade, tem toda essa relação da
educação que o cooperativismo sempre trabalhou também, e veja que a educação
não é só das letras, é dos fazeres também. E nas Missões, se a gente voltar
para trás, a educação dos fazeres. Imagina, por exemplo, você tirar alguém do Neolítico,
da Idade da Pedra Polida, e colocar ele em algum tempo muito rápido, por
exemplo de ser um fundidor de sinos, de ser um fundidor para a produção de
materiais de aço, por exemplo, para a marcenaria, para todo tipo de produto
necessário, digamos, em processos industriais. Então veja que que é um salto
magnífico e exatamente essa união, ainda hoje pode ser repetida.
Eu escrevi um artigo científico que fala das
experiências utópicas no território fronteiriço do Mercosul. E esse artigo
mostra exatamente isso, que há um conhecimento ensinamento, há um caldo
importante de união ainda presente nessas comunidades da América Latina. E se
você pensar no conjunto da América Latina, essa possibilidade está dada, porque
a essência nativa é uma essência de colaboração, de união, de ajuda mútua.
Então isso é fundamental para o processo e para qualquer ideia de
cooperativismo. Claro, tem coisas mais modernas hoje, por exemplo ligadas a
essa questão de internet, essas questões digamos mais hodiernas. Então o cooperativismo
ele pode ser usado, utilizado para o desenvolvimento da sociedade. Então para o
desenvolvimento econômico e social. Não há dúvida de que o cooperativismo pode
ser uma base sustentável e fundamental no desenvolvimento da sociedade nova que
nós sonhamos, com união e integração.
Ruínas de São Miguel. Foto: José Roberto de Oliveira |
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