Caminho das Missões, em Jesus PY - Foto; José Roberto de Oliveira |
Cooperativismo
jesuítico-guarani
"Um
processo de cooperação é extremamente importante para o mundo novo que nós
sonhamos, para esse mundo mais igualitário, mais fraternal". A cooperação
deve ser o fundamento do nosso mundo cristão, porque é um jeito de romper os
individualismos que existem dentro de cada um de nós, afirma o pesquisador das
Missões jesuítico-guaranis, uma "utopia" que existiu na América do
Sul nos séculos XVII e XVIII.
Jackson Erpen – Cidade do Vaticano
Essa “experiência” vivida no sul da
América do Sul, das Reduções jesuítico-guaranis, foi um sonho que acabou sendo
destruído pelo conflito de interesses entre as Coroas portuguesa e espanhola.
Há vozes que dizem que haveria por parte dos próprios jesuítas, não de maneira
geral, escravização de indígenas dentro das Reduções. O que você poderia dizer
sobre esse tipo de observação, que vem inclusive de alguns antropólogos.
Veja, tu tens razão, todavia, eu sou um defensor do
processo histórico-cultural que aconteceu aqui. A história ela é inexorável! Em
1629 em diante, os luso-brasileiros, os bandeirantes especialmente, buscaram os
índios guaranis como escravos. Todo mundo sabe disso, apesar de que, por
exemplo no Brasil, o bandeirantismo é louvado como o “grande herói pátrio”. Mas
veja, só eles, os bandeirantes, naquele período entre 1629 e 1645, eles mataram
600 mil guaranis. 300 mil levando como escravos e depois na maioria deles dava
uma tristeza, o Banzo que os negros chamam, morriam de
tristeza ali em São Paulo, Rio, na região de São Vicente. Nos ataques, mas 300
mil foram mortos, ou seja, então 600 mil foram mortos naquele período, isso no
mundo luso-brasileiro. No mundo espanhol, os índios eram encomendados, os
seja, las encomiendas. O que é isso? Quando você ganhava um
conjunto de terra, eram grandes áreas, duas, três, quatro, cinco, seis
sesmarias, ou seja, multiplica por 8.600 hectares qualquer um desses números,
então dentro dessa área, no mundo espanhol, havia obviamente indígenas que
viviam milenarmente naquele lugar ali, famílias, aldeias. Então esses indígenas
eram encomendados, ou seja, era uma espécie de escravidão, mas no mundo
espanhol era proibido se falar e dizer que você tinha escravos. Eram escravos
também, todo mundo sabe disso. Por quê? Porque eram obrigados a dar tantos dias
de serviço ao dono da terra, ao novo dono da terra que ganhou do governo
espanhol. Veja que os guaranis reduzidos eles tinham uma terceira hipótese.
Quer dizer, a primeira hipótese, ou você era
encomendado, do mundo espanhol, ou era escravo do mundo português - porque eles
buscavam os guaranis, porque eles eram os únicos agricultores nessas terras
planas da América, no Sul América do Sul. Então os guaranis plantavam
milenarmente batata-doce, amendoim, mandioca, toda sua produção, que era o
normal deles, eles eram agricultores, eram seminômades, é verdade, mas eram
agricultores. Então eles precisavam muito de mão de obra, tanto no mundo
espanhol como no mundo luso-brasileiro.
“Então,
as Reduções são uma via possível de não ser escravizado no modelo bandeirante
ou das encomiendas.”
Então veja que havia uma escolha livre. O
cooperativismo exige isso, que as pessoas escolham livremente estar naquele
processo, isso é elemento central do cooperativismo. Então veja que eles
ficavam nas Reduções jesuíticas exatamente porque não queriam ser escravizados.
E o que eu chamo de inexorável? Inexorável é isso, havia três hipóteses: ou ser
escravo, ou ser encomendado ou ficar nas Reduções. Claro, que alguns índios
ficaram na selva, como por exemplo os mbiás [Mbyá, M'byá, Guarani Mbya,
Mbyá-Guarani ou embiás] que hoje estão mais perto das
cidades, foram terminando essas grandes áreas de florestas, e os mbiás hoje
estão presentes, como estão aqui na região. Mas os guaranis que foram
cristianizados não foram os mbiás, foram outras tradições guaranis. Então
centralmente é isso.
Mas veja que o modelo de cooperação, ele exige que
as pessoas deem isso, cada um de acordo com sua capacidade. Então, veja que o
modelo que se trabalhou foi um modelo de cooperação. E a história é inexorável.
Ajudaram, colaboraram, fizeram, por exemplo os jesuítas mais importantes dentro
da Igreja, naquele período dos anos 1600-1700? Sim! Agora ocorreu um grande
desenvolvimento em termos de tecnologia, de educação, de conhecimento para
essas famílias? Também sim! Então buenas, vamos dizer, cada um que
vê, olha com os seus olhos. Talvez um antropólogo dissesse: ‘Ah! Os jesuítas
nunca podiam ter cristianizado os guaranis!’ Mas veja, que a história é
inexorável. A vinda deles para a América, vem exatamente nessa linha do
desenvolvimento do cristianismo, do conhecimento, da educação, do processo da
industrialização que é o centro dos jesuítas, que é isso, um cristão dos
fazeres, não é um cristão do rezar. Claro que reza também, mas é acima de tudo
um cristão que faz coisas, que desenvolve econômica e socialmente aquela
sociedade. E este processo é o processo que se deu. Então é possível que alguém
olhe com esses olhos que a tua pergunta fez, é possível, mas essa pessoa
esquece o inexorável processo histórico daquele passado, daqueles anos
1600-1700, quem sabe um pouquinho até antes, os 1585 em diante. Então é muito
importante e hoje eu vejo que a sociedade analisa isso, mas eu faço essa minha
fala nesse sentido, de que é importantíssimo que não se veja simplesmente com
os olhos simplesmente de 2021, mas que se olhe com os olhos daquele 1585, do
1609 ou do 1700. Como era a sociedade e como eram as exigências tanto do rei de
Espanha como do reinado de Portugal. Como eles exigiam...
“Se
há uma coisa inexorável é 1492, que foi o descobrimento, a ocupação da
América.”
Quer dizer, essa data é inexorável, porque a partir
disso os europeus, como todo mundo sabe, exigiam que se retirasse, se
encontrasse nestas terras as riquezas, as que haviam: prata, ouro, pedras
preciosas – especialmente esses três elementos – mas quando não tinha isso nas
terras, se exigia produção. Então, se algo é inexorável é a história que
ocorreu e que foi efetivamente a que ocorreu, e com todas as lutas e com todos
os heróis que sucederam neste período todo e com o povo que está aqui vivo hoje
na América Latina. Então, nós somos todos – mesmo aquelas famílias alemãs,
italianas, polonesas e tantas outras etnias que vieram para cá depois - nós
somos muito reflexo desse processo histórico todo e que nos diz, que nos dá os
sobrenomes que nós temos hoje, e o nosso modo de ser, que os guaranis chamam
de Ñde reko, que é o modo se ser das pessoas, cada um com um
pouquinho mais ou um pouquinho menos de inflexão desse processo histórico.
Catedral de Santo Ângelo e peregrinos. Foto: José Roberto de Oliveira |
Fazendo um salto do passado para o presente, mas
também com uma perspectiva futura: como o cooperativismo pode representar um
contraponto, e também porque não o modelo e uma esperança em um mundo que a
gente vive, às vezes tão egoísta individualista?
O processo de cooperação ele nasce dentro de cada
um de nós, através de uma coisa que eu chamo de “índice de capacidade humana e
social do desenvolvimento”, que esse é meu trabalho de mestrado, é a minha
pesquisa toda que eu fiz, ela acabou se transformando num livro chamado “Índice
de capacidade humana e social do desenvolvimento”, que é um índice matemático –
eu estudei engenharia, então eu penso também em números. Então tem lugares que
são mais empreendedores, tem lugares que têm níveis de empreendedorismo, níveis
de conhecimento sobre os temas, níveis de confiança, que é fundamental entender
por que algumas comunidades desenvolvem e outras não, que é o nível de
confiança existente naquele lugar, ou seja, o capital social existente naquele
lugar. Então essas relações elas dizem que cada um de nós, ele se integra a um
processo de desenvolvimento de diversas formas. Algumas pessoas são
extremamente individualistas e que precisamos de pessoas que trabalham com
essas ideias mais individualistas no mundo. Mas precisamos também de ideias de
mais cooperação no mundo. Então tem pessoas que têm índoles maiores de serem
cooperadores com processo de desenvolvimento local, regional e de países.
Então, essa forma de pensar da cooperação ela interage e age de diferentes formas
dentro de cada um de nós. Algumas pessoas têm índoles para serem funcionários,
outras pessoas têm para serem empreendedores, outras querem ser empreendedores,
mas têm dificuldades econômicas, essas questões naturais da vida. Então, o
processo de cooperação é um processo que pode ser criado dentro das mentes das
pessoas, para isso precisa aprender isso e obviamente muito mais que aprender,
colocar isso no coração das pessoas.
Então veja que o mundo precisa muito de cooperação,
tanto para o desenvolvimento das comunidades mais pobres, você sabe que nós
temos em grande quantidade no Brasil e no conjunto todo da América Latina,
então a cooperação ela deve ser incentivada, ela deve ser adubada, vamos dizer
assim, no conjunto da sociedade, no sentido que nós possamos nos unir e
comunidades unidas, elas têm poder imenso, até poder político mesmo, essa coisa
do voto mesmo, e no cooperativismo, não importa o tamanho do teu capital,
importa é que você tenha o valor de um voto, então todo o processo de
cooperação, isso é fundamental. E veja que na vida a gente tem que pensar nas
coisas também.
“Então,
um processo de cooperação ele é extremamente importante para o mundo novo que
nós sonhamos, para esse mundo mais igualitário, mais fraternal.”
Quer dizer, essas ideias lá da Revolução Francesa
elas deveriam estar presentes hoje em cada um de nós, na nossa luta diária, no
escrever, no dizer, no fazer isso especialmente. E o cooperativismo, a
cooperação ela deve ser o fundamento do nosso mundo cristão, porque é um jeito
de romper esses individualismos e que está dentro de cada um, sem dúvida
nenhuma. Mas veja que é uma luta diária, para nós nos melhorarmos como pessoa,
como gente, como cristão, e começar a pensar nesse mundo novo, mais irmão, mais
cooperador, mais de ajuda mútua mesmo, com mais “amor”, que é o centro, parece,
da ideia da cooperação.
Ruínas de São Miguel Arcanjo. Foto: José Roberto de Oliveira |
Uma mensagem final...
Sempre agradecer pela condição nossa de falar sobre
as Missões e convidar as pessoas – eu vejo que as nossas falas têm refletido
muito. Eu recebi vários comunicados via whatsapp, telefonemas de gente de
vários países, falando da importância que foi a nossa última conversa, e essa
de agora com certeza também vai refletir muito e que as pessoas acabam também
pensando sobre essas coisas todas e conhecendo toda essa nossa história de
Missões. Então nós convidamos as pessoas também para virem para cá, para verem
diretamente essa história que ainda está vivíssima, esse mundo bonito da terra
vermelha, que aqui une três países e especialmente nós aqui do lado brasileiro.
Então convidamos a nossa gente do país, do Brasil, mas também gente de toda a
América Latina e europeus que venham conhecer essa experiência cristã,
fundamental para o mundo que se construiu e que temos hoje, e que se Deus
quiser, teremos no futuro um mundo mais irmão, mais fraterno, mais igualitário.
*José
Roberto de Oliveira é natural de Santo Ângelo (RS), engenheiro de formação, na
área da Topografia e Cartografia; foi por longo tempo docente na URI
(Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões); diretor de
desenvolvimento do Turismo no Rio Grande do Sul; um dos fundadores do
Ministério do Turismo; criador em 2012, junto com os jesuítas, mais argentinos
e paraguaios, da “Nação Missioneira”; foi criador do Circuito Internacional
Missões Jesuíticas e representante brasileiro no Mercosul, também em função de
seu envolvimento no tema das Missões.
Fonte: Vatican News
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