Papa Leão XIII | Veritatis Splendor |
PROVIDENTISSIMUS DEUS, DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE OS
ESTUDOS BÍBLICOS
Veneráveis
irmãos, saúde e benção apostólica
1. Deus
providentíssimo, que por um admirável desígnio da sua caridade, elevou o gênero
humano, desde a sua origem, a participante da natureza divina, e depois,
regenerado da culpa e pena universal, o restituiu á pristina dignidade,
dignou-se liberalizar-lhe uma graça singular revelando-lhe por meios
sobrenaturais os arcanos da sua divindade, sabedoria e misericórdia. E, se bem
que na revelação divina há verdades accessíveis a inteligência humana, foram,
todavia, reveladas ao homem para que lograssem ser conhecidas por todos, dum
modo expedito, com firme certeza, sem mescla de erro; não porque para tais
verdades fosse de absoluta necessidade a revelação divina, mas porque Deus em
sua infinita bondade ordenou o homem a um fim sobrenatural.
Ora, esta
revelação sobrenatural está contida, consoante no-lo ensina a crença da Igreja
universal, já nas tradições orais, já nos livros sagrados e canónicos, assim
chamados, por isso que, escritos sob o influxo do Espírito Santo, têm a Deus
por autor e como tais foram confiados â sua Igreja. Esta é a crença que, acerca
dos livros de ambos os Testamentos, a Igreja sempre e em toda a parte
publicamente professou; e são conhecidos os documentos tão antigos como
autorizados, onde se diz que aquele Deus que falara primeiramente pelos
profetas, depois por si e, finalmente, pelos apóstolos, esse mesmo é o autor da
Escritura canónica, oráculo e palavra de Deus, uma como carta enviada pelo Pai
celeste e transmitida pelos apóstolos ao género humano, peregrino longe da
pátria. Sendo, pois, tão remontada a excelência e dignidade das Escrituras,
oriundas do próprio Deus, e sendo altíssimos os mistérios, desígnios e
maravilhas que encerra, é da mais subida excelência e utilidade aquela parte da
sagrada teologia que tem por fim interpretar e defender a doutrina contida nos
livros divinos. Por isso é que Nós, assim como diligenciamos, mediante
repetidas cartas e exortações, promover, e não sem fruto, mercê de Deus, o
esplendor de outras disciplinas de grande momento para a gloria de Deus e salvação
das almas, assim também de ha muito assentamos excitar e recomendar o
nobilíssimo estudo das sagradas Letras, imprimindo-lhe a direção que as circunstâncias
dos tempos reclamam. A solicitude do nosso múnus apostólico move-nos e como que
nos impele a que não só seja conhecida com segurança e fruto para a grei cristã
aquela preclaríssima fonte da revelação católica, mas também a que não
consintamos que seja nem ao de leve violada por aqueles que, ousada e
impiamente, impugnam a sagrada Escritura ou com falazes e imprudentes inovações
tramam contra ela. Bem sabemos, veneráveis irmãos, que muitos católicos, varões
de grande engenho e doutrina, se dedicam de boa mente e animo inquebrantável a
defesa dos Livros sagrados ou a tornar mais nítido e vasto o seu conhecimento e
sentido. E se louvamos, como é de razão, tais e tão frutuosos trabalhos, não
podemos deixar de exortar instantemente outros varões cujo talento, doutrina e
piedade prometem grandes cousas, a que sigam o louvável propósito daqueles. É
nosso veemente desejo que seja grande o número dos defensores das Letras
divinas e que permaneçam constantes nesta missão, principalmente os que a graça
divina chamou ao santuário, pois que a estes com toda a justiça impende a
obrigação de as ler com mais diligência e indústria, de as meditar e explicar.
2. A
razão principal que torna altamente recomendável este estudo, não falando já da
sua excelência e do obsequio devido á palavra de Deus, está nos grandes bens
que, segundo a promessa infalível do Espírito Santo, dele dimanam: —Toda a
Escritura, divinamente inspirada, é útil para ensinar, para repreender, para
corrigir, para instruir na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito
e aparelhado para toda a obra boa. O exemplo de Cristo e dos apóstolos mostra-nos
que com tal desígnio nos foram dadas as Escrituras. Jesus Cristo — que pelos
seus milagres conquistou autoridade, pela autoridade mereceu fé, pela fé atraiu
as multidões — costumava apelar para as sagradas Letras como testemunhas da sua
missão divina. Com as Escrituras mostra que não só é legado de Deus, mas
verdadeiro Deus; delias deduz argumento para ensinar os discípulos e confirmar
a sua doutrina, para vingar a sua pregação das calúnias dos detratores, para
arguir os fariseus e saduceus e confundir o próprio Satanás, quando
impudentemente o tentava; às mesmas Escrituras recorreu, enfim, nos derradeiros
momentos da sua vida mortal, e, depois de ressuscitado, as explicou aos seus
discípulos até à sua ascensão à gloria do Pai. Fiéis à palavra e mandatos do
Mestre, os apóstolos, ainda que em nome de Cristo operavam milagres, hauriram,
todavia, dos Livros divinos aquela extraordinária eficácia com que difundiram
entre os gentios a sabedoria cristã, reduziram a obstinação dos judeus e
esmagaram as heresias nascentes. Assim no-lo dizem as pregações apostólicas e
nomeadamente as do B. Pedro, onde brilha, deduzido de várias passagens do velho
Testamento, firmíssimo argumento em prol da nova Lei. O mesmo facto achamos
consignado nos Evangelhos de S. Matheus e S. João, nas Epistolas católicas, e,
dum modo brilhantíssimo, no testemunho daquele que se gloria de ter aprendido
aos pés de Gamaliel a lei de Moisés e os Profetas, a fim de que, munido de
auxílios espirituais, pudesse confiadamente dizer: As armas da nossa milícia
não são carnais, mas o poder de Deus. Pelo exemplo, pois, de Cristo e dos
apóstolos intendam todos, e nomeadamente os alunos da milícia sagrada, quão
grande seja o preço das Letras divinas e com que fervor e piedade devem
recorrer a elas como a um bem provido arsenal, porque não há, para os que têm
de ensinar a doutrina católica a doutos e indoutos, mais opulenta fonte de
provas, nem mais persuasiva demonstração de Deus, bem sumo e perfeitíssimo e
das obras que proclamam a sua glória e bondade. Acerca do Redentor do género
humano, o magistério da Bíblia é, sobre abundante, duma clareza inexcedível; e
com razão afirma S. Jeronimo que — ignorar as Escrituras, o mesmo é que ignorar
a Cristo. Ha, com efeito, nas Escrituras uma como imagem viva e inspiradora de
Cristo que nos alenta na adversidade, nos exorta a prática da virtude e nos
incita ao amor divino. Relativamente à Igreja, as sagradas Páginas
subministramos tantos e tão peremptórios argumentos da sua instituição,
natureza, poderes e graças, que S. Jeronimo pode dizer com inteira verdade: — É
um baluarte da Igreja aquele que está apercebido com o estudo das sagradas
Escrituras —. Para a formação dos costumes e disciplina moral têm os varões
apostólicos, na Bíblia, ótimos e abundantes subsídios preceitos da mais sublime
santidade, exortações opulentas de doçura e eficácia, exemplos insignes de
todas as virtudes, a promessa divina duma eternidade de prémios e a cominação
de penas eternas também.
3. Esta
virtude própria e peculiar das Escrituras, oriunda da inspiração do Espírito
Santo, dá novo realce a autoridade do orador sagrado, robustece a liberdade
apostólica com que deve falar e inspira-lhe uma eloquência por igual enérgica e
vitoriosa. O orador que informa a sua pregação do espírito e da força do verbo
divino, esse não prega só de palavra, mas com eficácia, com a virtude do Espírito
Santo, logrando abundante fruto. Procedem mal e desatinadamente os oradores
sagrados que, anunciando a palavra de Deus, põem quase completamente de parte
os argumentos divinos, para que nos seus discursos mais avultem as palavras da
ciência e da prudência humana. Os discursos de tais oradores, por mais
brilhantes que sejam, tornam-se necessariamente áridos e frios, como não os
inflama o fogo da palavra de Deus; estão muito longe daquela virtude que
informa a palavra divina, viva e eficaz, mais penetrante que a espada de dois
gumes, e que vae até ao íntimo da alma. Assentindo ao juízo de graves
autoridades, tenhamos como certo que há nas sagradas Letras uma eloquência
admiravelmente variada, opulenta e digna dos mais alevantados assumptos. Assim
o afirma e largamente demonstra Santo Agostinho, assim o confirmam oradores
sagrados excelentes e beneméritos que, rendendo graças a Deus, confessam dever
o seu renome principalmente ao estudo assíduo e pia meditação da Bíblia.
4. Bem
conhecidas foram e aproveitadas pelos Santos Padres todas estas riquezas das
Letras divinas, por isso lhe tecem incessantes louvores e exaltam os seus
frutos. Às Escrituras recorrem frequentemente, já como a tesouro opulentíssimo
de celeste doutrina, já como a fonte perene de salvação, ora propondo-no-las
como férteis e ameníssimos prados onde a grei cristã recebe admirável e
delicioso pasto. Vem aqui muito a propósito aquelas palavras de S. Jeronimo ao
clérigo Nepociano: — “Lê muitas vezes as divinas Escrituras, ou antes, nunca
interrompas a lição sagrada, instrui-te para instruíres os outros. . . seja a
linguagem do presbítero toda baseada na lição das Escrituras”. É também o
sentir de S. Gregório Magno, o doutor que mais sabiamente descreveu os múnus
dos pastores da Igreja: — “Para os que se dedicam ao ofício da pregação é de
necessidade o estudo assíduo das sagradas Letras”. Apraz-nos recordar a
admoestação de Santo Agostinho, o qual afirma que — “é vão pregador da palavra
de Deus aquilo que a não tem gravada em sua alma”. O mesmo S. Gregório Magno
ordena aos oradores sagrados que— “antes de recitarem os seus discursos, metam
a mão na sua consciência, para que não suceda que, condenando as ações dos
outros, a si próprios se condenem”, seguindo a palavra e o exemplo de Cristo
que inaugurou a sua vida apostólica ensinando e praticando, o apostolo
preceitua tal doutrina não só a Timóteo, senão também a toda a hierarquia
clerical olha por ti e pela instrução dos outros, insta nestas cousas, porque,
procedendo assim, lograrás a tua salvação e a dos próximos. Ha, na verdade, nas
sagradas Letras excelentes subsídios, abundantíssimos nos Salmos, para a
perfeição própria e alheia, mas que só aproveitam aos de animo dócil e atento,
de vontade piedosa e rendida á palavra divina. Não é o mesmo nem de vulgar
conhecimento o desígnio e a traça de todos os livros sagrados; mas, como foram
escritos sob o influxo do Espírito Santo e contêm cousas gravíssimas, em muitos
lugares recônditas e difíceis, havemos necessidade, para as intender e expor,
do — advento — do mesmo Espírito, isto é, das suas luzes e graças que, como
instantemente no-lo persuade a autoridade do salmista inspirado, devemos
implorar com humilde prece e fielmente guardar mediante uma vida santa.
5. Daqui
vem a providência sobre todo o encarecimento admirável com que a Igreja
estabeleceu leis sabias e criou instituições, a fim de— conservar no devido
acatamento aquele tesouro celeste dos livros sagrados que a suma liberalidade
do Espírito Santo concedeu aos homens. Assim pois determinou a Igreja não só
que uma grande parte das Escrituras fosse recitada e piedosamente meditada no
ofício quotidiano da salmodia divina, senão também que varões idôneos as
expusessem e interpretassem nas Igrejas catedrais, mosteiros e conventos de
regulares, onde tais estudos pudessem comodamente estabelecer-se, impondo além
disto aos pastores de almas o dever de subministrar aos fiéis, ao menos nos
domingos e dias santificados, o pasto salutar do Evangelho. Deve-se ainda ao
zelo e solicitude da Igreja aquele culto da Sagrada Escritura que atravessou
sempre vivo todas as idades e sempre fecundo em opimos frutos.
6. E,
para dar mais força ao nosso asserto e às nossas exortações, apraz-nos
consignar que, desde o alvorecer do cristianismo, floresceram no estudo das
sagradas Letras muitos varões insignes na ciência das cousas divinas e em
santidade. S. Clemente Romano, Santo Ignácio de Antioquia, S. Policarpo,
discípulos imediatos dos apóstolos, e, dentre os apologistas, S. Justino e
Santo Irineu, hauriram principalmente das Escrituras aquela fé, energia e unção
com que, nas suas epístolas e livros, ora defendiam ora recomendavam os dogmas
católicos. Nas mesmas escolas catequéticas e teológicas instituídas em muitas
Sés episcopais, nas celebérrimas cátedras de Alexandria e Antioquia, abertas ao
ensino, o magistério quase todo se resumia na leitura, exposição e defesa da
palavra de Deus escrita. De tais institutos [saiu uma legião de Padres e
escritores cujo talento fecundo e obras de subido valor, durante o longo
período de três séculos, mereceram que aquela época fosse dado, e com toda a
justiça, o título de idade áurea da exegese bíblica. Entre os orientais ocupa
um lugar primacial Orígenes, admirável pela perspicácia do seu talento e
tenacidade no estudo. Aos seus muitos escritos, a sua momentosa obra das
Héxaplas, recorreram quase todos que se lhe seguiram. Ha a acrescentar a estes
uma numerosa plêiade de escritores que alargaram o âmbito da exegese,
sobressaindo, entre os mais distintos, em Alexandria, Clemente e Cirilo; na
Palestina, Eusébio e Cirilo de Jerusalém; na Capadócia, Basílio Magno e os dois
Gregórios, Nazianzeno e Nisseno; em Antioquia, aquele João Chrysostomo em cuja
pena de exegeta a excelência da doutrina disputa primazias com a sublimidade da
eloquência. Não menor é o esplendor da exegese no Ocidente. Entre os muitos que
tanto se avantajaram nesta disciplina fulgem os nomes de Hilário e Ambrósio, de
Leão e Gregório Magno, e, com brilho especial, os de Agostinho e Jeronimo; o
primeiro, de admirável agudeza de engenho na investigação do sentido da palavra
de Deus e de não menos admirável fecundidade em deduzir da mesma palavra divina
argumentos em prol da verdade católica; o segundo, notável pela sua rara
erudição bíblica e momentosos trabalhos escriturísticos, bem mereceu que a
Igreja o proclamasse Doutor máximo.
7. Desde
então até ao século XI, ainda que os estudos bíblicos não tenham logrado aquele
esplendor, nem produziram aqueles frutos que nos séculos idos, floresceram,
todavia, principalmente nas obras de escritores eclesiásticos. Cuidaram estes
com efeito em colecionar o que de mais importante escreveram os antigos, em
dispô-lo ordenadamente, e enriqueço-o de novas investigações, e tais foram os
trabalhos de Isidoro de Sevilha, de Beda e Alcuino principalmente; em ilustrar
de glosas os sagrados códices, como fizeram Valafridio e Anselmo de Laon; em
firmar com novos argumentos a integridade do texto sagrado e este foi o
trabalho de S. Pedro Damião e Lanfranco. No século XII muitos teólogos houveram
que cultivaram com merecido louvor a exposição alegórica da Sagrada Escritura;
a todos, porém se avantajou S. Bernardo, cujos sermões são, na sua quase
totalidade, extraídos das sagradas Letras.
Fonte: Portal Veritatis Splendor
Nenhum comentário:
Postar um comentário