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segunda-feira, 21 de junho de 2021

Providentissimus Deus (Parte 1/5)

Papa Leão XIII | Veritatis Splendor

PROVIDENTISSIMUS DEUSDO PAPA LEÃO XIII

SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS

Veneráveis irmãos, saúde e benção apostólica

1. Deus providentíssimo, que por um admirável desígnio da sua caridade, elevou o gênero humano, desde a sua origem, a participante da natureza divina, e depois, regenerado da culpa e pena universal, o restituiu á pristina dignidade, dignou-se liberalizar-lhe uma graça singular revelando-lhe por meios sobrenaturais os arcanos da sua divindade, sabedoria e misericórdia. E, se bem que na revelação divina há verdades accessíveis a inteligência humana, foram, todavia, reveladas ao homem para que lograssem ser conhecidas por todos, dum modo expedito, com firme certeza, sem mescla de erro; não porque para tais verdades fosse de absoluta necessidade a revelação divina, mas porque Deus em sua infinita bondade ordenou o homem a um fim sobrenatural.

Ora, esta revelação sobrenatural está contida, consoante no-lo ensina a crença da Igreja universal, já nas tradições orais, já nos livros sagrados e canónicos, assim chamados, por isso que, escritos sob o influxo do Espírito Santo, têm a Deus por autor e como tais foram confiados â sua Igreja. Esta é a crença que, acerca dos livros de ambos os Testamentos, a Igreja sempre e em toda a parte publicamente professou; e são conhecidos os documentos tão antigos como autorizados, onde se diz que aquele Deus que falara primeiramente pelos profetas, depois por si e, finalmente, pelos apóstolos, esse mesmo é o autor da Escritura canónica, oráculo e palavra de Deus, uma como carta enviada pelo Pai celeste e transmitida pelos apóstolos ao género humano, peregrino longe da pátria. Sendo, pois, tão remontada a excelência e dignidade das Escrituras, oriundas do próprio Deus, e sendo altíssimos os mistérios, desígnios e maravilhas que encerra, é da mais subida excelência e utilidade aquela parte da sagrada teologia que tem por fim interpretar e defender a doutrina contida nos livros divinos. Por isso é que Nós, assim como diligenciamos, mediante repetidas cartas e exortações, promover, e não sem fruto, mercê de Deus, o esplendor de outras disciplinas de grande momento para a gloria de Deus e salvação das almas, assim também de ha muito assentamos excitar e recomendar o nobilíssimo estudo das sagradas Letras, imprimindo-lhe a direção que as circunstâncias dos tempos reclamam. A solicitude do nosso múnus apostólico move-nos e como que nos impele a que não só seja conhecida com segurança e fruto para a grei cristã aquela preclaríssima fonte da revelação católica, mas também a que não consintamos que seja nem ao de leve violada por aqueles que, ousada e impiamente, impugnam a sagrada Escritura ou com falazes e imprudentes inovações tramam contra ela. Bem sabemos, veneráveis irmãos, que muitos católicos, varões de grande engenho e doutrina, se dedicam de boa mente e animo inquebrantável a defesa dos Livros sagrados ou a tornar mais nítido e vasto o seu conhecimento e sentido. E se louvamos, como é de razão, tais e tão frutuosos trabalhos, não podemos deixar de exortar instantemente outros varões cujo talento, doutrina e piedade prometem grandes cousas, a que sigam o louvável propósito daqueles. É nosso veemente desejo que seja grande o número dos defensores das Letras divinas e que permaneçam constantes nesta missão, principalmente os que a graça divina chamou ao santuário, pois que a estes com toda a justiça impende a obrigação de as ler com mais diligência e indústria, de as meditar e explicar.

2. A razão principal que torna altamente recomendável este estudo, não falando já da sua excelência e do obsequio devido á palavra de Deus, está nos grandes bens que, segundo a promessa infalível do Espírito Santo, dele dimanam: —Toda a Escritura, divinamente inspirada, é útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e aparelhado para toda a obra boa. O exemplo de Cristo e dos apóstolos mostra-nos que com tal desígnio nos foram dadas as Escrituras. Jesus Cristo — que pelos seus milagres conquistou autoridade, pela autoridade mereceu fé, pela fé atraiu as multidões — costumava apelar para as sagradas Letras como testemunhas da sua missão divina. Com as Escrituras mostra que não só é legado de Deus, mas verdadeiro Deus; delias deduz argumento para ensinar os discípulos e confirmar a sua doutrina, para vingar a sua pregação das calúnias dos detratores, para arguir os fariseus e saduceus e confundir o próprio Satanás, quando impudentemente o tentava; às mesmas Escrituras recorreu, enfim, nos derradeiros momentos da sua vida mortal, e, depois de ressuscitado, as explicou aos seus discípulos até à sua ascensão à gloria do Pai. Fiéis à palavra e mandatos do Mestre, os apóstolos, ainda que em nome de Cristo operavam milagres, hauriram, todavia, dos Livros divinos aquela extraordinária eficácia com que difundiram entre os gentios a sabedoria cristã, reduziram a obstinação dos judeus e esmagaram as heresias nascentes. Assim no-lo dizem as pregações apostólicas e nomeadamente as do B. Pedro, onde brilha, deduzido de várias passagens do velho Testamento, firmíssimo argumento em prol da nova Lei. O mesmo facto achamos consignado nos Evangelhos de S. Matheus e S. João, nas Epistolas católicas, e, dum modo brilhantíssimo, no testemunho daquele que se gloria de ter aprendido aos pés de Gamaliel a lei de Moisés e os Profetas, a fim de que, munido de auxílios espirituais, pudesse confiadamente dizer: As armas da nossa milícia não são carnais, mas o poder de Deus. Pelo exemplo, pois, de Cristo e dos apóstolos intendam todos, e nomeadamente os alunos da milícia sagrada, quão grande seja o preço das Letras divinas e com que fervor e piedade devem recorrer a elas como a um bem provido arsenal, porque não há, para os que têm de ensinar a doutrina católica a doutos e indoutos, mais opulenta fonte de provas, nem mais persuasiva demonstração de Deus, bem sumo e perfeitíssimo e das obras que proclamam a sua glória e bondade. Acerca do Redentor do género humano, o magistério da Bíblia é, sobre abundante, duma clareza inexcedível; e com razão afirma S. Jeronimo que — ignorar as Escrituras, o mesmo é que ignorar a Cristo. Ha, com efeito, nas Escrituras uma como imagem viva e inspiradora de Cristo que nos alenta na adversidade, nos exorta a prática da virtude e nos incita ao amor divino. Relativamente à Igreja, as sagradas Páginas subministramos tantos e tão peremptórios argumentos da sua instituição, natureza, poderes e graças, que S. Jeronimo pode dizer com inteira verdade: — É um baluarte da Igreja aquele que está apercebido com o estudo das sagradas Escrituras —. Para a formação dos costumes e disciplina moral têm os varões apostólicos, na Bíblia, ótimos e abundantes subsídios preceitos da mais sublime santidade, exortações opulentas de doçura e eficácia, exemplos insignes de todas as virtudes, a promessa divina duma eternidade de prémios e a cominação de penas eternas também.

3. Esta virtude própria e peculiar das Escrituras, oriunda da inspiração do Espírito Santo, dá novo realce a autoridade do orador sagrado, robustece a liberdade apostólica com que deve falar e inspira-lhe uma eloquência por igual enérgica e vitoriosa. O orador que informa a sua pregação do espírito e da força do verbo divino, esse não prega só de palavra, mas com eficácia, com a virtude do Espírito Santo, logrando abundante fruto. Procedem mal e desatinadamente os oradores sagrados que, anunciando a palavra de Deus, põem quase completamente de parte os argumentos divinos, para que nos seus discursos mais avultem as palavras da ciência e da prudência humana. Os discursos de tais oradores, por mais brilhantes que sejam, tornam-se necessariamente áridos e frios, como não os inflama o fogo da palavra de Deus; estão muito longe daquela virtude que informa a palavra divina, viva e eficaz, mais penetrante que a espada de dois gumes, e que vae até ao íntimo da alma. Assentindo ao juízo de graves autoridades, tenhamos como certo que há nas sagradas Letras uma eloquência admiravelmente variada, opulenta e digna dos mais alevantados assumptos. Assim o afirma e largamente demonstra Santo Agostinho, assim o confirmam oradores sagrados excelentes e beneméritos que, rendendo graças a Deus, confessam dever o seu renome principalmente ao estudo assíduo e pia meditação da Bíblia.

4. Bem conhecidas foram e aproveitadas pelos Santos Padres todas estas riquezas das Letras divinas, por isso lhe tecem incessantes louvores e exaltam os seus frutos. Às Escrituras recorrem frequentemente, já como a tesouro opulentíssimo de celeste doutrina, já como a fonte perene de salvação, ora propondo-no-las como férteis e ameníssimos prados onde a grei cristã recebe admirável e delicioso pasto. Vem aqui muito a propósito aquelas palavras de S. Jeronimo ao clérigo Nepociano: — “Lê muitas vezes as divinas Escrituras, ou antes, nunca interrompas a lição sagrada, instrui-te para instruíres os outros. . . seja a linguagem do presbítero toda baseada na lição das Escrituras”. É também o sentir de S. Gregório Magno, o doutor que mais sabiamente descreveu os múnus dos pastores da Igreja: — “Para os que se dedicam ao ofício da pregação é de necessidade o estudo assíduo das sagradas Letras”. Apraz-nos recordar a admoestação de Santo Agostinho, o qual afirma que — “é vão pregador da palavra de Deus aquilo que a não tem gravada em sua alma”. O mesmo S. Gregório Magno ordena aos oradores sagrados que— “antes de recitarem os seus discursos, metam a mão na sua consciência, para que não suceda que, condenando as ações dos outros, a si próprios se condenem”, seguindo a palavra e o exemplo de Cristo que inaugurou a sua vida apostólica ensinando e praticando, o apostolo preceitua tal doutrina não só a Timóteo, senão também a toda a hierarquia clerical olha por ti e pela instrução dos outros, insta nestas cousas, porque, procedendo assim, lograrás a tua salvação e a dos próximos. Ha, na verdade, nas sagradas Letras excelentes subsídios, abundantíssimos nos Salmos, para a perfeição própria e alheia, mas que só aproveitam aos de animo dócil e atento, de vontade piedosa e rendida á palavra divina. Não é o mesmo nem de vulgar conhecimento o desígnio e a traça de todos os livros sagrados; mas, como foram escritos sob o influxo do Espírito Santo e contêm cousas gravíssimas, em muitos lugares recônditas e difíceis, havemos necessidade, para as intender e expor, do — advento — do mesmo Espírito, isto é, das suas luzes e graças que, como instantemente no-lo persuade a autoridade do salmista inspirado, devemos implorar com humilde prece e fielmente guardar mediante uma vida santa.

5. Daqui vem a providência sobre todo o encarecimento admirável com que a Igreja estabeleceu leis sabias e criou instituições, a fim de— conservar no devido acatamento aquele tesouro celeste dos livros sagrados que a suma liberalidade do Espírito Santo concedeu aos homens. Assim pois determinou a Igreja não só que uma grande parte das Escrituras fosse recitada e piedosamente meditada no ofício quotidiano da salmodia divina, senão também que varões idôneos as expusessem e interpretassem nas Igrejas catedrais, mosteiros e conventos de regulares, onde tais estudos pudessem comodamente estabelecer-se, impondo além disto aos pastores de almas o dever de subministrar aos fiéis, ao menos nos domingos e dias santificados, o pasto salutar do Evangelho. Deve-se ainda ao zelo e solicitude da Igreja aquele culto da Sagrada Escritura que atravessou sempre vivo todas as idades e sempre fecundo em opimos frutos.

6. E, para dar mais força ao nosso asserto e às nossas exortações, apraz-nos consignar que, desde o alvorecer do cristianismo, floresceram no estudo das sagradas Letras muitos varões insignes na ciência das cousas divinas e em santidade. S. Clemente Romano, Santo Ignácio de Antioquia, S. Policarpo, discípulos imediatos dos apóstolos, e, dentre os apologistas, S. Justino e Santo Irineu, hauriram principalmente das Escrituras aquela fé, energia e unção com que, nas suas epístolas e livros, ora defendiam ora recomendavam os dogmas católicos. Nas mesmas escolas catequéticas e teológicas instituídas em muitas Sés episcopais, nas celebérrimas cátedras de Alexandria e Antioquia, abertas ao ensino, o magistério quase todo se resumia na leitura, exposição e defesa da palavra de Deus escrita. De tais institutos [saiu uma legião de Padres e escritores cujo talento fecundo e obras de subido valor, durante o longo período de três séculos, mereceram que aquela época fosse dado, e com toda a justiça, o título de idade áurea da exegese bíblica. Entre os orientais ocupa um lugar primacial Orígenes, admirável pela perspicácia do seu talento e tenacidade no estudo. Aos seus muitos escritos, a sua momentosa obra das Héxaplas, recorreram quase todos que se lhe seguiram. Ha a acrescentar a estes uma numerosa plêiade de escritores que alargaram o âmbito da exegese, sobressaindo, entre os mais distintos, em Alexandria, Clemente e Cirilo; na Palestina, Eusébio e Cirilo de Jerusalém; na Capadócia, Basílio Magno e os dois Gregórios, Nazianzeno e Nisseno; em Antioquia, aquele João Chrysostomo em cuja pena de exegeta a excelência da doutrina disputa primazias com a sublimidade da eloquência. Não menor é o esplendor da exegese no Ocidente. Entre os muitos que tanto se avantajaram nesta disciplina fulgem os nomes de Hilário e Ambrósio, de Leão e Gregório Magno, e, com brilho especial, os de Agostinho e Jeronimo; o primeiro, de admirável agudeza de engenho na investigação do sentido da palavra de Deus e de não menos admirável fecundidade em deduzir da mesma palavra divina argumentos em prol da verdade católica; o segundo, notável pela sua rara erudição bíblica e momentosos trabalhos escriturísticos, bem mereceu que a Igreja o proclamasse Doutor máximo.

7. Desde então até ao século XI, ainda que os estudos bíblicos não tenham logrado aquele esplendor, nem produziram aqueles frutos que nos séculos idos, floresceram, todavia, principalmente nas obras de escritores eclesiásticos. Cuidaram estes com efeito em colecionar o que de mais importante escreveram os antigos, em dispô-lo ordenadamente, e enriqueço-o de novas investigações, e tais foram os trabalhos de Isidoro de Sevilha, de Beda e Alcuino principalmente; em ilustrar de glosas os sagrados códices, como fizeram Valafridio e Anselmo de Laon; em firmar com novos argumentos a integridade do texto sagrado e este foi o trabalho de S. Pedro Damião e Lanfranco. No século XII muitos teólogos houveram que cultivaram com merecido louvor a exposição alegórica da Sagrada Escritura; a todos, porém se avantajou S. Bernardo, cujos sermões são, na sua quase totalidade, extraídos das sagradas Letras.

Fonte: Portal Veritatis Splendor

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF