Papa Leão XIII | Veritatis Splendor |
PROVIDENTISSIMUS DEUS, DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE OS
ESTUDOS BÍBLICOS
Veneráveis
irmãos, saúde e benção apostólica
8. Mas
novos e mais auspiciosos incrementos produziu a disciplina dos escolásticos. E,
se bem que estes procuraram estabelecer a lição fiel da versão latina, como
no-lo atestam as suas correções bíblicas, foi, todavia, seu principal cuidado
interpretar e explanar o sagrado texto. Ninguém até então conseguiu expor com
mais ordem e clareza os vários e distintos sentidos da palavra divina, a sua
força probativa nas demonstrações teológicas, a divisão e o argumento dos
Livros santos, o escopo dos seus autores, o nexo íntimo entre os diversos
pensamentos bíblicos, e é evidente que tudo isto derrama abundante luz sobre os
lugares obscuros da Escritura. Além de que, da doutrina dos escolásticos, tão
seleta como copiosa, muito se aproveitaram os tratados de teologia e os
comentários escriturísticos; e ainda nestes trabalhos a todos leva a palma S.
Tomás de Aquino. Todavia, depois que Clemente V, nosso predecessor, dotou o
Atheneu de Roma e algumas Universidades famosas de cátedras para o magistério
das línguas orientais, prestes os escolásticos se dedicaram com novo fervor ao
estudo do códice original e versão latina da Bíblia. O estudo dos monumentos da
literatura grega e o feliz advento da imprensa rasgaram vastos horizontes ao
culto da sagrada Escritura. Pasma-se de assombro ao ver como em tão breve
espaço de tempo se difundiram por todo o orbe católico inumeráveis exemplares
impressos da Bíblia, principalmente da Vulgata. Eram glorificados e amados os
Livros divinos no mesmo tempo em que os inimigos da Igreja a perseguiam com
calúnias.
9. Não
devemos passar em silencio os momentosos serviços que, desde o Concilio de
Vienna ao de Trento, prestaram aos estudos bíblicos muitos varões doutos,
especialmente das diferentes famílias religiosas. Dotados de vasta erudição e
agudo engenho e aproveitando-se de novos subsídios, não só aumentaram as
riquezas acumuladas dos seus maiores, senão que também prepararam o esplendor
do século XVII em que pareceu reviver a idade áurea dos Padres. Ninguém ignora,
e é para nós sobremodo agradável recordá-lo, que aos Nossos predecessores,
desde Pio IV a Clemente VIII, se devem as insignes edições das antigas versões
Vulgata e Alexandrina, que ao depois se tornaram de uso comum em virtude do
mandato de Sixto V e do mesmo Clemente VIII. É sabido ainda que pelo mesmo
tempo foram dadas a estampa, escrupulosamente revistas, não só outras versões
antigas da Bíblia, mas também as poliglotas de Anvers e Paris, de grande subsídio
para a investigação do genuíno sentido; que não há livro do antigo e novo
Testamento que não tivesse hábeis expositores, nem questão difícil da Bíblia
sobre a qual se não exercesse o talento de muitos, entre os quais alcançaram
brilhante renome não poucos, profundamente lidos nas obras dos santos Padres.
Não esmoreceu, felizmente, a solicitude dos nossos exegetas. Em nome da
filologia e ciências análogas, o racionalismo insurgiu-se contra as Escrituras;
com armas da mesma tempera muitos homens distintos e beneméritos dos estudos
bíblicos vingaram aqueles livros divinos dos sofismas com que eram impugnados.
Quem ponderar estes factos à luz duma critica imparcial certamente confessará
que a Igreja, sem ter necessidade de incitamentos estranhos, sempre se desvelou
em providencias, a fim de que as Escrituras divinas fossem outras tantas fontes
de salutar doutrina para seus filhos; que sempre conservou e ilustrou com
preciosos estudos aquele baluarte para cuja defesa e gloria a mesma Igreja foi
divinamente instituída.
10. Mas o
desígnio que intentamos, veneráveis irmãos., exige que pratiquemos convosco
sobre o que mais convém a boa orientação dos estudos bíblicos. O que
primeiramente devemos averiguar é quais os adversários com quem temos de
combater, quais as armas e ardis em que mais confiam. Assim como nos tempos
idos a luta principal foi contra os sectários do livre exame que, rejeitando as
tradições divinas e o magistério da Igreja, proclamaram a Escritura como única
fonte da revelação e juiz supremo da fé, assim também hoje a momentosa pugna é
contra os racionalistas, oriundos do protestantismo, os quais, baseando-se no
seu próprio juízo, rejeitam completamente essas relíquias da fé cristã que os
seus precursores ainda respeitaram. De feito, para os racionalistas a
revelação, a inspiração, a própria Escritura não passam de invenções e
artifícios humanos ; as narrações bíblicas não têm realidade objetiva, são
fabulas ineptas ou historias puramente subjetivas; as profecias ou foram feitas
depois de realizados os factos que anunciam, ou são previsões naturais; os
milagres nem merecem tal nome, nem manifestam um poder divino, são factos em
certo modo admiráveis, não excedem as forças da natureza e são puros mitos; os
Evangelhos e demais escritos apostólicos não são dos autores a quem se
atribuem, E tentam impor tão monstruosos erros, com que julgam destruir a
verdade sacrossanta dos Livros divinos, invocando os decretos duma tal ciência
livre/ mas que é tão incerta para os próprios racionalistas que os induz a
flagrantes contradições ou a mudar de sentir sobre o mesmo ponto. Ao passo que
tais homens sentem e escrevem tão impiamente de Deus, de Cristo, do Evangelho o
demais livros da Escritura, muitos há dentre eles que se decoram com o título
de teólogos cristãos e evangélicos, escondendo assim, com aquele nome de muita
honra, a temeridade dum talento cheio de soberba. Colaboram com estes muitos
cultores doutras ciências, igualmente adversários intolerantes da revelação,
auxiliando-os na luta contra a Bíblia. Não podemos deplorar quanto merece ser
deplorada esta guerra sem tréguas que de dia para dia se alastra com mais
veemência. Investem os racionalistas contra os eruditos que facilmente podem
aperceber-se contra os seus ataques, mas investem sobretudo contra a turba dos
indoutos com as insidias e astúcias próprias de tão funestos inimigos. Nos seus
livros, opúsculos e jornais propinam mortal veneno; insinuam-no nos seus
congressos e discursos; invadem tudo, assenhoreiam-se de muitas escolas
arrancadas a tutela da Igreja, onde inspiram às dóceis e tenras inteligências
dos jovens o desprezo das Escrituras, expondo-as miseravelmente ao ridículo com
facécias e chocarrices. Estes são os factos, veneráveis irmãos, que devem
inflamar o zelo de todos os pastores, a fim de que não só a essa nova, mas
falsa ciência se oponha aquela antiga e verdadeira ciência que a Igreja recebeu
de Cristo por meio dos apóstolos, mas também surjam apologistas idôneos da
sagrada Escritura, já que a luta é de tamanhas proporções.
11. Seja
pois o nosso primeiro cuidado que nos Seminários e academias se professe o
estudo das Letras divinas consoante o exigem assim a excelência daquela
disciplina, como as necessidades dos tempos atuais. Para lograr este fim haja todo
o escrúpulo na escolha dos mestres, como nem todos são dignos de tão árdua
missão, mas só aqueles que amam fervorosamente a Bíblia, a estudam sem cessar e
têm a conveniente preparação científica. Nem menor deve ser o cuidado e
escrúpulo com que devem ser educados os que hão de suceder no magistério
daqueles. É por isso conveniente que, dentre os alunos que concluíram com
louvor o curso teológico, se escolham, onde for possível, os de mais decidida
vocação para os estudos bíblicos e se lhes facultem os meios necessários a fim
de que possam lograr um profundo conhecimento das Escrituras. Assim escolhidos
e formados, podem confiadamente exercer o magistério; e, para que este seja o
que deve ser e produza abundantes frutos, julgamos oportuno entrar em mais largas
considerações.
12. Logo
desde o princípio do seu magistério examinem os professores a aptidão
intelectual dos alunos, cultivem-na esmeradamente e procedam de modo que os
habilitem assim para defenderem os Livros divinos, como para extraírem deles o verdadeiro
sentido. Este é o fim da chamada Introdução Bíblica que subministra ao aluno
abundantes argumentos para demonstrar a integridade e autoridade dos Livros
sagrados, para investigar e expor o seu genuíno sentido e para destruir pela
raiz as cavilações com que os impugnam. É desnecessário ponderar que é de
grande momento a discussão metódica e científica destes pontos, aos quais a
teologia presta ótimos subsídios, como o tratado da Escritura se firma naqueles
fundamentos e se esclarece com aquelas luzes.
13.
Aplique-se depois o professor, e nisto empenhe todo o seu zelo, á exegese, que
é a parte mais importante do seu magistério, ensinando aos seus discípulos como
podem converter em proveito da religião e da piedade as riquezas da palavra
divina. Bem sabemos que nem a vastidão da matéria, nem a estreiteza do tempo
permitem que se estudem nas escolas todos os livros canônicos; todavia, atenta
a necessidade de método para o estudo da exegese, fica a prudência do professor
evitar os extremos daqueles que ou analisam certas pericopas em todos os livros
da Escritura, ou dos que gastam todo o tempo na análise duma determinada
passagem num só livro. Se, pois, na maioria das escolas não se pode fazer a
análise detida dum ou doutro livro canônico, como se faz nas academias de
ensino superior, ao menos empenhem-se os professores em dar uma instrução
acabada das pericopas que escolheram para estudo exegético, a fim de que os
alunos, assim doutrinados com tal tirocínio, possam ao depois fazer trabalho
seu sobre os demais livros da Escritura, cuja lição devem sempre amar.
14. Fiel às
antigas tradições, ao professor impende o dever de usar da versão Vulgata que,
sobre ser recomendada pelo uso quotidiano da Igreja, deve ter-se, segundo o
decreto tridentino, como autêntica, nas lições públicas, nas predicas, nas
discussões e análises. Não queremos dizer com isto que se ponham de parte as
outras versões, tão usadas e encarecidas pela antiguidade cristã, e muito
principalmente os códices primitivos. Se o sentido é claro na Vulgata latina,
não é necessário recorrer à versão donde foi imediatamente traduzido; se,
porém, é ambíguo e obscuro, aconselha Santo Agostinho o recurso á versão
hebraica ou grega, consoante o texto latino é vertido daquela ou desta língua.
É manifesto que muito cuidada deve ser a circunspecção neste ponto, pois que —
“é ofício do intérprete expor não o seu sentido, mas o do autor que
interpreta”.
15.
Ponderada atentamente, quando necessário, a genuína lição, está aberto o
caminho para investigar e expor o sentido. Depois, a primeira indústria é
observar as boas regras hermenêuticas, comumente usadas, e com tanto maior
cuidado quanto mais viva e tenaz for a controvérsia com os adversários. Para
tal efeito, é de necessidade ponderar o valor das palavras, o contexto, os
lugares paralelos. . . revestindo todos estes meios hermenêuticos duma erudição
a propósito, mas parcimoniosa; que não suceda malbaratar o tempo e o trabalho
que se devia dedicar ao conhecimento dos livros divinos, ou que a acumulação de
ideias sobre vários pontos vá prejudicar o aproveitamento dos alunos em vez de
lhes ser auxílio.
Fonte: Portal Veritatis Splendor
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