Papa Leão XIII | Veritatis Splendor |
PROVIDENTISSIMUS DEUS, DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE OS
ESTUDOS BÍBLICOS
Veneráveis
irmãos, saúde e benção apostólica
16. Com
este método, o uso da sagrada Escritura será de grande eficácia nas
demonstrações teológicas. Não esqueçamos nunca que, além das causas de
dificuldade que ordinariamente ocorrem para a inteligência dos livros antigos,
ha outras peculiares dos Livros sagrados. Escritos sob o influxo do Espírito
Santo contêm mistérios altíssimos que transcendem a esfera da razão humana e
muitas outras verdades intimamente ligadas com eles; umas vezes o sentido é
mais lato e recôndito do que a letra e as leis hermenêuticas parecem indicar,
outras vezes o sentido literal oculta outros sentidos de muito alcance já para
ilustrar o dogma, já para persuadir os preceitos mor a es. Não é, pois, de
admirar que os Livros sagrados apareçam envolvidos em certa obscuridade
religiosa, de modo que ninguém ouse estudá-los sem luz que lhe alumie os
passos. Assim o dispôs a providência divina, no sentir comum dos Santos Padres,
para que os homens os estudassem com mais vontade e diligência e ficassem
profundamente gravados em sua alma os conceitos havidos com esforço, e,
sobretudo, intendessem que Deus confiou as Escrituras á sua Igreja, como a
mestra e guia segura e intérprete fiel da sua palavra. Em verdade, onde os dons
de Deus, aí é que deve aprender-se a verdade; onde a sucessão apostólica aí é
que está o magistério inerrante das Escrituras, como no-lo diz Santo Irineu.
Esta doutrina, que é a de todos os Padres, proclamou- a o Concilio do Vaticano,
quando renovou o decreto tridentino acerca da interpretação da palavra de Deus
escrita: — É crença do Concilio que em pontos de fé e costumes, atinentes a
edificação da doutrina cristã, deve ter-se como verdadeiro o sentido da sagrada
Escritura aquele que sempre professou e professa a Santa Madre Igreja, a quem
pertence julgar do verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras santas; e
por isso a ninguém é licito interpretar a Escritura sagrada contra aquele
sentido ou ainda contra o consenso unanime dos Padres.
17. Com
tal doutrina, toda informada duma alta sabedoria, a Igreja, longe de obstar aos
progressos da verdadeira ciência bíblica, antes os fomenta, pondo-os a bom
recato contra todo o erro. Na verdade, fica aberto a todo o intérprete largo
campo onde pôde exercer seguramente a sua atividade e com grande proveito para
a Igreja. Nos lugares da sagrada Escritura, cujo sentido ainda não está
determinado dum modo certo e seguro, pode proceder por forma que os seus
estudos sejam, por suave desígnio da providência divina, outros tantos
subsídios para que a Igreja pronuncie o seu juízo supremo; nos lugares, porém,
cujo sentido já está definido, pôde prestar ainda grandes serviços, tornando-o
quer de mais fácil inteligência para os rudes, quer mais brilhante para os
doutos, quer, finalmente, mais persuasivo para reduzir e levar de vencida os adversários.
Por tanto, é dever sagrado de todo o interprete católico ajustar-se a esta
norma: os lugares da sagrada Escritura, cujo sentido foi autenticamente
determinado quer pelos hagiógrafos divinamente inspirados, como sucede em
muitos lugares do novo Testamento, quer pela Igreja assistida do Espirito
Santo, quer por um juízo solene, quer pelo magistério ordinário e universal da
mesma Igreja, não são susceptíveis doutra interpretação; demonstrando, pelos
subsídios de que dispõe, que tal interpretação é a única que se compadece com
as leis duma sã hermenêutica. Quanto aos outros lugares, a norma suprema é
seguir a analogia da fé e a doutrina católica tal como é proposta pela Igreja,
pois que, sendo Deus o único autor dos Livros sagrados e da doutrina confiada
ao magistério da mesma Igreja, é impossível que seja deduzido das regras duma
legitima interpretação o sentido oposto àquela doutrina. Infere-se daqui que
deve rejeitar-se como inepta e falsa aquela interpretação que de qualquer modo
torne contraditórios entre si os autores inspirados ou colida com a doutrina da
Igreja.
18.
Brilhe pois no professor de hermenêutica sagrada não só uma solida ciência de
toda a teologia, senão também um profundo conhecimento dos comentários dos
Santos Padres e Doutores, e das obras dos intérpretes autorizados. Isto
recomenda S. Jeronimo e com grande encarecimento Santo Agostinho, que, com
justa queixa, exclama: — “Se qualquer disciplina, por mais humilde e fácil que
seja, demanda, para ser intendida, um preceptor ou mestre, haverá nada mais
temerário e soberbo que tentar conhecer os Livros divinos, rejeitando os seus intérpretes?’.
O mesmo sentiu e confirmou com o seu exemplo os demais Padres, que “na
investigação do sentido das Escrituras seguiam não o seu próprio juízo, mas os
escritos e autoridade de seus maiores, como estes receberam da sucessão
apostólica a regra da genuína interpretação”.
19. O
ensino dos Santos Padres que “depois dos Apóstolos propagaram a santa Igreja,
instruindo-a com o seu magistério, edificando-a com as suas virtudes,
acrescentando-a com a sua doutrina”, é de suma autoridade sempre que todos são
unanimes em explicar do mesmo modo um dado lugar bíblico relativo à fé ou a
moral, porque naquela unanimidade nitidamente resplandece o facto de que tal
ensino é, segundo a fé católica, de procedência apostólica. Deve ter-se ainda
em grande preço o ensino dos Padres sobre o mesmo lugar bíblico, quando falam
como doutores particulares, porque não só a sua remontada ciência da doutrina
revelada e opulenta erudição, de grande momento para a inteligência dos livros
sagrados, os torna altamente recomendáveis, senão também porque Deus auxiliou
com mais vivas luzes e graças aqueles varões insignes em ciência e santidade. Se,
pois, o intérprete quer ser digno deste nome siga com respeito os exemplos dos
Santos Padres e estude com inteligente critério as suas obras.
20. Nem
se diga que, procedendo assim, não pôde ir mais além, pois que, sendo
necessário, deve progredir nas suas investigações, contanto que preste rendido
obsequio aquele sábio preceito de Santo Agostinho, a saber: — “que nunca
devemos abandonar o sentido literal e obvio, salvo se uma razão grave ou a
necessidade nos obrigam a abandoná-lo”, preceito este que deve observar-se
tanto mais firmemente quanto é certo que, neste maré Magnum de opiniões e
desenfreada ambição de novidades, há perigo iminente de errar. Tenha também o intérprete
todo o cuidado em não desprezar o sentido alegórico e analógico que os mesmos
Padres deram, por translação, a alguns lugares bíblicos, mormente quando tal
sentido se deduz do literal e tem em seu abono a autoridade de muitos. Este
modo de interpretar recebeu-o a Igreja dos Apóstolos, e ela mesma o confirmou
com o seu exemplo, como no-lo atesta a liturgia. Nem os Padres usaram do
sentido alegórico para demonstrar os dogmas da fé, mas porque por experiência
sabiam que tal sentido era de muito fruto para fomentar a virtude e a piedade.
21. É de
menos conta, certamente, a autoridade dos demais intérpretes católicos;
todavia, como os estudos bíblicos têm progredido muito na Igreja, é justo que
se preste a devida honra aos comentários daqueles intérpretes, pois que grandes
subsídios prestam para vingar o genuíno sentido e muita luz derramam sobre os
lugares mais difíceis. O que de modo algum convém é que se desconheçam ou
desprezem as excelentes obras que os nossos nos legaram, se prefiram as dos
hereges e se procure neles, com perigo evidente da sã doutrina e não raro
detrimento da fé, a explicação dos lugares que o talento e os escritos dos
católicos já de há muito explicaram otimamente. Se é verdade que as obras dos
hereges usadas com prudência, podem algumas vezes auxiliar o intérprete
católico, é também verdade, como no-lo atestam numerosos documentos dos nossos
maiores, que, fora da Igreja, nunca podemos achar o sentido incorrupto das
sagradas Letras, nem tal sentido pode ser alcançado por aqueles que, privados
da verdadeira fé, conhecem apenas muito superficialmente as Escrituras.
22. O que
sobretudo é muito para desejar, necessário mesmo, é que o uso da sagrada
Escritura seja como que a alma de todas as ações da teologia e as informe; que
tal é a doutrina professada e praticada pelos Padres e teólogos preclaríssimos
de todos os tempos. Procuraram eles, com efeito, estabelecer e demonstrar com
argumentos tirados principalmente das sagradas Letras as verdades dogmáticas e
as que destas se deduzem; aos mesmos Livros divinos recorreram e às tradições
apostólicas para refutar as novas fabulas dos hereges e investigar a razão, o
sentido e o nexo dos dogmas católicos. E não estranhemos que assim seja, pois é
tão distinto o lugar que os Livros divinos ocupam entre as fontes da revelação
que, sem o seu estudo e uso assíduo, a teologia não pôde ser cultivada como
deve sê-lo, nem considerada com a dignidade que merece. Nada mais justo que os
alunos das academias e escolas sejam doutrinados na ciência dos dogmas e que,
mediante ordenada discussão, deduzam dos artigos de fé outras verdades, segundo
as normas duma filosofia solida e digna deste nome; todavia, o teólogo erudito
e grave nunca deve desprezar a demonstração dos dogmas, deduzida da autoridade
da Bíblia. “A teologia não recebe os seus princípios das outras ciências, mas
imediatamente da revelação divina. Por isso nada recebe das outras ciências
como se estas lhe fossem superiores, mas serve-se delias como de inferiores e
subalternas”. Este é o método do magistério da ciência sagrada, proposto e
encarecido pelo príncipe dos teólogos, S. Tomás de Aquino. Conhecendo a fundo a
Índole da teologia cristã, ensinou o aquinate como é que o teólogo pôde
defender os seus princípios, quando impugnados. “Nas controvérsias, se o
adversário admite alguns princípios revelados, então assim como argumentamos
contra os hereges com a autoridade da Escritura, assim também com um artigo de
fé podemos argumentar contra os que negam outro. Se porém o adversário nada
admite do que a revelação ensina, ainda que não podemos argumentar com a razão
para demonstrar artigos de fé, podemos, todavia, refutar com a razão os seus
argumentos, se alguns aduz contra a fé”.
Fonte: Portal Veritatis Splendor
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