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quarta-feira, 23 de junho de 2021

Providentissimus Deus (Parte 3/5)

Papa Leão XIII | Veritatis Splendor

PROVIDENTISSIMUS DEUSDO PAPA LEÃO XIII

SOBRE OS ESTUDOS BÍBLICOS

Veneráveis irmãos, saúde e benção apostólica

16. Com este método, o uso da sagrada Escritura será de grande eficácia nas demonstrações teológicas. Não esqueçamos nunca que, além das causas de dificuldade que ordinariamente ocorrem para a inteligência dos livros antigos, ha outras peculiares dos Livros sagrados. Escritos sob o influxo do Espírito Santo contêm mistérios altíssimos que transcendem a esfera da razão humana e muitas outras verdades intimamente ligadas com eles; umas vezes o sentido é mais lato e recôndito do que a letra e as leis hermenêuticas parecem indicar, outras vezes o sentido literal oculta outros sentidos de muito alcance já para ilustrar o dogma, já para persuadir os preceitos mor a es. Não é, pois, de admirar que os Livros sagrados apareçam envolvidos em certa obscuridade religiosa, de modo que ninguém ouse estudá-los sem luz que lhe alumie os passos. Assim o dispôs a providência divina, no sentir comum dos Santos Padres, para que os homens os estudassem com mais vontade e diligência e ficassem profundamente gravados em sua alma os conceitos havidos com esforço, e, sobretudo, intendessem que Deus confiou as Escrituras á sua Igreja, como a mestra e guia segura e intérprete fiel da sua palavra. Em verdade, onde os dons de Deus, aí é que deve aprender-se a verdade; onde a sucessão apostólica aí é que está o magistério inerrante das Escrituras, como no-lo diz Santo Irineu. Esta doutrina, que é a de todos os Padres, proclamou- a o Concilio do Vaticano, quando renovou o decreto tridentino acerca da interpretação da palavra de Deus escrita: — É crença do Concilio que em pontos de fé e costumes, atinentes a edificação da doutrina cristã, deve ter-se como verdadeiro o sentido da sagrada Escritura aquele que sempre professou e professa a Santa Madre Igreja, a quem pertence julgar do verdadeiro sentido e interpretação das Escrituras santas; e por isso a ninguém é licito interpretar a Escritura sagrada contra aquele sentido ou ainda contra o consenso unanime dos Padres.

17. Com tal doutrina, toda informada duma alta sabedoria, a Igreja, longe de obstar aos progressos da verdadeira ciência bíblica, antes os fomenta, pondo-os a bom recato contra todo o erro. Na verdade, fica aberto a todo o intérprete largo campo onde pôde exercer seguramente a sua atividade e com grande proveito para a Igreja. Nos lugares da sagrada Escritura, cujo sentido ainda não está determinado dum modo certo e seguro, pode proceder por forma que os seus estudos sejam, por suave desígnio da providência divina, outros tantos subsídios para que a Igreja pronuncie o seu juízo supremo; nos lugares, porém, cujo sentido já está definido, pôde prestar ainda grandes serviços, tornando-o quer de mais fácil inteligência para os rudes, quer mais brilhante para os doutos, quer, finalmente, mais persuasivo para reduzir e levar de vencida os adversários. Por tanto, é dever sagrado de todo o interprete católico ajustar-se a esta norma: os lugares da sagrada Escritura, cujo sentido foi autenticamente determinado quer pelos hagiógrafos divinamente inspirados, como sucede em muitos lugares do novo Testamento, quer pela Igreja assistida do Espirito Santo, quer por um juízo solene, quer pelo magistério ordinário e universal da mesma Igreja, não são susceptíveis doutra interpretação; demonstrando, pelos subsídios de que dispõe, que tal interpretação é a única que se compadece com as leis duma sã hermenêutica. Quanto aos outros lugares, a norma suprema é seguir a analogia da fé e a doutrina católica tal como é proposta pela Igreja, pois que, sendo Deus o único autor dos Livros sagrados e da doutrina confiada ao magistério da mesma Igreja, é impossível que seja deduzido das regras duma legitima interpretação o sentido oposto àquela doutrina. Infere-se daqui que deve rejeitar-se como inepta e falsa aquela interpretação que de qualquer modo torne contraditórios entre si os autores inspirados ou colida com a doutrina da Igreja.

18. Brilhe pois no professor de hermenêutica sagrada não só uma solida ciência de toda a teologia, senão também um profundo conhecimento dos comentários dos Santos Padres e Doutores, e das obras dos intérpretes autorizados. Isto recomenda S. Jeronimo e com grande encarecimento Santo Agostinho, que, com justa queixa, exclama: — “Se qualquer disciplina, por mais humilde e fácil que seja, demanda, para ser intendida, um preceptor ou mestre, haverá nada mais temerário e soberbo que tentar conhecer os Livros divinos, rejeitando os seus intérpretes?’. O mesmo sentiu e confirmou com o seu exemplo os demais Padres, que “na investigação do sentido das Escrituras seguiam não o seu próprio juízo, mas os escritos e autoridade de seus maiores, como estes receberam da sucessão apostólica a regra da genuína interpretação”.

19. O ensino dos Santos Padres que “depois dos Apóstolos propagaram a santa Igreja, instruindo-a com o seu magistério, edificando-a com as suas virtudes, acrescentando-a com a sua doutrina”, é de suma autoridade sempre que todos são unanimes em explicar do mesmo modo um dado lugar bíblico relativo à fé ou a moral, porque naquela unanimidade nitidamente resplandece o facto de que tal ensino é, segundo a fé católica, de procedência apostólica. Deve ter-se ainda em grande preço o ensino dos Padres sobre o mesmo lugar bíblico, quando falam como doutores particulares, porque não só a sua remontada ciência da doutrina revelada e opulenta erudição, de grande momento para a inteligência dos livros sagrados, os torna altamente recomendáveis, senão também porque Deus auxiliou com mais vivas luzes e graças aqueles varões insignes em ciência e santidade. Se, pois, o intérprete quer ser digno deste nome siga com respeito os exemplos dos Santos Padres e estude com inteligente critério as suas obras.

20. Nem se diga que, procedendo assim, não pôde ir mais além, pois que, sendo necessário, deve progredir nas suas investigações, contanto que preste rendido obsequio aquele sábio preceito de Santo Agostinho, a saber: — “que nunca devemos abandonar o sentido literal e obvio, salvo se uma razão grave ou a necessidade nos obrigam a abandoná-lo”, preceito este que deve observar-se tanto mais firmemente quanto é certo que, neste maré Magnum de opiniões e desenfreada ambição de novidades, há perigo iminente de errar. Tenha também o intérprete todo o cuidado em não desprezar o sentido alegórico e analógico que os mesmos Padres deram, por translação, a alguns lugares bíblicos, mormente quando tal sentido se deduz do literal e tem em seu abono a autoridade de muitos. Este modo de interpretar recebeu-o a Igreja dos Apóstolos, e ela mesma o confirmou com o seu exemplo, como no-lo atesta a liturgia. Nem os Padres usaram do sentido alegórico para demonstrar os dogmas da fé, mas porque por experiência sabiam que tal sentido era de muito fruto para fomentar a virtude e a piedade.

21. É de menos conta, certamente, a autoridade dos demais intérpretes católicos; todavia, como os estudos bíblicos têm progredido muito na Igreja, é justo que se preste a devida honra aos comentários daqueles intérpretes, pois que grandes subsídios prestam para vingar o genuíno sentido e muita luz derramam sobre os lugares mais difíceis. O que de modo algum convém é que se desconheçam ou desprezem as excelentes obras que os nossos nos legaram, se prefiram as dos hereges e se procure neles, com perigo evidente da sã doutrina e não raro detrimento da fé, a explicação dos lugares que o talento e os escritos dos católicos já de há muito explicaram otimamente. Se é verdade que as obras dos hereges usadas com prudência, podem algumas vezes auxiliar o intérprete católico, é também verdade, como no-lo atestam numerosos documentos dos nossos maiores, que, fora da Igreja, nunca podemos achar o sentido incorrupto das sagradas Letras, nem tal sentido pode ser alcançado por aqueles que, privados da verdadeira fé, conhecem apenas muito superficialmente as Escrituras.

22. O que sobretudo é muito para desejar, necessário mesmo, é que o uso da sagrada Escritura seja como que a alma de todas as ações da teologia e as informe; que tal é a doutrina professada e praticada pelos Padres e teólogos preclaríssimos de todos os tempos. Procuraram eles, com efeito, estabelecer e demonstrar com argumentos tirados principalmente das sagradas Letras as verdades dogmáticas e as que destas se deduzem; aos mesmos Livros divinos recorreram e às tradições apostólicas para refutar as novas fabulas dos hereges e investigar a razão, o sentido e o nexo dos dogmas católicos. E não estranhemos que assim seja, pois é tão distinto o lugar que os Livros divinos ocupam entre as fontes da revelação que, sem o seu estudo e uso assíduo, a teologia não pôde ser cultivada como deve sê-lo, nem considerada com a dignidade que merece. Nada mais justo que os alunos das academias e escolas sejam doutrinados na ciência dos dogmas e que, mediante ordenada discussão, deduzam dos artigos de fé outras verdades, segundo as normas duma filosofia solida e digna deste nome; todavia, o teólogo erudito e grave nunca deve desprezar a demonstração dos dogmas, deduzida da autoridade da Bíblia. “A teologia não recebe os seus princípios das outras ciências, mas imediatamente da revelação divina. Por isso nada recebe das outras ciências como se estas lhe fossem superiores, mas serve-se delias como de inferiores e subalternas”. Este é o método do magistério da ciência sagrada, proposto e encarecido pelo príncipe dos teólogos, S. Tomás de Aquino. Conhecendo a fundo a Índole da teologia cristã, ensinou o aquinate como é que o teólogo pôde defender os seus princípios, quando impugnados. “Nas controvérsias, se o adversário admite alguns princípios revelados, então assim como argumentamos contra os hereges com a autoridade da Escritura, assim também com um artigo de fé podemos argumentar contra os que negam outro. Se porém o adversário nada admite do que a revelação ensina, ainda que não podemos argumentar com a razão para demonstrar artigos de fé, podemos, todavia, refutar com a razão os seus argumentos, se alguns aduz contra a fé”.

Fonte: Portal Veritatis Splendor

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF