Papa Leão XIII | Veritatis Splendor |
PROVIDENTISSIMUS DEUS, DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE OS
ESTUDOS BÍBLICOS
Veneráveis
irmãos, saúde e benção apostólica
23.
Assim, pois, cuide-se com esmero que os alunos se preparem para a luta
convenientemente apercebidos e doutrinados nos estudos bíblicos, para que não
sejam frustradas as nossas esperanças, e, o que seria pior, para que, incautos,
não fiquem expostos ao perigo de erro, iludidos pelas falácias e falsa erudição
dos racionalistas. E adestrar-se-ão denodados apologistas se, tomando o caminho
que nós lhes indicamos, cultivarem religiosamente e conhecerem a fundo a
filosofia e a teologia, segundo a mente de S. Tomás. Deste modo caminharão com
passo seguro já nos estudos bíblicos, já na teologia positiva.
24.
Expor, demonstrar e ilustrar a doutrina católica, por meio duma legitima e
esmerada interpretação dos Livros sagrados é, certamente, empresa de remontado
alcance; há, todavia, outra de tão grave momento como árdua, e é: demonstrar
dum modo invencível a autoridade absoluta das Escrituras. Tal demonstração só a
poderá fazer o magistério autêntico da Igreja, a qual por si mesma, pela sua
admirável propagação, exímia santidade e inexaurível fecundidade em todos os
bens, pela sua unidade católica e invencível estabilidade é um grande e
perpetuo motivo de credibilidade e um testemunho irrefragável da sua missão
divina. E, porque o magistério da Igreja, divino e infalível, se baseia ainda
na autoridade da sagrada Escritura, o primeiro cuidado será demonstrar direta e
indiretamente que aquele livro é digno de fé, ao menos humana. Com as
Escrituras, como testemunhas fidedignas da antiguidade, demonstra-se
peremptoriamente a divindade e a missão de nosso Senhor Jesus Cristo, a
instituição da hierarquia da Igreja, o primado conferido a Pedro e aos seus
sucessores. É por isso de suma conveniência que muitos soldados da milícia
sagrada combatam pela fé e repilam as investidas dos inimigos da Bíblia,
revestidos sobretudo da armadura de Deus, tão recomendada pelo apostolo e
apercebidos contra os embates e armas novas dos inimigos. Eloquentemente S.
João Chrysostomo, falando dos deveres sacerdotais: — “Grande zelo devemos empregar
a fim de que a palavra de Cristo habite abundantemente em nós; não nos
contentemos com estarmos prestes para um só género de luta; a guerra toma
diversas fases e são muitos OS inimigos; nem todos usam armas da mesma traça;
não é uma só a estratégia com que intentam combater-nos. Torna-se por isso
necessário que, se alguém quiser bater-se com todos, conheça as armas e as indústrias
de todos; que seja sagitário e fundibulário, tribuno e comandante de manipulo,
general e soldado, infante e cavaleiro, marinheiro e adestrado no ataque ás
praças fortificadas. Se não conhece todos os artifícios bíblicos, sabe o diabo
ordenar aos seus lobos que, pela parte desguarnecida, arrebatam as ovelhas”.
Quase as falácias e variados artifícios dos adversários nos seus ataques contra
a Bíblia, já os indicamos resta-nos dizer dos meios de defesa.
25. O
primeiro é o estudo das antigas línguas orientais e da arte crítica. E como
estas disciplinas são atualmente de grande importância e muito encarecidas, o
professor eclesiástico que as cultive com maior ou menor desenvolvimento,
consoante as circunstâncias do lugar e das pessoas, com mais aproveitamento
poderá exercer o seu honroso magistério, porque deve ser tudo para todos e
prestes sempre para responder ao que lhe peça a razão da esperança que
manifesta. Torna-se, pois, necessário para os mestres da sagrada Escritura, e é
conveniente para os teólogos, o conhecimento das línguas em que os livros
canónicos foram primitivamente escritos pelos hagiógrafos; e seria muito para
desejar que também as cultivassem os alunos teólogos, nomeadamente os que
aspiram aos graus académicos. Igualmente é necessário que em todas as
academias, imitando o louvável exemplo dalgumas se estabeleçam cátedras das
demais línguas antigas, principalmente semíticas, e da sua literatura, como são
de grande conta para os que se destinam ao magistério das sagradas Letras.
26. E,
porque estes hão de exercer o magistério, é muito conveniente que tenham um
conhecimento profundo e expedito da verdadeira arte crítica, visto que se
inventou, ainda mal e com dano da religião, um novo artificio, decorado com o título
de crítica superior, que, em vão, pretende demonstrar, exclusivamente com
argumentos intrínsecos, como dizem, a origem, integridade e autoridade de
qualquer livro. Mas a verdade é que, tratando-se de questões históricas, para
demonstrar a origem e integridade dum livro qualquer, maior valor têm os
documentos históricos do que as razões intrínsecas, e são precisamente aqueles
que mais convêm investigar e discutir; que as razões intrínsecas não têm o
mesmo, valor e só se podem aduzir para confirmar as extrínsecas. Seguir-se-ão
grandes inconvenientes procedendo doutro modo. Assim crescerá a audácia dos
inimigos da religião em impugnar e destruir a autenticidade dos Livros sagrados
; a chamada critica superior abrirá larga porta para que cada um siga a
interpretação mais ao sabor dos seus desejos e prejuízos; não brilhará nas
Escrituras a luz que se busca; não se deduzirá delias doutrina alguma certa;
ficará aberto largo caminho para aquela conhecida característica do erro que é
a variabilidade e a contradição no sentir, como já o demonstram os príncipes da
nova critica superior; e porque muitos já estão eivados das ideias duma
filosofia vã e racionalista, não se pejam de expungir dos Livros sagrados os
milagres, as profecias, numa palavra, tudo que pertence à ordem sobrenatural.
27. O intérprete
tem depois de haver-se com os que, abusando das ciências físicas e examinando
minuciosamente os Livros sagrados, acusam os seus autores de ignorantes
daquelas ciências e cobrem de vitupérios os seus escritos. E, como estas
acusações versam sobre cousas sensíveis, tornam-se sumamente perigosas, quando
conhecidas dos indoutos e muito principalmente da mocidade estudiosa, que, se
deixa de prestar fé a um só artigo da revelação divina, facilmente a rejeitará
toda. É por demais sabido que as ciências da natureza, se convenientemente
estudadas são de subida importância para contemplar a glória do criador supremo
refletida nas cousas criadas preversamente infiltradas em inteligências ainda
tenras destroem os princípios da sã filosofia e depravam os costumes. Será por
isso de muita conta para o professor da sagrada Escritura o conhecimento das
ciências naturais, para que assim mais facilmente descubra e destrua os laços
armados contra os Livros divinos.
28. Entre
a teologia e as ciências experimentais não há, certamente, desacordo algum
real, quando àquela e estas não ultrapassam a sua espera, precavendo-se ambas
com esta admoestação dê Santo Agostinho:— “Nada se deve afirmar temerariamente,
nem dar como conhecido o que é desconhecido”. Havendo discordância entre aquelas
ciências e a teologia, de como se há de haver o teólogo di-lo está resumida
norma de Santo Agostinho: — “Não colidem com o magistério da Escritura os
factos científicos devidamente comprovados; o que as ciências da natureza opõem
como contrário aquele magistério deve ser tido na conta de meras hipóteses ou
falsas afirmações. Para devidamente ponderar a justeza desta norma devemos ter
em vista que os hagiógrafos, ou antes “o Espírito de Deus que os inspirou, não
intentara instruir os homens acerca da constituição intima do universo, como
isto de nenhum proveito era para a salvação”. É por isso que os escritores
sagrados, pondo de parte a observação da natureza, vão direitos ao seu fim; e
se, por vezes, descem a falar das cousas criadas, empregam o sentido
metafórico, servindo-se da linguagem vulgarmente usada naqueles tempos. Ainda
hoje tal modo de dizer é frequente mesmo entre os sábios. Na linguagem vulgar,
as cousas designam-se espontânea e propriamente como se apresentam aos
sentidos. Assim procederam os hagiógrafos: — “descrevem as cousas, diz o Doutor
angélico, tais como sensivelmente apareciam” ou então, o que o próprio Deus
lhes significava, acomodando-os á linguagem humana e á capacidade dos mesmos
escritores sagrados.
29. Da
necessidade de defender valorosamente a Escritura santa não se conclui que
devamos defender com o mesmo zelo todas as interpretações que cada um dos
Padres e comentadores deram aos lugares bíblicos. Conformando-se, na exposição
dos textos que se referem a fenômenos físicos, com as ideias correntes no seu
tempo, talvez caíssem em erro, perfilhando ideias que hoje não se admitem. Por
isso, é de necessidade examinar atentamente quais as cousas que ensinam como
pertencentes a fé ou relacionadas com ela e quais as que unanimemente professam,
porque nas que não são de fé necessária, diz S. Tomás, foi lícito aos Santos e
é lícito a nós pensar de modo diverso. E noutro lugar acrescenta com grande
prudência — “Parece-me ser mais seguro não afirmar como dogmas de fé o que os
filósofos comumente sentem e que não colide com a fé, nem também negá-lo como
oposto á fé, para não darmos azo a que os sábios deste mundo rejeitem a
doutrina revelada”. No entanto, se bem que o intérprete deva demonstrar que nas
Escrituras, intendidas como devem sô-lo, nada há que se oponha ao que os
naturalistas afirmam como certo, esteja, contudo, de sobreaviso, pois pôde
suceder que seja amanhã havido como duvidoso e até rejeitado como falso o que
hoje é recebido como certo. Além disso, se os escritores de ciências experimentais,
ultrapassando os limites da sua esfera, invadirem o campo da filosofia,
semeando nele ideias erro nas, deixe o teólogo exegeta aos filósofos o encargo
de as refutar.
Fonte: Portal Veritatis Splendor
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