Papa Leão XIII | Veritatis Splendor |
PROVIDENTISSIMUS DEUS, DO PAPA LEÃO XIII
SOBRE OS
ESTUDOS BÍBLICOS
Veneráveis
irmãos, saúde e benção apostólica
30.
Passemos agora à aplicação destas considerações às ciências afins, e
nomeadamente á história. É para lamentar que muitos se exponham a grandes
fadigas no estudo dos monumentos arqueológicos, dos costumes e instituições dos
povos, e doutros assumptos análogos, mas não raro com o propósito de descobrir
erros nos Livros sagrados e enfraquecer a sua autoridade divina. Outros há que
se dedicam aos mesmos estudos, mas com animo exageradamente hostil e critério
apaixonado. Confiam nos livros humanos e nos documentos da antiguidade, como se
neles não poderá haver nem ténue sombra de erro, e negam crédito aos Livros da
sagrada Escritura á mais leve aparência do erro e sem o mais superficial exame.
Pode realmente admitir-se que nos códices escapassem algumas incorreções,
devidas á incúria dos copistas, mas isto deve ser maduramente considerado e só
admitido nos lugares onde o erro é evidente. Pode ainda admitir-se que seja
duvidosa a genuína lição dalgum lugar e para esclarecimento da qual são de
grande monta as regras duma boa hermenêutica, mas nunca será lícito ou
restringir a inspiração unicamente a algumas partes da sagrada escritura, ou
conceder que o autor sagrado errou. Também não pôde tolerar-se o expediente
daqueles que julgam desembaraçar-se de dificuldades, não hesitando em conceder
que só são divinamente inspirados os pontos de fé e de moral, porque
erradamente pensam que, quando se trata de apurar a verdade dum conceito, não
deve atender-se tanto ao que Deus disse como a razão por que o disse. E, na
verdade, foram escritos sob a inspiração do Espírito Santo todos os livros que
a Igreja recebeu como sagrados e canônicos, com todas as suas partes; ora é
impossível que na inspiração divina haja erro, visto como a mesma inspiração só
por si não somente exclui todo o erro, senão também que o exclui tão
necessariamente quanto necessariamente repugna que Deus, Verdade suma, seja
autor de erro algum.
31. Esta
é a antiga e constante crença da Igreja, solenemente definida nos Concílios de
Florença e Trento, confirmada e mais desenvolvidamente declarada no Concilio
Vaticano, neste decreto peremptório: — Devem ser recebidos como sagrados e
canônicos todos os livros do Velho e Novo Testamento, com todas as suas partes,
consoante vêm referidos no decreto do mesmo Concilio (tridentino) e como se
contém na antiga edição latina da Vulgata. A Igreja tem estes livros como
sagrados e canônicos, não porque fossem compostos só por indústria humana e
depois aprovados pela sua autoridade, nem ainda somente porque contém doutrina
revelada e verdadeira, mas porque, escritos sob o fluxo do Espírito Santo, têm
a Deus como autor. Nem se diga que o Espírito Santo se serviu de homens como de
instrumentos para escrever, e que, por isso, os erros que porventura haja nas
Escrituras se devem atribuir não a Deus, autor primário dos Livros santos, mas
aos hagiógrafos. De feito, assim como o Espírito Santo excitou e moveu os
autores sagrados a escrever, assim também lhes assistiu de modo que só
escreveram, com pura intenção, fielmente e com verdade infalível, tudo o que
lhes ordenou que escrevessem e só isso, aliás não seria Deus o autor de toda a
Escritura sagrada. Este foi o sentir constante dos Santos Padres. “Pois que os
hagiógrafos, diz Santo Agostinho, só escreveram o que o Espírito Santo lhes
inspirou, nunca se pôde dizer que não foi Ele quem escreveu: os escritores
sagrados, como membros, só escreveram o que a cabeça lhes ditava”. E S.
Gregório Magno: “Ineptamente pergunta quem escreveu as Escrituras aquele que
firmemente crê que é o Espírito Santo o seu autor. Escreveu esse que ditou o
que se devia escrever; escreveu essa que inspirou a obra”. Desdiz-se daqui que
pervertem a noção católica de inspiração divina, ou convertem Deus em autor de
erro, os que julgam ser possível haver erros nos lugares autênticos dos Livros
sagrados. E tão profundamente arraigada era a crença de todos os Padres e
Doutores de que as sagradas Letras, tais como saíram da pena dos hagiógrafos,
são absolutamente imunes de todo o erro, que procuram com igual engenho e
piedade conciliar entre si os poucos lugares e são precisamente os que a nova
crítica argue que parecem encontrados e contraditórios confessando unanimemente
que aqueles livros, em toda a sua integridade e em todas as suas partes, são
divinamente inspirados, e que, falando Deus pelos hagiógrafos, nada podia
inspirar que não fosse verdade. Sirvam de lição para todos, aquelas palavras
que o mesmo Santo Agostinho escreveu a S. Jeronimo — “Eu de mim confesso que da
tua caridade aprendi a prestar unicamente aos livros das Escrituras, que ora
denominamos canônicas, tal respeito e honra, que firmissimamente creio que
nenhum dos seus autores caiu, ao escrevê-los, na mais leve sombra de erro. E,
se eu achar naqueles livros algo que pareça encontrar a verdade, não hesitarei
em confessar ou que o códice não é fiel, ou que o intérprete não alcançou o
sentido do que estava escrito, ou que eu não logrei entendê-lo”.
32.
Pugnar vantajosamente com os recursos de todas as ciências em prol da santidade
das Escrituras empresa é muito superior ao que é justo esperar da indústria dos
teólogos e intérpretes. É por isso muito para desejar que tomem a peito tal
empresa os sábios católicos de reconhecida competência e autoridade. Nunca
faltou à Igreja, mercê de Deus, e oxalá que sempre aumente para acrescentamento
da fé, a glória de tais talentos. É sobre toda a ponderação conveniente que
sejam em maior número e mais esforçados do que os inimigos da Bíblia, os
defensores da verdade, porque nada há mais eficaz para persuadir o vulgo a
render-lhe homenagem do que vê-la liberrimamente professada por homens
eminentes em qualquer ciência. Além disso, ficará quebrada a audácia dos nossos
detratores, e certamente não ousarão afirmar com tanta petulância que a ciência
é incompatível com a fé, ao verem que homens eminentes em ciência prestam
rendida homenagem à palavra de Deus. E, pois, que tantos serviços podem prestar
a religião aqueles a quem a suma benignidade de Deus concedeu a graça da fé
católica e o dom apreciável do talento, nesta febre de estudos por qualquer
modo relacionados com as Escrituras, escolham aquele que mais se compadeça com
as suas aptidões, e, versados nele, saiam a campo e repilam, que lhes vae nisso
grande gloria, os ataques da ciência indigna de tal nome. Vem de molde para
aqui e é-nos grato aprovar a benemérita deliberação dalguns católicos de
criarem associações que subsidiem largamente e prestem todos os recursos a
homens distintos em ciência, a fim de que cultivem aqueles estudos e promovam
os seus progressos. Ótimo, em verdade, e muito oportuno nas circunstâncias
atuais, este emprego de dinheiro. Quanto menor for o subsídio que os católicos
podem esperar dos poderes públicos para o progresso dos seus estudos, tanto
maior deve ser a liberalidade dos particulares; e saibam aqueles a quem Deus
concedeu riquezas que bom uso fazem delias convertendo-as em defesa do tesouro
da verdade revelada.
33. Para
que todos estes trabalhos redundem em grande proveito dos estudos bíblicos,
instem os eruditos nos princípios que deixamos estabelecidos, e creiam
firmemente que Deus, criador e governador supremo de todas as cousas, é também
o autor das Escrituras, e que, portanto, nada há na economia do universo, nem
nos monumentos históricos que possa contradizê-las. Se, porém, parecer dar-se
tal conflito, haja todo o cuidado em compô-lo, já recorrendo ao juízo prudente
dos teólogos e intérpretes para apurar o que há de verdadeiro ou verosímil no
lugar que se discute, já ponderando com novo cuidado as dificuldades que se
aduzem. E não se deve levantar mão deste trabalho sem que desapareça a mínima
sombra de conflito, porque, sendo impossível que a verdade se oponha á verdade,
ou a interpretação das palavras do texto foi errónea ou a discussão dele mal
dirigida. Se nenhuma destas hipóteses puder verificar-se, suspenda-se o juízo
até que a verdade apareça. Muitas e graves acusações se levantaram, durante
largo espaço de tempo, em nome das ciências, contra as Escrituras; e, todavia,
caíram como vãs em completo olvido; vários foram os sentidos dados a certos
lugares bíblicos salvo aos que propriamente pertencem à fé e a moral; e,
contudo, foram ao depois interpretados com mais justeza e propriedade. É que o
tempo mata o erro, mas «a verdade vive sempre e cada vez com mais pujança”.
Ora, assim como nunca houve ninguém tão soberbo que se arrogasse o pleno
conhecimento de toda a Escritura, quando o próprio Santo Agostinho confessava
que era maior a sua ignorância do que a sua ciência da Bíblia, assim também, se
algum texto encontrarmos de mui difícil explicação sigamos a norma tão moderada
como prudente do mesmo Doutor : — “Melhor é sentir o espirito angustiado ao
contemplar sinais cuja significação não conhece, mas que são úteis, do que,
interpretando-os inutilmente, libertar-se do jugo da submissão para se
precipitar nos laços do erro”. Se os que professam os estudos subsidiários da
Bíblia seguirem discreta e fielmente estes Nossos conselhos e mandatos; se,
escrevendo e ensinando, aproveitarem o fruto dos seus estudos na redução dos
inimigos da verdade e em precaver a juventude contra os danos da fé, então,
enfim, poderão exultar de jubilo por dignamente servirem as sagradas Letras e
prestarem a fé católica um serviço tal como a Igreja tem direito a esperar da
piedade e ciência de seus filhos.
34. Estes
são, veneráveis irmãos, os mandatos e exortações que, obedecendo á voz de Deus,
julgamos oportuno dirigir-vos acerca dos estudos bíblicos. Está da vossa parte
agora procurar que sejam fielmente guardados e observados com o acatamento que
é de justiça e de modo que brilhe cada vez mais a devida gratidão para com Deus
por ter comunicado ao gênero humano os tesouros da sua sabedoria; e que a
suspirada vantagem daqueles estudos redunde sobretudo em proveito da instrução
dos jovens aspirantes ao sacerdócio, pois são eles objeto de grande solicitude
Nossa e a esperança da Igreja. Com a vossa autoridade e exortações trabalhai
com animo varonil, para que nos seminários e academias sujeitas á vossa
obediência, os estudos bíblicos tenham o lugar de honra que lhe pertence e
progridam. Praza aos céus que floresçam, sob a direção da Igreja, segundo os
salutares documentos e exemplos dos Santos Padres e louvável costume dos nossos
maiores: que no decurso dos tempos alcancem tais incrementos que redundem em
defesa e gloria da verdade católica, divinamente revelada para salvação perene
dos povos.
35.
Exortamos, finalmente, com paternal caridade, todos os alunos e ministros da
Igreja que estudem as sagradas Letras sempre com sumo afeto, reverencia e
piedade. Nunca se poderá lograr salutarmente, como é de necessidade, a
inteligência das Escrituras sem renunciar a soberba da ciência terrena e
perseverar no santo exercício da sabedoria que vem do alto. Iniciada nesta
silencia, ilustrada e fortalecida por ela, a inteligência terá admirável luz
para conhecer e evitar o que há de mau na silencia humana e converter os seus
sólidos frutos noutros tantos meios de salvação eterna. E a alma inflamada em
zelo aspirará com mais veemência aos bens inefáveis da virtude e do amor
divino: — Bem-aventurados os que investigam os testemunhos de Deus, e com todo
o coração o buscam. Animado com a esperança do auxílio divino e confiado na
vossa solicitude pastoral, paternalmente concedemos no Senhor a benção
Apostólica, penhor de dons celestes e testemunha da Nossa particular
benevolência, a vós, a todo o vosso clero e fiéis.
Dada em
Roma, em S. Pedro, aos 18 de novembro de 1893, ano decimo sexto do Nosso
Pontificado.
Papa Leão
XIII
Fonte: Portal Veritatis Splendor
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