Translate

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

A CATEQUESE NUMA CULTURA POLIÉDRICA

Crédito: Sou Catequista

Dom Vicente Ferreira
Bispo Auxiliar de Belo Horizonte (MG)
DESComplica

A CATEQUESE NUMA CULTURA POLIÉDRICA

Papa Francisco, na Fratelli Tutti, escolheu a figura do poliedro para nomear a nossa cultura global. Imagem formada por faces diferentes que se complementam. “O poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem, integrando-se, enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões e desconfianças” (FT, n. 215). Vivemos numa globalização plural, com suas belezas e contradições. Se a pandemia da covid-19 mostrou muitos desses valores, como a solidariedade, ela também trouxe à tona chagas socioambientais. Desse modo, afirma o Diretório para a Catequese: “a face multiforme da realidade, marcada por elementos ambivalentes de pluralismo religioso e cultural é, em última análise, visível em cada pessoa, cuja fisionomia interior é hoje particularmente dinâmica, complexa e poliédrica” (DC, n. 325).

E qual a missão da Igreja diante dessa polissemia cultural? Anunciar o Reino de Deus, seguindo Jesus Cristo. Portanto, tudo o que se passa com a sociedade e com o meio ambiente diz respeito à nossa missão cristã. Assim “a catequese participa do desafio eclesial de se opor a processos centrados na injustiça, na exclusão dos pobres, na primazia do dinheiro, de modo a, antes, tornar-se sinal profético de promoção de vida plena para todos” (DC, n. 319). A iniciação cristã deve contribuir para a superação de um desafio muito perigoso que é a esquizofrenia entre fé e vida, entre culto e compromisso socioambiental. O problema não está na diversidade, mas na indiferença ou da conivência cristã com as violações à vida humana e ao meio ambiente.

Essa polissemia de sentidos torna-se, cada vez mais explicitada, no contexto de nossas cidades. São realidades sociais e ambientais diversas que se cruzam em cenários complexos, com belezas e problemas. Assim, todo cristão é chamado “a reconhecer a cidade a partir de um olhar contemplativo, isto é, um olhar de fé que descubra Deus, que habita nas suas casas, nas suas ruas, nas suas praças” (DC, n. 71). Sendo, sobretudo, uma voz profética diante de suas contradições, em favor das realidades mais vulneráveis. Para isso, a Paróquia, sendo uma rede de comunidades, deve auxiliar as pessoas, através da catequese, a viver uma proximidade fraterna que as conduzirão na busca de um sentido para a vida, através da fé cristã. Apesar da predominância urbana, o contexto rural é ainda muito presente. Ambiente propício para trabalhar a simplicidade de vida, os ciclos da natureza e o cuidado para com toda a criação. “Essa é a mensagem de fé que a catequese ajuda a descobrir, mostrando sua realização no ritmo cíclico do ano litúrgico e nos elementos naturais assumidos pela liturgia” (DC, n. 330).

Em muitos casos, a cultura global agride as culturas locais e tradicionais em nome dos princípios capitalistas neoliberais. A Evangelização, atenta aos valores de cada povo, deve promover a dignidade das tradições, de cada comunidade. É necessário reconhecer as sementes do Verbo, os sinais do Reino, lembrando que nenhuma configuração cultural esgota a plenitude do Evangelho de Jesus. Em muitos locais, há presença das comunidades quilombolas e indígenas, por exemplo. “Ser catequista para os povos indígenas requer um humilde esvaziamento de atitudes de orgulho e desprezo para com aqueles que pertencem a uma cultura diferente” (DC, n. 334). A mesma postura deve acontecer em relação à piedade popular, para que haja uma verdadeira evangelização. As peregrinações aos santuários revelam como a devoção de nosso povo deve ser acompanhada com toda atenção.

Em relação às diferentes denominações cristãs e outras religiões, a catequese é chamada a reforçar uma atitude dialogal e fraterna. Fratelli Tutti reconhece, explicitamente, que um dos pontos fundamentais para a construção da paz mundial é “a liberdade religiosa para os crentes de todas as religiões” (FT, n. 279). De modo particular, deve-se combater a violência que se expressa em inúmeros preconceitos. “Como crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspetos da nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro” (FT, n. 282).

A mútua colaboração entre fé e ciência é elemento importante no aprofundamento das questões mais complexas do ser humano e da natureza. O distanciamento ou a disputa entre ambas pode causar danos para o progresso da família humana e para o meio ambiente. Sabemos da relevância da tecnologia em nossos tempos. Seria impensável desconsiderar os ganhos, as evoluções, que a ciência e a técnica trouxeram para a humanidade. No entanto, reconhecemos também que muitos desses ganhos está a serviço de uma minoria. E não a serviço de tantas classes de pessoas vulneráveis e do meio ambiente. E que muitas feridas socioambientais são causadas, justamente, pelo uso impróprio da técnica e da ciência como instrumentos que favorecem quem pauta a vida pelo dinheiro.

A cultura digital deve ser tratada também com particular atenção pela catequese, devido, sobretudo, às transformações antropológicas que ela tem causado. Já convivemos com os chamados “nativos digitais”, enquanto muitos ainda não têm acesso ao mundo virtual. Ela está, aceleradamente, trazendo mudanças inimagináveis. Seus ganhos são indiscutíveis. Há maior interação entre os povos, mais acessos às informações etc. Mas, o perigo é grande quando essas plataformas são manipuladas por pessoas e grupos com interesses que ferem a dignidade humana e o planeta. Fratelli Tutti fala da ilusão da comunicação ao mencionar problemas como a agressividade despudorada e informações sem sabedoria (Cfr. FT, n. 42-50).

Este aspecto digital de nossa Era pesa sobretudo sobre o futuro das novas gerações. Elas se constroem tendo como referências conteúdos, relações, interações virtuais. Nesse ponto, a catequese deve exercer um papel fundamental no acompanhamento das crianças, dos adolescentes e dos jovens em sua inserção na comunidade dos discípulos e missionários de Jesus. De modo que, “essa jornada exige passar da solidão, nutrida pelos likes, para a realização de projetos pessoais e sociais a serem realizados em comunidade” (DC, n. 370).

Outro ponto complexo e que exige um saudável enfretamento por parte da catequese são os temas que dizem respeito a bioética. O diálogo da fé com a ciência deve ser contínuo de modo especial quando se trata de biotecnologia. A grande e rica tradição do magistério da Igreja, atenta a realidade, deve traduzir-se em compromisso ético com a vida humana e com toda a criação. Para o anúncio da fé, importa experimentar que “Deus é a referência inicial e final da vida, desde sua concepção até a morte natural; a pessoa é sempre uma unidade de espírito e corpo; a ciência está a serviço da pessoa; a vida deve ser acolhida em todas as condições, porque é redimida pelo mistério pascal de Jesus Cristo” (DC, n. 378).

Outro aspecto que mostra nossa cultura ainda mais poliédrica é a questão ecológica. Atravessamos uma aguda crise socioambiental. E isso exige de nós uma conversão ecológica que significa superar a visão que temos de que o ser humano está separado das outras criaturas. Tudo está interligado na Casa Comum. E essa mentalidade não pode estar nos processos catequéticos apenas como um ponto secundário. Por isso, a catequese ajudará “os fiéis a se conscientizarem de que o compromisso com a questão ecológica é parte integrante da vida cristã” (DC, n. 384). É impossível escutar, hoje, o grito dos pobres sem ouvir os gemidos da criação (Cfr. Rm 8, 22).

Por fim, uma boa catequese leva o fiel a um encontro maduro com o mistério de Jesus Cristo que o torna uma pessoa nova, inserida numa comunidade amorosa. Alguém que, em comunhão com o mestre, vive sua vocação cristã de forma transformadora da realidade. É falho um caminho catequético que não conduz as pessoas a um engajamento socioambiental, como nos pede a Doutrina Social da Igreja. Quanto mais maduro um cristão, mais comprometido com o Reino de Deus, que é Reino dos irmãos e irmãs, que cuidam da Casa Comum.

Fonte: CNBB

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF