Rembrandt, A ceia de Emaús, 1648, Museu do Louvre, Paris |
O grande artista holandês pintou uma série de “retratos” do Senhor, fazendo posar como modelo um judeu de Amsterdã. Para chegar o mais próximo possível da verdade. Pela primeira vez essas obras, geralmente pouco consideradas pela crítica, foram reunidas numa bela mostra, que, depois de passar por Paris, chegou aos Estados Unidos
Em julho de 1656, Rembrandt, à beira da bancarrota, decidiu leiloar todos os bens conservados na grande casa de Jodenbreestraat. Como parte do procedimento, em 24 e 25 daquele mês foi realizado o inventário pela Desolate Boedelskamer de Amsterdã. Um inventário extremamente longo, no qual a certa altura são listadas três tábuas com pinturas do rosto de Cristo. Uma em particular é definida nestes termos: “Cristus tronie nae’t leven”. Literalmente: “Cabeça de Cristo a partir do real”. O que indicava essa especificação “a partir do real”? O primeiro estudioso que publicou esse inventário, em 1834, pensou que se tratasse de um deslize do magistrado holandês, e não achou nada melhor para fazer senão fingir que não era nada e suprimir essa nota. Dois anos depois, um observador atento notou essa censura e, para resolver o enigma, propôs uma interpretação decididamente forçada: “em tamanho natural”. Mas, em holandês, esse “nae’t leven”, contração de “naar het leven”, não deixa espaço para ambiguidades: significa “tomado a partir do real”, ou seja, de modelo vivo. Por que o anônimo inventarista teria sentido a necessidade de especificar isso, quase como se se tratasse de um traço identificador dessa série de pequenas cabeças de Cristo? Para responder a essa pergunta, o Louvre e os museus da Philadelphia e de Detroit uniram forças para organizar uma das mais extraordinárias mostras dos últimos anos. A mostra, que em Paris é intitulada Rembrandt e a figura de Cristo – e que nas etapas americanas da Filadélfia (até 30 de outubro) e de Detroit (de novembro a fevereiro de 2012) terá um título muito mais direto: Rembrandt e o rosto de Cristo –, vem acompanhada por um belíssimo catálogo, publicado por uma editora italiana (Officina Libraria).
O coração da mostra, que reuniu algumas obras-primas absolutas, como as variantes que Rembrandt pintou sobre o tema da Ceia de Emaús, é constituído pela sala em que as três cabeças citadas no inventário foram reunidas e outras quatro, todas em tábua, que a crítica com o tempo recuperou. A importância particular desses quadros para o pintor é demonstrada pelo fato de que dois deles, segundo o inventário, estavam pendurados em seu quarto de dormir: mas isso não bastou para convencer a crítica de sua autografia. Assim, o Rembrandt Research Project, uma instituição que é chamada a “certificar”, entre a imensa massa de obras atribuídas ao mestre holandês, as que são seguramente de sua mão, chegou a suprimir as sete tábuas do catálogo. Hoje, o trabalho desse time de críticos, apoiado também em análises científicas realizadas sobre as obras, voltou a garantir a autografia de quatro dessas Cabeças, deixando para as outras uma atribuição “no ateliê de Rembrandt”. Nesse meio-tempo apareceram também alguns exemplares que certamente documentam uma série de outros originais perdidos. Sinal de que esse era um tema de grande importância para Rembrandt, e de que muitos o pediam a ele.
Mas qual é o motivo de um tão sutil ostracismo da crítica perante essas obras? Certamente tem a ver com aquele “nae’t leven” que deixou confusos os estudiosos por tanto tempo. Rembrandt vivia numa sociedade já solidamente protestante, em que também a concepção da arte tinha mudado profundamente. Décadas antes, em 1566, o conflito com o catolicismo desembocara numa violenta campanha iconoclasta, com a destruição de muitíssimas obras nas igrejas dos Países Baixos. Ao sul do rio Escalda, os católicos tinham retomado o controle da situação, voltando a encher as igrejas de Antuérpia graças à energia fluvial de Pieter Paul Rubens; ao norte, ao contrário, a história foi mudada para sempre. Os artistas tinham-se desviado para cenas da vida cotidiana, alimentando um mercado que já não era caracterizado por grandes encomendas, mas por uma nova classe de ricos compradores. Os temas religiosos tinham-se rarefeito muito, com um claro prevalecimento de cenas do Antigo Testamento. A imagem de Jesus estava no centro de um debate acalorado: um dos alunos de Rembrandt, Jan Victors, chegou mesmo a afirmar que havia o risco de uma “idolatria”.
Rembrandt, Cabeça de Cristo, aproximadamente 1648, Museum Bredius, Haia, Países Baixos |
O “nae’t leven” de que fala o inventário sugere, nesse sentido, um elemento essencial. Rembrandt, como escreve Lloyd DeWitt, um dos curadores da mostra, procurou um modelo na comunidade judaica de Amsterdã, um pouco para confirmar as boas relações que o ligavam àquela comunidade, mas sobretudo para ter diante de si um tipo humano “etnograficamente próximo de Cristo”. Isso representava “uma recusa tanto dos estereótipos iconográficos quanto da idolatria, por meio do realismo”. Não é por acaso que a mostra e as descobertas relacionadas foram amplamente destacadas pela imprensa israelense. De modo particular pelo jornal Haaretz, que publicou um artigo de título muito significativo: “Rembrandt’s Jewish Iesus”.
Segundo outro crítico, Willem Adolph Visser’t Hooft, “à primeira vista, o retrato parece o de um rabino, o mais profundo e delicado possível. Mas percebemos logo que há qualquer coisa de misterioso. Esse Cristo está longe de nos impressionar por sua majestade. Ao contrário, é ‘sem forma nem beleza’, não ‘eleva a voz’”. Nessas observações está a substância das imagens de Cristo pintadas por Rembrandt. “Sem forma nem beleza” indica a ausência de qualquer retórica, de qualquer idealismo estético. Cristo nos surpreende num contexto de absoluta normalidade, tanto na ambientação quanto na calma reflexiva de sua atitude. E “não eleva a voz”, pois Rembrandt o imagina num instante de diálogo profundo e amigável com quem está à sua volta. Cristo é imaginado num momento de intimidade, nos bastidores da sua aventura pública. Um Cristo anti-heroico, verdadeiro na paixão do seu olhar e na ternura do vínculo que instaura com seu interlocutor. São imagens que se inseriam em continuidade ambiental em relação aos lugares a que eram destinadas, como se sublinhassem sua contemporaneidade. É isso que provavelmente Rembrandt buscava, antes de tudo para si, mas depois também para uma pequena comunidade de pessoas que não se rendia àquele vazio que o protestantismo tinha imposto. Hoje suas Cabeças de Cristo convencem justamente porque em sua elementaridade iconográfica não precisam de chaves de interpretação, não requerem uma “preparação” particular. Pedem apenas que sejam olhadas.
Fonte: Revista 30Dias (ago-set/2011)
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