Tertuliano de Cartago | Veritatis Splendor |
VI
“Dá-nos hoje o nosso pão cotidiano”
1. Com que arte a sabedoria divina
dispõe as partes desta oração! Depois das coisas do céu, isto é, depois do nome
de Deus, da vontade de Deus e do Reino de Deus, podemos pedir por nossas
necessidades terrestres. O Senhor, com efeito, já havia declarado: “Procurai
em primeiro lugar o Reino de Deus, e recebereis a mais as outras coisas por
acréscimo” (Mt
6,33).
2. Na verdade, devemos entender, antes,
em sentido espiritual o pedido: “Dá-nos hoje o nosso pão cotidiano”.
O Cristo, com efeito, é nosso pão, porque o Cristo é vida, e o pão também é
vida. Aliás, ele disse: “Eu sou o pão da vida” (Jo 6,35), e um pouco antes: “O pão é a
Palavra do Deus vivo, que desceu do céu” (cf. Jo 6,32). Ademais, como ele disse: “Isto
é o meu corpo” (Lc 22,19), cremos que o
seu corpo está presente no pão. Assim, pedindo o pão cotidiano, rogamos a Deus
viver sempre em Cristo e inseparáveis do seu corpo.
3. Mas, se compreendermos em sentido
literal estas palavras, não poderia ser à custa do seu caráter religioso e do
ensino espiritual dado pelo Senhor. Com efeito, ele manda que peçamos o pão,
como a única coisa necessária aos que têm fé. Dos outros bens, são os pagãos
que vão em busca (cf Mt
6,32-33). Para nos fazer compreender isto, o
Senhor usa exemplos e emprega parábolas, como, por exemplo, quando
pergunta: “Acaso tira o pai o pão dos seus filhos e o atira aos cães?”
(Mt
15,26; Mc 7,27). E
ainda: “Acaso ele dá uma pedra ao filho que pede pão?” (Mt
7,9). Ele mostra, assim, o que devem os
filhos esperar do pai. E o homem que bate à porta do seu amigo em plena noite,
ele o faz para obter pão (cf. Lc 11,5-8).
4. Com razão, o Senhor acrescenta: “Dá-nos hoje”. Porque já antes prevenira: “Não vos preocupeis com o que havereis de comer amanhã” (cf. Mt 6,34). No mesmo sentido, ele utiliza aquela parábola do homem preocupado em ampliar seus celeiros para reservar as colheitas abundantes e, assim, gozar de segurança por muito tempo. Mas nessa mesma noite ele morreu! (cf. Lc 12,l6ss).
VII
“Perdoa-nos as nossas dívidas”
1. É óbvio que, depois de venerar a
generosidade de Deus, roguemos também a sua clemência. De que nos serviria o
alimento, se aos olhos de Deus não fôssemos senão como um touro a engordar para
ser sacrificado? O Senhor sabe que só ele é sem pecado. É por isso que ele nos
ensina a pedir: “Perdoa-nos as nossas dívidas”. Pedir perdão já é
uma confissão, pois quem pede perdão, confessa ter pecado. Assim, a penitência
se revela agradável a Deus, porque ele a prefere à morte do pecador (cf. Ez
18,21-23).
2. Na Escritura, a palavra “dívida”
significa pecado, no sentido de se faltar ao dever. Ao juiz submete-se esta
dívida, cujo pagamento é exigido por ele. Só se pode escapar ao pagamento da
divida, se o juiz a perdoar. Como o caso daquele servo a quem o patrão perdoou
sua dívida (cf. Mt
18,23-35). A parábola inteira é um exemplo do
que dizemos. O senhor liberta o servo da sua dívida, mas este, por sua vez, não
perdoa ao seu devedor. Acusado junto do seu patrão é entregue ao algoz até que
pague o último centavo, isto é, até mesmo pela falta mais leve (cf. Mt 5,25ss).
Tudo isso tem o mesmo sentido daquilo que afirmamos: “Perdoamos aos
nossos devedores”.
3. Em outro lugar, o Senhor diz,
empregando as mesmas palavras desta oração: “Perdoai, e vos será
perdoado” (Lc 6,37). E quando Pedro
perguntou se devia perdoar sete vezes ao irmão, o Senhor respondeu: “Mais
ainda, setenta e sete vezes” (Mt
18,21-22). Deste modo, o Senhor aperfeiçoava a
Lei, visto que no livro do Génesis se declara que Caim será vingado sete vezes
e Lamec setenta e sete (cf. Gn 4,15.24).
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