A oferta de Abel e Caim, mosaico do século XII, Capela Palatina, Palermo [© Franco Cosimo Panini Editore] |
A inveja da graça alheia
“A tristeza pela bondade de um outro, sobretudo se é irmão, é o pecado que Deus condena mais que qualquer outro” (De civitate Dei XV, 7, 1).
Entrevista com padre Nello Cipriani sobre Abel e Caim, como imagens dos dois tipos de cidade (ou seja, de Igreja) que aparecem no De civitate Dei
Entrevista com Nello Cipriani por Lorenzo Cappelletti
Na virada do ano voltamos a conversar com padre Nello Cipriani, professor ordinário no Instituto Patrístico Augustinianum, de Roma, sobre Abel e Caim como imagens dos dois tipos opostos de cidade (ou seja, de Igreja) que aparecem no De civitate Dei de Santo Agostinho. Uma peregrina na terra, a outra que precisa atestar-se neste mundo. Uma peregrina, não porque caduca, como erroneamente se entende, mas porque não pretende construir-se por si mesma e se reconhece constantemente criada por Deus; e portanto é livre, livre para pedir e oferecer a si mesma. A outra que pretende construir para si uma morada estável neste mundo e que, portanto, se concebe necessariamente em alternativa ou pelo menos em concorrência com qualquer um que neste mundo queira afirmar sua presença.
NELLO CIPRIANI: No passado houve um grande debate em torno da noção das duas cidades, objeto do De civitate Dei de Santo Agostinho. Alguns estudiosos, sobretudo protestantes, entenderam a cidade de Deus apenas como uma comunidade espiritual e invisível, uma communio sanctorum, ou como uma comunidade meramente escatológica, que não teria nenhuma relação com a Igreja que vive no tempo, unida pela comunhão dos sacramentos e ordenada por uma hierarquia. A razão dessa interpretação se deve ao fato de que o critério seguido pelo bispo de Hipona para distinguir as duas cidades, a de Deus, ou celeste, e a dos homens, ou terrena, vem da sua postura interior oposta. Elas nascem de dois amores contrários: a cidade de Deus nasce do amor a Deus que chega até o desprezo de si mesmo, a cidade terrena, do amor a si mesmo que chega até o desprezo de Deus; a primeira vive segundo o Espírito ou segundo Deus, a outra segundo a carne ou segundo o homem. As duas cidades, além disso, mesmo tendo sentimentos opostos, já que são animadas por uma fé, uma esperança e um amor diferentes, vivem através do tempo confundidas e mescladas uma à outra. Portanto, a impressão é de que o discurso está no plano da meta-história e não da concretude histórica, que pode ser reconhecida. Semelhante conclusão, porém, não corresponde de modo algum ao pensamento de Santo Agostinho, que repete muitas vezes que a Igreja é a cidade de Deus, ou melhor, a parte dela que vive na história “entre as perseguições dos homens e as consolações de Deus”1. Já no início da obra, de fato, ele distingue a parte da cidade de Deus que vive na estabilidade da sé eterna e a parte que “neste correr dos séculos caminha peregrina entre os infiéis, vivendo de fé e esperando com perseverança”2 a vida eterna. No livro dezoito do De civitate Dei ele retoma a história da Igreja: fundada por Cristo sobre o fundamento dos Apóstolos, difunde-se primeiramente de Jerusalém para a Judeia e para a Samaria; depois, com o anúncio do Evangelho aos povos pagãos, se estende a todo o mundo conhecido. Delineia depois suas características principais: na Igreja há uma hierarquia, há praepositi, de modo particular o bispo, chamados a servir os irmãos, e há simples fiéis, que são também cristos, ou seja, consagrados, e participam do sacerdócio de Cristo. O momento central da vida da Igreja é a celebração eucarística, quando ela se une ao sacrifício de Cristo na cruz e com ele oferece a si mesma. Da Eucaristia os cristãos extraem a força para suportar as perseguições e o martírio. A Igreja, de resto, não tem apenas inimigos externos que a perseguem; sofre também em razão dos hereges e de muitos que são cristãos só de nome. A cidade de Deus, que é a Igreja peregrina, vive no mundo submetida às leis e às autoridades do Estado, respeita tudo o que não é contrário à religião e não deixa de dar a sua contribuição para criar uma sociedade pacífica, pois considera a paz temporal um bem precioso para todos. Por fim, a cidade de Deus, que caminha peregrina no mundo, é a Igreja, ou seja, a comunidade bem visível dos crentes, que vive no tempo com o olhar fixo na eternidade, mas que sofre e se esforça na história para aliviar as misérias dos homens, pois é animada por uma fé “que age pela caridade” (Gl 5,6). Se a esperança escatológica a projeta para o céu, a caridade a liga à história, para antecipar em alguma medida já aqui a paz que não tem ocaso.
Pode-se dizer que a essência da cidade celeste, representada por Abel, segundo Agostinho, está toda no fato de Abel ter aceito ser peregrino, enquanto Caim pôs-se a construir uma cidade? Se dermos atenção a algo mencionado no livro XV do De civitate Dei, poderíamos dizer que Abel põe-se a si mesmo à disposição para que um Outro se manifeste (sua praesentia servientem) e Caim, ao contrário, precisa demonstrar que está ali e, portanto, que tem importância (suam praesentiam demonstrantem)3?
Abel, que não constrói nenhuma cidade, e Caim, que a constrói, são figuras bem representativas das duas cidades, pois para Santo Agostinho a esperança escatológica e, respectivamente, o retraimento no mundo são suas principais características distintivas. Os cidadãos da cidade terrena são tais justamente porque vivem retraídos na terra, buscam apenas os bens deste mundo e, pela posse deles, se esforçam e lutam entre si. O cristão, por sua vez, vive no mundo sem se apegar a ele; faz bom uso dos bens temporais, sem se deixar possuir por eles, pois se considera exilado neste mundo e tem os olhos sempre voltados para a pátria do céu, que é o próprio Deus. Todavia, as diferentes esperanças não são o único elemento distintivo das duas cidades. Santo Agostinho considera a cidade de Deus diferente da cidade terrena também pelo amor à verdade e sobretudo pela humildade de quem se reconhece criatura de Deus e portanto vive na obediência e na submissão ao Criador. Escreve: “Na cidade de Deus e à cidade de Deus exilada no tempo é recomendada sobretudo a humildade, que é exaltada em grau supremo em seu rei, que é Cristo, enquanto em seu adversário, que é o diabo, domina, como ensina a Sagrada Escritura, o vício oposto a essa virtude, ou seja, a soberba. Está portanto aqui a grande diferença entre as duas cidades de que falamos: uma é a sociedade dos homens pios, a outra a dos ímpios; cada uma unida a seus anjos, a primeira unida aos anjos nos quais prevaleceu o amor de Deus, a outra aos anjos em que prevaleceu o amor a si”4. Outro elemento distintivo da cidade de Deus é a caridade que impele seus membros a servirem-se mutuamente, enquanto na cidade terrena domina a paixão pelo poder e pelo predomínio (cf. De civitate Dei XIV, 28).
Em outro lugar, do livro XV, Agostinho faz uma comparação entre as duas cidades com base numa outra imagem bíblica, a das ofertas feitas a Deus por Abel e Caim, uma recebida e a outra recusada. Recusada – Agostinho comenta – não porque Caim não tenha oferecido algo seu, mas porque, justamente oferecendo algo a Deus, pretendia na realidade não servir, mas servir-se de Deus. Essa também pode ser uma imagem eficaz e atual, pois permite entender até onde pode chegar o equívoco da religiosidade até mesmo dos cristãos, que pode existir não a serviço, mas como justificação de si.
Sim, é verdade. Os dois irmãos, Abel e Caim, são vistos como representativos das duas cidades também pela expressão da sua religiosidade. Segundo o livro do Gênesis, Caim sentiu tristeza, pois Deus tinha recebido a oferta de Abel e não a sua (cf. Gn 4,4-5). Como observa Santo Agostinho, pelo relato bíblico “não é fácil precisar por quais motivos Caim desagradou a Deus”5. Na primeira carta de João, porém, lemos que Caim estava tomado pelo maligno e matou seu irmão, “porque as suas obras eram más, ao passo que as do seu irmão eram justas” (1Jo 3,12). O bispo de Hipona entende essas palavras no sentido de que Caim com a sua oferta “dava a Deus algo seu, mas dava-se também a si mesmo”6. E explica: “Assim fazem todos aqueles que, mesmo não seguindo a vontade de Deus, mas a sua, ou seja, mesmo não vivendo com o espírito reto, mas perverso, oferecem todavia a Deus uma dádiva, com a qual pensam torná-lo propício, a fim de que os ajude não a curar seus desejos maus, mas a satisfazê-los”7. Provavelmente tinha em mente em primeiro lugar os sacrifícios públicos que no império romano os pagãos ofereciam a seus deuses, para serem por eles ajudados a reinar sobre os outros povos, “não pelo desejo de prover o seu bem, mas por querer dominá-los”8. Porém, ele oferece, em seguida à observação histórica, um princípio geral que infelizmente pode ser aplicado também à religiosidade de muitos fiéis: “Os bons se servem do mundo para gozar de Deus, os maus ao contrário querem servir-se de Deus para gozar o mundo”9. A análise de Santo Agostinho, de qualquer forma, não se detém aqui. Ele observa ainda que Caim, ao ver que Deus tinha aceito a oferta do irmão e não a sua, não deveria ter-se indignado nem sentido inveja, mas ter-se arrependido e imitado o irmão bom, pois – conclui – “a tristeza pela bondade de um outro, sobretudo se é irmão, é o pecado que Deus condena mais que qualquer outro”10.
Santo Agostinho num afresco do século VI, Basílica de São João de Latrão, Roma |
Também Enos, o filho de Set, é visto por Santo Agostinho como uma figura representativa da cidade de Deus, porque foi o primeiro que “começou a invocar o nome do Senhor”11. E essa – explica – “na presente condição de morte é toda e a máxima ocupação da cidade de Deus peregrina neste mundo”12. Em sua radicalidade, a afirmação é realmente forte, mas não nos deve surpreender, se levarmos em conta que a oferta a Deus vem de Deus não menos que a invocação de seu nome13. Já no décimo livro da obra Agostinho dissera que toda a vida de cada cristão e de toda a cidade remida é um sacrifício agradável a Deus. Esse culto espiritual da cidade de Deus não é uma evasão dos compromissos da vida concreta de cada dia. O verdadeiro culto de Deus, de fato, consiste no amor a Deus e inseparavelmente no amor ao próximo (cf. De civitate Dei X, 3, 2). Para Santo Agostinho, “os verdadeiros sacrifícios são as obras de misericórdia, que fazemos para nós mesmos e para o próximo em louvor a Deus”14. É sacrifício agradável a Deus, portanto, tudo o que os membros do corpo de Cristo fazem para manter unida na caridade a comunidade eclesial, exercendo cada um o seu carisma em benefício dos outros membros. Enfim, a Eucaristia é culmen et fons da vida da cidade de Deus peregrina no mundo: “Este é o sacrifício dos cristãos: ‘Muitos e um só corpo em Cristo’. A Igreja celebra esse mistério com o sacramento do altar, conhecido dos fiéis, no qual lhe é mostrado que, na coisa que oferece, ela mesma é oferecida”15.
Para concluir, portanto, padre Cipriani nos recorda oportunamente que é o sacramento a fonte da verdadeira imagem da Igreja, justamente porque ela, celebrando-o, nada demonstra ( demonstrat), mas lhe é mostrado ( demonstratur) que naquilo que oferece ( offert) ela mesma é oferecida ( offeratur). Do ativo ao passivo, poderia, como bom orador, comentar Agostinho.
Notas
1 “Inter persecutiones mundi et consolationes Dei” (Agostinho, De civitate Dei XVIII, 51, 2).
2 “...In hoc temporum cursu, cum inter impios peregrinatur ex fide vivens, sive in illa stabilitate sedis aeternae, quam nunc exspectat per patientiam...” (Agostinho, De civitate Dei I, Praefatio).
3 “Invenimus ergo in terrena civitate duas formas, unam suam praesentiam demonstrantem, alteram caelesti civitati significandae sua praesentia servientem” (Agostinho, De civitate Dei XV, 2).
4 “Quapropter quod nunc in civitate Dei et civitati Dei in hoc peregrinanti saeculo maxime commendatur humilitas et in eius rege, qui est Christus, maxime praedicatur contrariumque huic virtuti elationis vitium in eius adversario, qui est diabolus, maxime dominari sacris Litteris edocetur: profecto ista est magna differentia, qua civitas, unde loquimur, utraque discernitur, una scilicet societas piorum hominum, altera impiorum, singula quaeque cum angelis ad se pertinentibus, in quibus praecessit hac amor Dei, hac amor sui” (Agostinho, De civitate Dei XIV, 13, 1).
5 “In quo autem horum Deo displicuerit Cain, facile non potest inveniri” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
6 “Dans Deo aliquid suum, sibi autem se ipsum” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
7 “Quod omnes faciunt, qui non Dei, sed suam sectantes voluntatem, id est non recto, sed perverso corde viventes, offerunt tamen Deo munus, quo putant eum redimi, ut eorum non opituletur sanandis pravis cupiditatibus, sed explendis” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
8 “Non caritate consulendi, sed dominandi cupiditate” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
9 “Boni quippe ad hoc utuntur mundo, ut fruantur Deo; mali autem contra, ut fruantur mundo, uti volunt Deo” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
10 “Hoc peccatum maxime arguit Deus, tristitiam de alterius bonitate, et hoc fratris” (Agostinho, De civitate Dei XV, 7, 1).
11 “Speravit invocare nomen Domini Dei” (Agostinho, De civitate Dei XV, 21).
12 “In hoc mundo peregrinantis civitatis Dei totum atque summum in hac mortalitate negotium” (Agostinho, De civitate Dei XV, 21).
13 “Illa autem, quae caelestis peregrinatur in terra, falsos deos non facit, sed a vero Deo ipsa fit, cuius verum sacrificium ipsa sit” (Agostinho, De civitate Dei XVIII, 54, 2).
14 “Vera sacrificia opera sint misericordiae sive in nos ipsos sive in proximos, quae referuntur ad Deum” (Agostinho, De civitate Dei X, 6).
15 “Hoc est sacrificium christianorum: Multi unum corpus in Christo. Quod etiam sacramento altaris fidelibus noto frequentat Ecclesia, ubi ei demonstratur, quod in ea re, quam offert, ipsa offeratur” (Agostinho, De civitate Dei X, 6).
Fonte: http://www.30giorni.it/
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