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1. Significado da Tradição em geral:
“Tradição” é algo muito mal visto na cultura, especialmente a partir do ano 1968. Nessa época surgia um forte clamor juvenil por se romper com tudo o que é “tradicional”, todos os valores antigos e obsoletos.
Na verdade, se fizermos uma analise serena do homem, da sua vida social, do seu comportamento em geral, veremos que o ser humano é um ser de tradição. O homem sempre rompe os limites do imediato, está sempre ligado a seu passado e com projetos para o futuro. O homem sempre recebe tradições dos antigos, cria algumas, elimina outras e transmite a maioria para os jovens. A tradição se funda na mortalidade e nas limitações humanas, na necessidade de organizar e transmitir experiências, conhecimentos, modos de ser adquiridos. A tradição é um conceito dinâmico que representa o centro de toda cultura.
Todas comunidades humanas criam tradições, que condicionam e determinam a mentalidade e o comportamento da comunidade na qual elas estão inseridas. A tradição é a memória dos povos, conserva o passado e proporciona aos homens de certa comunidade uma determinada identidade.
“A tradição é a capacidade dos grupos humanos de transmitir a cultura criada pelo conjunto dos indivíduos que os compõem, de multiplicá-la, enriquecê-la e conservá-la de geração em geração.[1]”
O centro da tradição de cada cultura é a linguagem.
2. Crítica e reabilitação da tradição:
A cultura ocidental criticou várias vezes a idéia da tradição, especialmente a partir do século XVI. As causas desse fenômeno são tanto filosóficas como religiosas.
A Reforma Protestante tende a rejeitar a tradição por motivos de “pureza evangélica.” O homem se une imediatamente a Deus e todo elemento humano parece uma espécie de contaminação, uma interferência ilegítima na relação do crente e Deus.
Algo parecido foi afirmado no âmbito da filosofia racionalista do século XVII. Premissa primeira dessa filosofia é que a verdade não se apóia em nada distinto do próprio pensamento. O “eu” passa a ser o fundamento de todo pensamento científico e não mais os conteúdos recebidos da história. Nessa época aparece a função mediadora do mundo real, dos demais homens, da autoridade e da tradição. O mundo real passa a ser considerado mundo dos sentidos, que podem nos enganar (Descartes). O homem passa a ser considerado “lobo para o homem” (Rousseau); a autoridade passa a ser identificada com autoritarismo; e a tradição passa a ser algo obsoleto.
A Ilustração do século XVII considera a autoridade e a tradição como obstáculos que impedem o crescimento da “razão pura”, senhora de si. “Aude Sapere!” exclamará Kant, como um grito de ordem aos homens cultos para se libertar das tradições religiosas e das autoridades.
Alguns autores representantes do Romanticismo do século XIX, críticos da Ilustração, reabilitaram o conceito de tradição. Esses autores (Herder, Schlegel, Novalis, Gadamer etc.) insistiam na idéia de que “o que foi consagrado pela tradição e pelo passado contém uma autoridade anônima e que nosso ser histórico e finito está determinado pelo que a autoridade o transmitiu.[2]”
3. O desenvolvimento da Teologia da Tradição na Igreja.
A Tradição cristã não é simplesmente uma variação religiosa de um fenômeno cultural humano. A Tradição cristã se fundamenta em Deus, que se revelou em Israel e em Jesus Cristo, para a salvação de todos os homens.
Podemos definir, pois a Tradição como “o conjunto de conteúdos doutrinais e espirituais que procedem diretamente de Jesus e dos Apóstolos, que se manifestam na Escritura, e se conservam e se desenvolvem historicamente no seio da Igreja.[3]”
No Novo Testamento Jesus Cristo aparece condenando algumas tradições antigas, em Mt. 15. Alguns leitores desatentos ou mal-intencionado da Bíblia consideram esse texto como a condenação absoluta que Jesus Cristo faz das tradições. É evidente para qualquer um leitor inteligente que Jesus nesse texto está condenando algumas tradições judaicas, desvinculadas à caridade. Quando a Igreja Católica afirma o valor da Tradição, não está, pois, reabilitando as tradições farisaicas, condenadas por Cristo. A Igreja Católica defende a Tradição que começa com Cristo, quer dizer, tudo o que Cristo fez e ensinou aos Apóstolos.
No Novo Testamento há muitos textos que os Apóstolos exortam os cristãos a guardar as tradições recebidas deles (que por sua vez, receberam de Cristo). Podemos citar alguns exemplos: 1Cor 11,23; 18,3: “o que vos transmito é o que eu mesmo recebi do Senhor”. As Cartas Pastorais insistem na necessidade de conservar fielmente o “depósito da fé” e a Tradição recebida dos Apóstolos. Podemos ver isso em: 1Tim 1,18; 2 Tim 1,13-14; 2,2; 2 Pe 3,2.
Quando a Igreja teve de manter sua fé nos séculos II e III, frente ao confronto com os gnósticos, os Pais da Igreja desenvolveram o princípio da Tradição como regra de fé.
“Todo aquele que queira ver a verdade pode encontrar em cada Igreja a Tradição que os Apóstolos pregara no mundo inteiro.” (Santo Irineu de Lião)
“Toda doutrina que está em conformidade com aquelas Igrejas Apostólicas, deve ser considerada como verdade, pois indubitavelmente o que as Igrejas receberam dos Apóstolos, isto foi recebido de Cristo e Cristo de Deus.” (Tertuliano)
Quando no século XVI Lutero evocou o princípio de “Sola Scriptura” o Concílio de Trento manteve a referência à Igreja dos tempos apostólicos e ensinou que era preciso render idêntico respeito à Escritura e à Tradição, como fonte única da verdade evangélica. Em questões de fé e de moral não se pode interpretar a Escritura “contra o sentido que a santa Mãe Igreja sustentou e sustém.”
No século XIX e XX a noção de Tradição foi novamente estudada com grande profundidade. Os principais autores dessa época, sobre esse tema, são: Möhler (1796-1838), Newman (1801-1900) e Blondel (1861-1949). Eles desenvolvem a idéia da “Tradição viva”, que se desenvolve na Igreja.
4. Tradição e Regra de Fé:
A relação entre a Tradição e a regra de fé está exposta de maneira sintética e suficientemente clara na Constituição Dei Verbum, 8.
“E assim, a pregação apostólica, que se exprime de modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se, por uma sucessão contínua, até à consumação dos tempos. Por isso, os Apóstolos, transmitindo o que eles mesmos receberam, advertem os fiéis a que observem as tradições que tinham aprendido quer por palavras quer por escrito (cfr. 2 Tess. 2,15), e a que lutem pela fé recebida dama vez para sempre (cfr. Jud. 3). Ora, o que foi transmitido pelos Apóstolos, abrange tudo quanto contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita.
Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer mercê da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração (cfr. Lc. 2, 19. 51), quer mercê da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade. Isto é, a Igreja, no decurso dos séculos, tende contìnuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus.
Afirmações dos santos Padres testemunham a presença vivificadora desta Tradição, cujas riquezas entram na prática e na vida da Igreja crente e orante. Mediante a mesma Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados, e a própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e torna-se incessantemente operante; e assim, Deus, que outrora falou, dialoga sem interrupção com a esposa do seu amado Filho; e o Espírito Santo – por quem ressoa a voz do Evangelho na Igreja e, pela Igreja, no mundo – introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra de Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cfr. Col. 3,16)”.
5. Tradição e Escritura:
“A sagrada Tradição, portanto, e a Sagrada Escritura estão intimamente unidas e compenetradas entre si. Com efeito, derivando ambas da mesma fonte divina, fazem como que uma coisa só e tendem ao mesmo fim. A Sagrada Escritura é a palavra de Deus enquanto foi escrita por inspiração do Espírito Santo; a sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos sucessores dos Apóstolos a palavra de Deus confiada por Cristo Senhor e pelo Espírito Santo aos Apóstolos, para que eles, com a luz do Espírito de verdade, a conservem, a exponham e a difundam fielmente na sua pregação; donde resulta assim que a Igreja não tira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas. Por isso, ambas devem ser recebidas e veneradas com igual espírito de piedade e reverência.” (Dei Verbum 8)
6. As principais testemunhas da Tradição, os Padres da Igreja:
Os Padres da Igreja são os escritores eclesiásticos antigos caracterizados por sua santidade de vida, por seu profundo conhecimento das Escrituras e da doutrina da fé e pela responsabilidade que exerceram na Igreja Antiga, pois eram grandes pastores. São considerados como as testemunhas privilegiadas da Tradição, pois nos unem os ensinamentos recebidos dos Apóstolos e a Igreja de todos os tempos.
A Igreja ensinou que o consenso patrístico unânime constitui regra certa para interpretar a Sagrada Escritura (Conc. de Trento, D 786, Vaticano I, D 17888).
7. O sentido cristão da fé (sensus fidelium):
“O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome (cfr. Hebr. 13,15). A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cfr. Jo. 2, 20 e 27), não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, «desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis», manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes. Com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela ação do Espírito de verdade, o Povo de Deus, sob a direção do sagrado magistério que fielmente acata, já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira palavra de Deus (cfr. 1 Tess. 2,13), adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cfr. Jud. 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida.” (LG 12)
8. Os teólogos da Igreja e o consenso teológico:
A Teologia é «a fé à procura de explicações» e «explicações à procura de razões de fé». Magistério e Teologia têm a finalidade de conservar e atualizar a revelação. Ambos brotam da revelação. Contudo têm também funções diversas:
A Teologia: tem a função de conhecer e penetrar o sentido da revelação, o sentir da comunidade e tirar conclusões para dar ao magistério. A teologia deverá ter uma profunda ligação com a comunidade, ela é uma ciência comunitária por excelência.
Magistério: tem a função de receber o que a teologia lhe dá e, com a ajuda do Espírito Santo, aprofundar esses dados, sistematizá-los e depois propô-las como verdades de fé. Depois irá servir-se da Teologia para transmitir isto ao povo.
9. Relação da Escritura e da Tradição da Igreja com o Magistério eclesiástico:
“A sagrada Tradição e a Sagrada Escritura constituem um só depósito sagrado da palavra de Deus, confiado à Igreja; aderindo a este, todo o Povo santo persevera unido aos seus pastores na doutrina dos Apóstolos e na comunhão, na fração do pão e na oração (cfr. Act. 2,42 gr.), de tal modo que, na conservação, atuação e profissão da fé transmitida, haja uma especial concordância dos pastores e dos fiéis.
Porém, o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição, foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado.
É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas.” (D.V. 10)
[1] RATZINGER, J. Teoría de los principios teológicos, Barcelona, 1985,98.
[2] GADAMER, Verdade e Método, p. 348.
[3] Dei Verbum, n. 8.
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