John Olorunfemi Onaiyekan é um cardeal nigeriano, arcebispo emérito de Abuja [© Romano Siciliani] |
O arcebispo de Abuja analisa a situação do país depois dos atentados às igrejas e reflete sobre as raízes do grupo Boko Haram: a cultura desses terroristas não é nigeriana. A Igreja Católica, que quer a paz e o acordo, é vítima do projeto louco de quem visa dividir o país com a finalidade de apropriar-se dos recursos naturais
por John O. Onaiyekan
O que está acontecendo em meu país e de quem é a culpa? Não existem informações que possamos definir exatas a respeito dos autores do massacre do Natal na paróquia de Santa Teresa, em Madalla, perto de Abuja. Quem reivindicou o massacre, ostentando-se diante de Deus, é o chamado grupo Boko Haram, gente sem rosto, cuja ideologia é a de quem frequenta o terrorismo internacional e se reveste de fanatismo islâmico. Mas é um grupo variegado, com interesses contraditórios. Há quem afirme que alguns deles tenham estagiado nos campos de treinamento com os talibãs e a al-Qaeda, no Afeganistão e no norte do Paquistão. Eles seguem os passos dos extremistas, que, também na Nigéria, imaginam uma aplicação da charia que chegue à pena de amputação das mãos e lapidação das adúlteras. São minoria, mas causam uma grande desordem, e cremos infelizmente que tenha chegado o momento em que se iniciará na Nigéria uma reação em cadeia, depois de anos em que esperamos e desejamos que esse fenômeno pudesse ser resolvido fisiologicamente, apenas pela aplicação de leis e pela negociação.
Repito que a cultura desses extremistas não é nigeriana, mas do terrorismo internacional. E que papel caberia ao islã nesse cenário?
Sabemos que a relação entre a Igreja e o islã na África não é homogênea. Em muitos países a convivência funciona, embora interrompida por ações contrárias à paz realizadas por pretensos islamistas. No norte do nosso continente, como no Oriente Médio, as pequenas minorias cristãs em países totalmente muçulmanos trabalham para encontrar um bom equilíbrio de convivência. Na Nigéria, não se dá o caso de uma pequena minoria cristã, mas há paridade numérica com o islã: e não existe outro caminho para evitar a autodestruição, além do reconhecimento mútuo e da igualdade substancial. Com isso estou simplesmente dizendo o que qualquer muçulmano nigeriano confirmaria: e sei disso com certeza. Cristãos e muçulmanos vivemos um equilíbrio em nível institucional e social, e na vida cotidiana não dá para perceber se o seu interlocutor – membro do establishment ou vendedor no mercadinho – é de fé islâmica ou cristã. Só esses gestos terroristas apontam o dedo para as diferenças. Tem razão quem especula sobre as intenções do chamado grupo Boko Haram, cuja finalidade seria exatamente provocar a reação armada dos cristãos, e portanto o caos e o fim da Nigéria como nós a conhecemos. Para chegar a isso, justamente, apostam também na divisão entre os cristãos.
Sob a genérica definição “cristãos nigerianos” se reúnem denominações diferentes. A nossa comunidade católica segue com todo o coração o que a Igreja de Roma nos sugere – e não nos ordena – no campo do diálogo religioso, convencidos de que essa seja a sua maneira de dar paz ao país, ainda que outros grupos, protestantes, pensem diferentemente e nos critiquem, alguns chegando penosamente a denegrir o islã enquanto tal, associando-o plenamente ao grupo Boko Haram. Com esses radicais cristãos achamos difícil caminhar juntos, pois eles não querem dialogar e “provocam” os extremistas, a ponto de a sua reação não se fazer esperar: é só ver, por exemplo, como as bombas acabam explodindo diante de uma igreja católica, no dia de Natal. Justamente contra nós, que fizemos de tudo para procurar a harmonia religiosa de nosso país, e que só podemos continuar a dizer a verdade.
Fora ou dentro de nosso país, há quem possa criticar a franqueza com que nos dirigimos aos nossos muçulmanos nigerianos. Nós não vemos contradição entre o diálogo e o pedido ao líder do islã nigeriano de que isole os terroristas infiltrados nas suas comunidades. Não nos preocupamos com o “politicamente correto”, justamente graças à natural sinceridade que temos uns com os outros. Os chefes muçulmanos sabem muito bem que o chamado grupo Boko Haram fez vítimas tanto islâmicas quanto cristãs. Não podem dizer que o problema de supostos terroristas muçulmanos não os toca. No dia de Natal, em Madalla, morreram muçulmanos também. Com igual franqueza, dizemos que não existe possibilidade nenhuma de uma represália violenta por parte dos católicos. Temos consciência de que é o governo central, antes de todos nós, que tem o poder e a responsabilidade de proteger seus cidadãos.
Eles já são hoje conhecidos por todos como Boko Haram, que em língua hausa significa “a educação ocidental é abominável”. É a enésima definição usada com o intuito de aumentar o sentimento de conflito de civilizações. Mas esse tipo de educação não nos foi imposta, nem pelos colonos ingleses nem pelos governos nigerianos que se sucederam nos últimos cinquenta anos, inclusive aqueles que eram expressão do norte tradicionalmente muçulmano. Nenhum de nós é obrigado a confiar nesse modelo educativo ou social. Na Nigéria, não há imposição e cada um pode ter a educação religiosa que deseja.
O Boko Haram baseia-se no erro – que difunde – de identificar a Igreja com uma cultura. É um equívoco... mundial. Não muito tempo atrás me convidaram para um congresso em Madri sobre o tema do confronto entre o islã e o Ocidente. Esses senhores realizavam um congresso baseando-se na ideia de que o cristianismo fosse ocidental e hostil ao islã; então perguntei a eles onde deveria me sentar: porque não era ocidental e nem muçulmano, mas nigeriano e cristão. Talvez os “representantes do Ocidente” naquele congresso tenham-se ressentido com as minhas afirmações. Porém, eles mesmos não estavam dispostos a defender o cristianismo, enquanto os representantes islâmicos discutiam apenas sobre religião... Definitivamente, a Igreja era fechada numa morsa sufocante.
A nossa comunidade católica vive em paz com todos. A Igreja pronunciou-se definitivamente em favor da liberdade religiosa, eliminando assim qualquer possível mal-entendido. A Igreja do nosso Concílio Vaticano II, além disso, não temeu nem se esquivou da modernidade, sabe compreendê-la e abraçá-la, deu-nos meios para sustentar o diálogo com o mundo.
Nós não podemos aceitar a liberdade religiosa reticentemente, com um “sim, porém...”, pois isso significaria negar a liberdade de alguém, até a nossa própria.
Os ensinamentos do Concílio são um patrimônio que nos permite viver juntos, no mundo e entre as diversas religiões, as quais talvez não possuam ainda esse patrimônio e se esforçam para encontrar em suas teologias justificativas para viver a relação com a modernidade. Vale tanto para os meus amigos muçulmanos quanto para mim mesmo o fato de que no Alcorão, como na Bíblia, cada um de nós pode encontrar trechos que a interpretação permite forjar como apologia da intolerância e da violência. No Livro dos Juízes, Deus vem com o exército para debelar os pagãos...! Mas o Senhor deseja que neste mundo nós vivamos em paz e o reconheçamos como Pai. E não devemos forçar ninguém: quem deseja se tornar muçulmano esteja livre para isso, como também quem deseja continuar a ser cristão. E que o Estado seja a garantia de que isso possa acontecer pacificamente. Eis a minha liberdade religiosa: eu sou cristão por graça de Deus, mas isso não significa que essa graça seja dada sempre ou a todos. Não há obrigação na fé. Aqui na Nigéria citamos muitas vezes e de boa vontade uma bela sura do Alcorão: “Se Deus quisesse, nos teria feito todos muçulmanos”.
(Depoimento tomado por Giovanni Cubeddu, revisto pelo autor)
Fonte: http://www.30giorni.it/
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