Translate

sábado, 22 de janeiro de 2022

A Idade Moderna – De Erasmo a Nietzsche (Parte 2/6)

Presbíteros

A Idade Moderna
De Erasmo a Nietzsche
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
por Eric Voegelin

Tradução e abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996

§ 3. Os símbolos de Igreja e Transubstanciação

As questões muito específicas da Disputa de Leipzig exemplificam a crise de um conteúdo ornara difícil de digerir intelectualmente. A essência do cristianismo exige um reajustamento permanente de expressão. O que é já um problema grave no interior de uma sociedade, ainda mais se complica quando o reajustamento bule com a grandeza de várias civilizações. A Igreja é uma parcela de eternidade na história mas as expressões doutrinárias da verdade cristã não parecem tão eternas quando atingidas pela relatividade histórica. A principal vítima da dificuldade de lidar com a historicidade do cristianismo foi o símbolo da própria Igreja. Na Antiguidade, S.Paulo estabelecera um compromisso mediante a interpretação da cultura pagã e da lei hebraica como prelúdios da revelação cristã. Os concílios da cristandade romana tinham harmonizado a pluralidade de sociedades cristãs através de consenso na Cristologia. Após Carlos Magno e as cruzadas, a situação cismática dormente na Igreja sofreu um agravamento com o novo horizonte histórico oriental e com as crises internas ocidentais. Se a romanitas como poder espiritual não era um símbolo vão, a supremacia pontifícia aparecia sobretudo como a evocação do império romano do Ocidente. Nesse caso, a relativização histórica da ideia imperial seria também a relativização do cristianismo. Como deveria ser defendida a ideia da Igreja universal?

A outra questão ardente da reforma era a transubstanciação. O termo tomista conversio descreve o mistério da transformação do pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo, posição inquestionada até ao séc. XIII. A partir de então, a vaga crescente de intelectualismo suscita tentativas sucessivas para explicar o mistério como um problema que pudesse ser positivamente resolvido. O 4º Concílio de Latrão, de 1215, definiu que Transubstanciação era uma mudança de substância que não afetava os acidentes. A conversio é um símbolo de origem pré-cristã cujo alcance pode ser detectado em passagens como I Coríntios 11,23-29, por exemplo: “O que recebi do Senhor, transmito-vos também…Quem comer o pão ou beber o cálice do Senhor sem merecimento (anaxiós) será culpado do sangue e corpo do Senhor… Quem beber e comer sem discernir (mé diakrinón) o corpo do Senhor bebe e come juízo (krima) para si mesmo “. Como lemos em Gálatas 1 e 2, a conversio narra a experiência autêntica do Evangelho revelado pelo Senhor a Paulo. Após a revelação na estrada para Damasco, Paulo retira-se para a Arábia, depois regressa a Damasco, vai a Jerusalém passados três anos encontrar-se com Pedro e Tiago com quem fica quinze dias e só depois de catorze anos regressa a Jerusalém com Barnabé e Tito para informar os apóstolos do Evangelho que pregava aos gentios. A conversio é uma experiência real e uma experiência não pode ser desmentida. Mantém a sua verdade enquanto o crente a aceitar e enquanto o símbolo despertar a experiência por anamnesis: “Fazei isto em memória de Mim “. Tais elementos são reveladores, diferentemente do que afirma a chamada historiografia “crítica” do Evangelho, não porque ponham em causa a validade dos Sinópticos mas porque neles se detecta a admirável passagem do rito pré-cristão para o símbolo da doutrina cristã que lhe veicula o significado.

Estes elementos ajudam a estabelecer o nível teórico da questão maltratada na Reforma. Teoricamente é muito discutível submeter um mistério como a conversio a uma interpretação em termos da metafísica aristotélica, tal como sucedeu na doutrina da transubstanciação. Quando a conversio se torna uma proposição de química transcendental, a sua verdade torna-se discutível. Metafísicos especiosos como Durand, Occam e d’Aillly ensaiaram soluções tais como considerar que a substância do pão coexiste com o corpo do Senhor. Trata-se de variantes da ideia de consubstanciação a que também pertencem as doutrinas luterana da “presença real”, ou a retórica de Calvino, ou a simbolização comemorativa de Zuínglio. Todas falham em resolver a questão. Uma vez ultrapassada a idade da fé elementar seria possível renová-la através da compreensão anamnética de experiências anteriores, como fez Agostinho na sua teoria do símbolo, Crede et manducasti, uma solução de profundo nível espiritual. O risco cresce na zona mediana entre a fé pura e a sofisticação intelectual. Ora a sofisticação intelectual da Renascença permitia ver o problema mas não permitia ver a solução. A questão da transubstanciação degenerava numa querela pseudo-metafísica entre intelectuais que não dominavam o assunto.

A confusão é instrutiva acerca das tendências em conflito: 1) Era possível desejar o regresso à aceitação simples da fé pura. Lutero insiste por vezes na presença real sem mais nada acrescentar. Será uma solução inconsistente mas pelo menos não é errada. 2) Compreende confusamente a necessidade de um aprofundamento espiritual. Na obra de 1520, Das hauptstück des ewigen und newen Testaments etc.(…) ensaia a distinção entre a palavra e o signo de Jesus Cristo: “Podemos dispensar o signo mas não a palavra: porque não existe fé sem a palavra divina“. Deste modo, a comunhão real é o fortalecimento da fé através da palavra e o sacramento só pode ser recebido na confirmação da fé. 3) Enfim, podia-se levar ao extremo a destruição parcial do símbolo ensaiada pela metafísica e enveredar pela alegorização completa tal como fazem Carlstadt, Zuínglio e Ecolâmpadio. E, acrescente-se como corolário para a história das ideias, verifica-se assim que a inclinação para generalizar as operações do intelecto ao domínio da fé e da crença é afinal uma criação de crentes Católicos do sec. XII, agravada pelos crentes Protestantes do séc. XVI e que só se evidencia com a ação dos descrentes iluministas no séc. XVIII.

BIBLIOGRAFIA:

Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6

Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923

Fonte: https://www.presbiteros.org.br/

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF