Presbíteros |
Tradução e
abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996
§ 3. Os símbolos de Igreja e Transubstanciação
As questões muito específicas
da Disputa de Leipzig exemplificam a crise de um conteúdo ornara difícil de
digerir intelectualmente. A essência do cristianismo exige um reajustamento
permanente de expressão. O que é já um problema grave no interior de uma sociedade,
ainda mais se complica quando o reajustamento bule com a grandeza de várias
civilizações. A Igreja é uma parcela de eternidade na história mas as
expressões doutrinárias da verdade cristã não parecem tão eternas quando
atingidas pela relatividade histórica. A principal vítima da dificuldade de
lidar com a historicidade do cristianismo foi o símbolo da própria Igreja. Na
Antiguidade, S.Paulo estabelecera um compromisso mediante a interpretação da
cultura pagã e da lei hebraica como prelúdios da revelação cristã. Os concílios
da cristandade romana tinham harmonizado a pluralidade de sociedades cristãs
através de consenso na Cristologia. Após Carlos Magno e as cruzadas, a situação
cismática dormente na Igreja sofreu um agravamento com o novo horizonte
histórico oriental e com as crises internas ocidentais. Se a romanitas como poder espiritual não era um símbolo
vão, a supremacia pontifícia aparecia sobretudo como a evocação do império
romano do Ocidente. Nesse caso, a relativização histórica da ideia imperial
seria também a relativização do cristianismo. Como deveria ser defendida a
ideia da Igreja universal?
A outra questão ardente da
reforma era a transubstanciação. O termo tomista conversio descreve o mistério da transformação do
pão e do vinho no corpo e sangue de Cristo, posição inquestionada até ao séc.
XIII. A partir de então, a vaga crescente de intelectualismo suscita tentativas
sucessivas para explicar o mistério como um problema que pudesse ser
positivamente resolvido. O 4º Concílio de Latrão, de 1215, definiu que
Transubstanciação era uma mudança de substância que não afetava os acidentes.
A conversio é um símbolo de origem pré-cristã cujo
alcance pode ser detectado em passagens como I Coríntios 11,23-29,
por exemplo: “O que recebi do Senhor, transmito-vos também…Quem comer o pão ou
beber o cálice do Senhor sem merecimento (anaxiós) será culpado do sangue e
corpo do Senhor… Quem beber e comer sem discernir (mé diakrinón) o corpo do
Senhor bebe e come juízo (krima) para si mesmo “. Como lemos
em Gálatas 1 e 2, a conversio narra
a experiência autêntica do Evangelho revelado pelo Senhor a Paulo. Após a
revelação na estrada para Damasco, Paulo retira-se para a Arábia, depois
regressa a Damasco, vai a Jerusalém passados três anos encontrar-se com Pedro e
Tiago com quem fica quinze dias e só depois de catorze anos regressa a
Jerusalém com Barnabé e Tito para informar os apóstolos do Evangelho que
pregava aos gentios. A conversio é uma
experiência real e uma experiência não pode ser desmentida. Mantém a sua
verdade enquanto o crente a aceitar e enquanto o símbolo despertar a
experiência por anamnesis: “Fazei isto em memória de Mim “. Tais elementos são
reveladores, diferentemente do que afirma a chamada historiografia “crítica” do
Evangelho, não porque ponham em causa a validade dos Sinópticos mas porque
neles se detecta a admirável passagem do rito pré-cristão para o símbolo da
doutrina cristã que lhe veicula o significado.
Estes elementos ajudam a
estabelecer o nível teórico da questão maltratada na Reforma. Teoricamente é
muito discutível submeter um mistério como a conversio a uma
interpretação em termos da metafísica aristotélica, tal como sucedeu na
doutrina da transubstanciação. Quando a conversio se
torna uma proposição de química transcendental, a sua verdade torna-se
discutível. Metafísicos especiosos como Durand, Occam e d’Aillly ensaiaram
soluções tais como considerar que a substância do pão coexiste com o corpo do
Senhor. Trata-se de variantes da ideia de consubstanciação a que também
pertencem as doutrinas luterana da “presença real”, ou a retórica de Calvino,
ou a simbolização comemorativa de Zuínglio. Todas falham em resolver a questão.
Uma vez ultrapassada a idade da fé elementar seria possível renová-la através
da compreensão anamnética de experiências anteriores, como fez Agostinho na sua
teoria do símbolo, Crede et manducasti,
uma solução de profundo nível espiritual. O risco cresce na zona mediana entre
a fé pura e a sofisticação intelectual. Ora a sofisticação intelectual da
Renascença permitia ver o problema mas não permitia ver a solução. A questão da
transubstanciação degenerava numa querela pseudo-metafísica entre intelectuais
que não dominavam o assunto.
A confusão é instrutiva acerca
das tendências em conflito: 1) Era possível desejar o regresso à aceitação
simples da fé pura. Lutero insiste por vezes na presença real sem mais nada
acrescentar. Será uma solução inconsistente mas pelo menos não é errada. 2)
Compreende confusamente a necessidade de um aprofundamento espiritual. Na obra
de 1520, Das hauptstück des ewigen und newen Testaments etc.(…) ensaia
a distinção entre a palavra e o signo de Jesus Cristo: “Podemos dispensar o signo mas não a palavra: porque não existe fé
sem a palavra divina“. Deste modo, a comunhão real é o
fortalecimento da fé através da palavra e o sacramento só pode ser recebido na
confirmação da fé. 3) Enfim, podia-se levar ao extremo a destruição parcial do
símbolo ensaiada pela metafísica e enveredar pela alegorização completa tal
como fazem Carlstadt, Zuínglio e Ecolâmpadio. E, acrescente-se como corolário
para a história das ideias, verifica-se assim que a inclinação para generalizar
as operações do intelecto ao domínio da fé e da crença é afinal uma criação de
crentes Católicos do sec. XII, agravada pelos crentes Protestantes do séc. XVI
e que só se evidencia com a ação dos descrentes iluministas no séc. XVIII.
BIBLIOGRAFIA:
Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6
Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923
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