Presbíteros |
Tradução e
abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996
§ 4. As 95 teses
Nesta análise, importa
insistir em problemas específicos porquanto, além de impossível, pouco
adiantaria ver uma por uma as circunstâncias da Reforma. Pode dizer-se que a
espiritualidade das massas no final do séc. XV era superior à de épocas
anteriores. Disso eram prova obras como a Imitação de Cristo e
a Theologia Germanica do anônimo de Frankfurt
publicada e prefaciada pelo próprio Lutero. Mas embora as Ordens mendicantes,
em particular, tivessem elevado o nível espiritual das populações urbanas, a
vaga de misticismo do séc. XIV-XV já não fora canalizada pela Igreja para
formas institucionais: pelo contrário, dera origem aos movimentos sectários do
“povo de Deus”. E não era preciso ser um destes “espírito livres” para
desaprovar muitas das práticas da Igreja a exigir reforma imediata; bastava ter
formação mística.
Entre os fatores que
contribuíram para a explosão de 1517, as indulgências foram a centelha que a
acendeu. A prática das indulgências era tradicional e significava a remissão
dos castigos temporais impostos pela Igreja como sinal exterior da verdadeira
contrição. Tais remissões de castigos, por vezes muito severos, eram praticadas
desde o séc. VII. A comutação do castigo em penas pecuniárias era conforme às
regras de remissão do Direito Romano. Ademais, costumava-se justificar o
costume mediante a doutrina desenvolvida por Alexandre de Halles no séc. XIII,
o Thesaurus Meritorum, ou seja, a acumulação num tesouro
da Igreja das expiações supérfluas dos Santos. Numa palavra, a prática das
indulgências era uma legítima concessão da Igreja ao ambiente cultural da
sociedade, em ordem ao progresso da Cristianização. O abuso inicia-se com a
incompreensão popular das indulgências como remissão da culpa e não
exclusivamente como remissão do castigo temporal, em particular com a
compreensão das indulgências plenárias como remissão da culpa futura. Em termos
populares, as indulgências eram um bilhete para o céu sendo certo que, para
recolher benefícios, a Igreja não contrariava convenientemente esta explicação.
No início do séc. XVI, o
sistema envolvia vastas somas de dinheiro e de interesses financeiros
internacionais, agravados pelas circunstâncias de 1517. Para Roma, a venda
tornara-se uma fonte de rendimentos regulares e extraordinários. Em 1510, Júlio
II lançara a Indulgência do Jubileu, sobretudo para custear a nova basílica de
São Pedro. A venda fora iniciada em Magdeburgo em 1515. O responsável
eclesiástico local era Alberto de Branderburgo, arcebispo de Magdeburgo,
Maiença e Halberstadt. 50% do produto da venda eram para os cofres dos Fuegger
que tinham adiantado a Alberto a soma necessária para a compra quer dos
bispados quer da dispensa pontifícia que lhe permitia a acumulação de cargos.
Aliás, os agentes dos Függer acompanhavam in loco o
comissário das vendas, o dominicano Tetzel. E é nesta rede de alta finança que
rebenta a afixação das 95 teses Acerca do Poder e Eficácia das
Indulgências. As teses são um debate académico em latim, semelhante
a tantas outras disputationes universitárias
da época. Mas insistiam que as indulgências não compram o castigo divino; não
abarcam os mortos do Purgatório; e não são justificadas pelo thesaurus meritorum pois só o Espírito divino pode
perdoar.
A explosão espalha-se a ritmo
veloz. Em duas semanas surge a tradução alemã das teses na Imprensa
da Universidade de Wittenberg Um mês depois Lutero é, para surpresa sua,
uma figura europeia. A venda de indulgências decai. O arcebispo de Magdeburgo
queixa-se a Roma. A Cúria ordena ao importuno monge agostinho que se cale.
Tetzel, o comissário das indulgências, publica contra-teses. Eck ataca Lutero;
este dá a réplica. O Inquisidor Mazzolini escreve Acerca do Poder Pontifício. No capítulo de 1518 em
Heidelberg, os Agostinhos discutem a questão e o monge de Wittenbegr responde-lhes
por escrito: é instado a ir a Roma. Desce à liça o Eleitor da Saxónia que
considera haver uma afronta a um professor da sua Universidade, além de que a
Casa de Brandenburgo ocupara bispados tradicionalmente atribuídos a membros da
Casa da Saxónia e que ele nem sequer autorizara a venda de indulgências nos
seus domínios. O Papa Leão X revoga a convocação de Lutero a Roma pois não
convinha ter o Eleitor da Saxónia por inimigo na eleição, já muito próxima, do
Imperador da Alemanha; determina que o monge compareça perante o Cardeal
Cajetanus na Dieta de Augsburgo. A entrevista com o legado do papa corre mal e
Lutero escreve que o tentaram silenciar. Pouco depois, o camerlengo papal Von
Miltitz obtém de Lutero a promessa de silêncio desde que o não atacassem. Mas
Eck volta de novo à carga, agora com a questão da Igreja Grega, provocando a já
referida disputa de Leipzig em 1519. A guerra de panfletos e sermões continua
com escritos de ambas as partes. Surge a bula papal Exurge Domine queimada por Lutero em Dezembro de
1520. Em três anos, o episódio desenvolvera-se numa revolução nacional-cristã
da Alemanha contra Roma tornando quase impossível qualquer compromisso. O ritmo
vertiginoso dos acontecimentos impediu a ponderação necessária para resolver questões
doutrinárias, feriu todos os sentimentos possíveis e imagináveis e preparou o
cisma.
BIBLIOGRAFIA:
Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6
Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923
Nenhum comentário:
Postar um comentário