Presbíteros |
Tradução e
abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996
§ 5 O Apelo à Nobreza cristã da Nação alemã
Escrito em 1520, An den christlichen Adel deutscher Nation von des christlichen
Standes Besserung é uma teoria geral da sociedade cristã,
articulada em uma introdução doutrinária, uma lista de queixas e uma longa
lista de sugestões de reforma com 27 artigos. O título fala da melhoria
do estado ou estamento cristão.
O estado espiritual corresponde ao clero, o temporal à nobreza e o estado
cristão ao povo, desprovido de autoridade particular. Por outro lado, o povo é
a Igreja e a Nobreza deve ajudá-lo uma vez que o clero não parece disposto a
tal. Pressupôe-se que existe uma pluralidade de estados cristãos na
cristandade, entre eles a Nação alemã. (Die Not und Beschwerung,die
alle Staendes der Christenheit zuvor Deutschland druckt…“. Uma vez que
que a cristandade se articula em estados a que aplica o termo Igreja e Nação,a melhoria do christlich Stand deve
abranger a reforma do dogma, ritual e constituição da Igreja Universal, a
reforma da Igreja Alemã no sentido de obter maior autonomia à maneira galicana
e ainda reformas sociais na Alemanha.
De acordo com a Introdução, numa sociedade cristã, a distinção entre
poderes temporal e espiritual só se deve referir a ofícios; não acarreta uma
diferença de estatuto espiritual. Por um lado, isto implica que devem cessar as
usurpações do poder espiritual, conforme preceitua o princípio gelasiano de
separação de poderes. A autoridade temporal tem um estatuto carismático e já
Hincmar de Reims integrara a realeza monárquica na hierarquia dos ofícios
carismáticos do Corpo Místico de Cristo. Parece apenas uma reafirmação deste
princípio medieval da autoridade do poder temporal. Até aqui, a doutrina está
contra o status quo, mas com uma orientação conservadora. A
doutrina torna-se revolucionária mediante a extensão das funções espirituais no
Corpo cristão. Quem sustentar que o ofício de governar é inferior ao
eclesiástico deveria aceitar também que sapateiros, ferreiros, alfaiates,
cozinheiros, camponeses e criados eram demasiado baixos para fornecer papas,
bispos, padres e monges com sapatos, roupas, casas, comida, bebida e bens.
Todos têm uma função carismática.
As considerações muito
espraiadas da obra cristalizam em três princípios que são como que uma âncora
na doutrinação torrencial e confusa: 1) Sacerdócio universal de todos os
cristãos; 2) Igualdade carismática de todas as funções no corpo cristão; 3)
Hierarquia de ofícios. Extrai-se ainda o corolário de que o sacerdócio
universal confere a cada indivíduo a autoridade para interpretar as Escrituras,
o que implica desautorizar o magistério da Igreja e a autoridade pontifícia em
questões de fé. Ninguém se deve arrogar o comando da comunidade nem deve
abdicar da liberdade de julgar, como se prova por I Cor 2:15 e II Cor. 3:17.
O que mais surpreende é a
incapacidade do doutrinário em prever as consequências das suas doutrinas. Ao
substituir a concentração da infalibilidade eclesial, fazendo de cada cristão
um “Papa”, abria a porta a intermináveis disputas. O apelo tinha sido usado por
Bonifácio VIII para suportar a sua autoridade de homem espiritual sobre os
meros psychici; agora o apelo é dirigido ao homem da rua e
conduz à guerra de todos contra todos. É difícil aceitar que Lutero ficasse
surpreendido quando em 1521 os seus ensinamentos são seguidos à letra por
Thomas Munzer em Zwickau. O processo hermenêutico dos novos profetas é óbvio. A
fé substitui as Escrituras: o lógos que
inspirou as Escrituras é distinto da palavra escrita; a posse direta do logos é suficiente para o profeta inspirado. O
profeta de Zwickau “falava com Deus” e dispensava outras fontes. Carlstadt
pediu aos estudantes que fossem para casa ganharem o pão com o suor do seu
rosto porque os profetas providenciariam os conhecimentos. Os estudantes não se
fizeram rogados e os homens das ruas continuaram a profetizar. Apenas a atitude
anti-filosófica explica a irresponsabilidade em não prever que o princípio da
autonomia da interpretação das Escrituras acarreta a anarquia interpretativa.
Lutero avaliava a sua doutrina como um regresso à tradição das Escrituras
contra as obscuridades da Escolástica. Tal como Erasmo, estava cego pelo ódio
contra Aristóteles e julgava que liquidar a filosofia seria possibilitar a
compreensão simples e natural das Escrituras. Esta atitude irá marcar toda a
cultura moderna e faz refletir no facto histórico que o termo intelectual denota os indivíduos que odeiam o
paciente trabalho filosófico do intelecto.
Não é casual o modo como o §
25 da obra projeta a reforma do ensino das Universidades e das escolas. As
universidades tinham-se tornado em gymnasia Graecae gloriae.
O “cego mestre pagão” Aristóteles, “essa praga que Deus nos enviou
devido aos nossos pecados” deveria ser eliminado do ensino. Dele
apenas deveriam permanecer a Lógica, Retórica e a Poética para o
ensino do discurso e da pregação. Além disso ensinar-se-ia Latim, Grego,
Hebreu, Matemáticas e História. As Faculdade de Direito deveriam eliminar o
Direito Romano e Canónico. As Faculdades de Teologia deveriam começar o ensino
pelos Livro dos Provérbios e aplicar-se depois ao estudo
dos textos Bíblicos. A Patrística serviria só como introdução. Aliás, a
Universidade bem poderia fazer doutores; doutores de teologia só o Espírito os
poderia criar. O acesso às universidades deveria ser restrito: “receio que as escolas superiores sejam portas abertas para o inferno
“.
O anti-filosofismo é uma
atitude profundamente anticultural. Poderá não concordar com sectarismos, como
se comprova pelo seu apelo contra os camponeses (um escrito habitualmente
interpretado como uma fraqueza momentânea). Mas pretende efetivamente criar uma
nova ordem social e fica admirado quando indivíduos radicais o ultrapassam no
trabalho de destruição. “So haben wir es nicht gemeint“,
eis a situação do aprendiz de feiticeiro que quer resolver complicados
problemas intelectuais e sociais com uma destruição limitada mas que assiste ao
desencadeamento de forças que não controla.
Posteriormente Melanchton procurou colmatar
as brechas anti-filosóficas do reformador, criando uma Escolástica protestante,
tal como Calvino com a Institutio. Mas para
Lutero nada se poderia sobrepor à grande tarefa de reformar a Alemanha, ou
seja, a criação de uma sociedade nacional-cristã que integraria a sociedade universal
cristã. Como a sociedade universal era a Igreja, que não deveria ser abolida, a
reforma da Igreja tornava-se indispensável, por muita confusão e cisma que
causasse na Igreja universal.
No que se refere à reforma
social, os artigos 1-13 do Apelo à Nobreza lidam
com a autonomia da área nacional dentro do estado universal cristão. É advogada
a proibição de pagamento anuais a Roma e a investidura de estrangeiros em
cargos nacionais; Roma não deveria confirmar os bispos; os casos litigiosos
deveriam ser julgados em tribunais alemães; Roma não deveria apoderar-se de
feudos: os casus reservati deveriam ser
abolidos; o pontífice deveria entregar os feudos dos Estados Papais, (“tirar a mão da sopa “). O art.12 reclama a abolição das
indulgências e das peregrinações a Roma e o art.13 a redução dos mosteiros de
ordens mendicantes a 10% dos atuais e proibição de pregar e confessar para as
restantes ordens. Os artigos 14-23 atacam as excrescências da vida religiosa e
reclamam a reforma dos costumes.14) O celibato é secundário para a escolha do
bom pastor; 15) A disciplina nos conventos deve ser reformada. 16) Contra o
abuso das missas de finados. 17) Contra o abuso dos interditos. 18) Abolição de
dias feriados. 19) Abolição de proibições e dispensas para casamentos e de
jejuns: “Mandam-nos comer óleo com o qual não limpariam os sapatos e depois
vendem-nos licenças para comermos manteiga “, tema recorrente
das Butterbriefe. 20 Contra a exploração comercial das
peregrinações; 21 Contra o peditório organizado 22.23 Contra missa votivas e
abusos vários. Os últimos artigos, 24-27, tratam de questões políticas e
sociais. No art.24, Lutero não se pronuncia sobre os Irmãos Morávios mas acha
que Jan Huss jamais deveria ter sido queimado. O art. 25 sobre as Universidades
foi já referido. O art.26 é significativo para a visão de uma história autónoma
profana, pois ataca a suserania papal sobre o imperador. Roma morreu há mil
anos e não deve continuar a ensombrar o presente. A Translatio imperii não é um título legítimo de
poder e o império do Ocidente assenta num ato de violência. Deus tem em tão
pouco apreço o poder, que por vezes o confere aos criminosos e nada de grande
há em continuar Roma. Mas uma vez que o império existe, deve ser governado por
um alemão. O art.27 aborda as reformas na esfera alemã e sugere pragmáticas
contra o luxo e a usura, Zinskauf. São
condenados financeiros como os Fugger que praticam juros de 20% a 100% e que
acumulam riquezas em excesso. Por outro lado, o povo alemão come em excesso, o
que, além de ser um vício é um comportamento antieconômico. A autoridade
secular terá de reformar todos estes maus hábitos.
A análise do Apelo, que é simultaneamente um catálogo dos males do
tempo e um manifesto político mostra claramente o contexto em que decorre a ação
e ajuda a destruir os clichés acerca da Reforma, em particular a suposição que
a Igreja é o objeto da Reforma. A Reforma resultou no cisma da Igreja mas não
começou por aí. Lutero originou o Protestantismo mas era, afinal, um Católico
revoltado que tinha por objetivo mudar o estado cristão. Reformar, para ele, é
reduzir os juros, acabar com as indulgências, mudar a sociedade, a Igreja e a
sociedade europeia. Um programa destes levaria séculos e muitas guerras e
revoluções para ser levado a cabo. As guerras e as revoluções acabaram por vir.
Mas que pensaria Lutero da sociedade reformada que emergiu?
BIBLIOGRAFIA:
Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6
Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923
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