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segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

A Idade Moderna – De Erasmo a Nietzsche (Parte 4/6)

Presbíteros

A Idade Moderna
De Erasmo a Nietzsche
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
por Eric Voegelin

Tradução e abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996

§ 5 O Apelo à Nobreza cristã da Nação alemã

Escrito em 1520, An den christlichen Adel deutscher Nation von des christlichen Standes Besserung é uma teoria geral da sociedade cristã, articulada em uma introdução doutrinária, uma lista de queixas e uma longa lista de sugestões de reforma com 27 artigos. O título fala da melhoria do estado ou estamento cristão. O estado espiritual corresponde ao clero, o temporal à nobreza e o estado cristão ao povo, desprovido de autoridade particular. Por outro lado, o povo é a Igreja e a Nobreza deve ajudá-lo uma vez que o clero não parece disposto a tal. Pressupôe-se que existe uma pluralidade de estados cristãos na cristandade, entre eles a Nação alemã. (Die Not und Beschwerung,die alle Staendes der Christenheit zuvor Deutschland druckt…“. Uma vez que que a cristandade se articula em estados a que aplica o termo Igreja e Nação,a melhoria do christlich Stand deve abranger a reforma do dogma, ritual e constituição da Igreja Universal, a reforma da Igreja Alemã no sentido de obter maior autonomia à maneira galicana e ainda reformas sociais na Alemanha.

De acordo com a Introdução, numa sociedade cristã, a distinção entre poderes temporal e espiritual só se deve referir a ofícios; não acarreta uma diferença de estatuto espiritual. Por um lado, isto implica que devem cessar as usurpações do poder espiritual, conforme preceitua o princípio gelasiano de separação de poderes. A autoridade temporal tem um estatuto carismático e já Hincmar de Reims integrara a realeza monárquica na hierarquia dos ofícios carismáticos do Corpo Místico de Cristo. Parece apenas uma reafirmação deste princípio medieval da autoridade do poder temporal. Até aqui, a doutrina está contra o status quo, mas com uma orientação conservadora. A doutrina torna-se revolucionária mediante a extensão das funções espirituais no Corpo cristão. Quem sustentar que o ofício de governar é inferior ao eclesiástico deveria aceitar também que sapateiros, ferreiros, alfaiates, cozinheiros, camponeses e criados eram demasiado baixos para fornecer papas, bispos, padres e monges com sapatos, roupas, casas, comida, bebida e bens. Todos têm uma função carismática.

As considerações muito espraiadas da obra cristalizam em três princípios que são como que uma âncora na doutrinação torrencial e confusa: 1) Sacerdócio universal de todos os cristãos; 2) Igualdade carismática de todas as funções no corpo cristão; 3) Hierarquia de ofícios. Extrai-se ainda o corolário de que o sacerdócio universal confere a cada indivíduo a autoridade para interpretar as Escrituras, o que implica desautorizar o magistério da Igreja e a autoridade pontifícia em questões de fé. Ninguém se deve arrogar o comando da comunidade nem deve abdicar da liberdade de julgar, como se prova por I Cor 2:15 e II Cor. 3:17.

O que mais surpreende é a incapacidade do doutrinário em prever as consequências das suas doutrinas. Ao substituir a concentração da infalibilidade eclesial, fazendo de cada cristão um “Papa”, abria a porta a intermináveis disputas. O apelo tinha sido usado por Bonifácio VIII para suportar a sua autoridade de homem espiritual sobre os meros psychici; agora o apelo é dirigido ao homem da rua e conduz à guerra de todos contra todos. É difícil aceitar que Lutero ficasse surpreendido quando em 1521 os seus ensinamentos são seguidos à letra por Thomas Munzer em Zwickau. O processo hermenêutico dos novos profetas é óbvio. A fé substitui as Escrituras: o lógos que inspirou as Escrituras é distinto da palavra escrita; a posse direta do logos é suficiente para o profeta inspirado. O profeta de Zwickau “falava com Deus” e dispensava outras fontes. Carlstadt pediu aos estudantes que fossem para casa ganharem o pão com o suor do seu rosto porque os profetas providenciariam os conhecimentos. Os estudantes não se fizeram rogados e os homens das ruas continuaram a profetizar. Apenas a atitude anti-filosófica explica a irresponsabilidade em não prever que o princípio da autonomia da interpretação das Escrituras acarreta a anarquia interpretativa. Lutero avaliava a sua doutrina como um regresso à tradição das Escrituras contra as obscuridades da Escolástica. Tal como Erasmo, estava cego pelo ódio contra Aristóteles e julgava que liquidar a filosofia seria possibilitar a compreensão simples e natural das Escrituras. Esta atitude irá marcar toda a cultura moderna e faz refletir no facto histórico que o termo intelectual denota os indivíduos que odeiam o paciente trabalho filosófico do intelecto.

Não é casual o modo como o § 25 da obra projeta a reforma do ensino das Universidades e das escolas. As universidades tinham-se tornado em gymnasia Graecae gloriae. O “cego mestre pagão” Aristóteles, “essa praga que Deus nos enviou devido aos nossos pecados” deveria ser eliminado do ensino. Dele apenas deveriam permanecer a Lógica, Retórica e a Poética para o ensino do discurso e da pregação. Além disso ensinar-se-ia Latim, Grego, Hebreu, Matemáticas e História. As Faculdade de Direito deveriam eliminar o Direito Romano e Canónico. As Faculdades de Teologia deveriam começar o ensino pelos Livro dos Provérbios e aplicar-se depois ao estudo dos textos Bíblicos. A Patrística serviria só como introdução. Aliás, a Universidade bem poderia fazer doutores; doutores de teologia só o Espírito os poderia criar. O acesso às universidades deveria ser restrito: “receio que as escolas superiores sejam portas abertas para o inferno “.

O anti-filosofismo é uma atitude profundamente anticultural. Poderá não concordar com sectarismos, como se comprova pelo seu apelo contra os camponeses (um escrito habitualmente interpretado como uma fraqueza momentânea). Mas pretende efetivamente criar uma nova ordem social e fica admirado quando indivíduos radicais o ultrapassam no trabalho de destruição. “So haben wir es nicht gemeint“, eis a situação do aprendiz de feiticeiro que quer resolver complicados problemas intelectuais e sociais com uma destruição limitada mas que assiste ao desencadeamento de forças que não controla. Posteriormente       Melanchton procurou colmatar as brechas anti-filosóficas do reformador, criando uma Escolástica protestante, tal como Calvino com a Institutio. Mas para Lutero nada se poderia sobrepor à grande tarefa de reformar a Alemanha, ou seja, a criação de uma sociedade nacional-cristã que integraria a sociedade universal cristã. Como a sociedade universal era a Igreja, que não deveria ser abolida, a reforma da Igreja tornava-se indispensável, por muita confusão e cisma que causasse na Igreja universal.

No que se refere à reforma social, os artigos 1-13 do Apelo à Nobreza lidam com a autonomia da área nacional dentro do estado universal cristão. É advogada a proibição de pagamento anuais a Roma e a investidura de estrangeiros em cargos nacionais; Roma não deveria confirmar os bispos; os casos litigiosos deveriam ser julgados em tribunais alemães; Roma não deveria apoderar-se de feudos: os casus reservati deveriam ser abolidos; o pontífice deveria entregar os feudos dos Estados Papais, (“tirar a mão da sopa “). O art.12 reclama a abolição das indulgências e das peregrinações a Roma e o art.13 a redução dos mosteiros de ordens mendicantes a 10% dos atuais e proibição de pregar e confessar para as restantes ordens. Os artigos 14-23 atacam as excrescências da vida religiosa e reclamam a reforma dos costumes.14) O celibato é secundário para a escolha do bom pastor; 15) A disciplina nos conventos deve ser reformada. 16) Contra o abuso das missas de finados. 17) Contra o abuso dos interditos. 18) Abolição de dias feriados. 19) Abolição de proibições e dispensas para casamentos e de jejuns: “Mandam-nos comer óleo com o qual não limpariam os sapatos e depois vendem-nos licenças para comermos manteiga “, tema recorrente das Butterbriefe. 20 Contra a exploração comercial das peregrinações; 21 Contra o peditório organizado 22.23 Contra missa votivas e abusos vários. Os últimos artigos, 24-27, tratam de questões políticas e sociais. No art.24, Lutero não se pronuncia sobre os Irmãos Morávios mas acha que Jan Huss jamais deveria ter sido queimado. O art. 25 sobre as Universidades foi já referido. O art.26 é significativo para a visão de uma história autónoma profana, pois ataca a suserania papal sobre o imperador. Roma morreu há mil anos e não deve continuar a ensombrar o presente. A Translatio imperii não é um título legítimo de poder e o império do Ocidente assenta num ato de violência. Deus tem em tão pouco apreço o poder, que por vezes o confere aos criminosos e nada de grande há em continuar Roma. Mas uma vez que o império existe, deve ser governado por um alemão. O art.27 aborda as reformas na esfera alemã e sugere pragmáticas contra o luxo e a usura, Zinskauf. São condenados financeiros como os Fugger que praticam juros de 20% a 100% e que acumulam riquezas em excesso. Por outro lado, o povo alemão come em excesso, o que, além de ser um vício é um comportamento antieconômico. A autoridade secular terá de reformar todos estes maus hábitos.

A análise do Apelo, que é simultaneamente um catálogo dos males do tempo e um manifesto político mostra claramente o contexto em que decorre a ação e ajuda a destruir os clichés acerca da Reforma, em particular a suposição que a Igreja é o objeto da Reforma. A Reforma resultou no cisma da Igreja mas não começou por aí. Lutero originou o Protestantismo mas era, afinal, um Católico revoltado que tinha por objetivo mudar o estado cristão. Reformar, para ele, é reduzir os juros, acabar com as indulgências, mudar a sociedade, a Igreja e a sociedade europeia. Um programa destes levaria séculos e muitas guerras e revoluções para ser levado a cabo. As guerras e as revoluções acabaram por vir. Mas que pensaria Lutero da sociedade reformada que emergiu?

BIBLIOGRAFIA:

Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6

Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923

Fonte: https://www.presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF