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quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

A Idade Moderna – De Erasmo a Nietzsche (Parte 5/6)

Presbíteros

A Idade Moderna
De Erasmo a Nietzsche
ESTUDOS DE IDEIAS POLÍTICAS
por Eric Voegelin

Tradução e abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996

§ 6 A Justificação exclusiva pela Fé

Atente-se na personalidade do “reformador”. Foi influente Administrador da ordem dos Agostinhos, professor em Wittemberg, político eclesiástico ativo, prolífico comentador das Escrituras e a sua tradução da Bíblia cria praticamente o alemão moderno comum. Os seus sermões, conversações e correspondência enchem volumes. É conhecida a sua sensibilidade à natureza e aos animais, a sua obra de músico e de poeta, a irritabilidade e a necessidade de exteriorizar os seus sentimentos. No seu temperamento e na sua obra predominam a espontaneidade lírica. As suas inconsistências radicam na sua ansiedade. Esta atitude fundamental de ansiedade e incerteza de salvação veio a exprimir-se na doutrina da sola fide que retrata o cerne da sua antropologia anti-filosófica e que assenta na censura à justificação pelas obras e à doutrina da fides caritate formata. Sendo mais conhecido o primeiro aspecto, o segundo é mais importante e merece uma análise algo detalhada.

Na Summa Contra Gentiles, cap.116, S. Tomás de Aquino define a essência da fé como amicitia entre Deus e o homem. A fé carece de uma componente intelectual porquanto é impossível amar a Deus sem captar intelectualmente a visão beatífica do summum bonum como finalidade da vida humana. Para alcançar tal desiderato, é necessário o complemento deliberado do amor pois é pela vontade que o homem confirma o que apreendeu pelo intelecto. A relação de amicitia é mútua e livre. Não depende só do impulso humano mas supõe também a atuação da graça divina que eleva por forma sobrenatural a natureza humana. A transferência e o uso analógico do termo aristotélico f orma, permite a Tomás descrever a infusão de graça como a fé formada pela caridade, ou seja como a realidade da existência orientada para Deus.

A doutrina da fides caritate formata é uma obra prima de descrição empírica que permite a Tomás estabelecer uma tipologia da fé, com tipos plenos e deficientes. A fé pode apenas ser uma orientação intelectual sem amor; ou um impulso sentimental desacompanhado da graça; ou uma emoção utilitária marcada pela ansiedade e medo das consequências. Mas nada disto é a fé cristã que é uma cultura integral da vida. Ora, um dos pontos culminantes da filosofia e da teologia helénicas e não-cristãs, o movimento de transcendência para o realissimum que atrai o homem movido pelo impulso de Eros, é ainda um movimento unilateral da alma. A participação na ideia leva à realização da alma mas essa participação não é uma relação mútua. O homem, segundo Platão, procura a divindade; mas a divindade não se inclina graciosamente para aceitar a declaração do amor humano. Não existe um equivalente helénico para uma afirmação como a I João,4, “Deus é Amor “. O clímax medieval de interpenetração do cristianismo com a cultura, da fé com a razão, é talvez a razão de ser do Ocidente e o critério pelo qual se deve avaliar o decurso da história intelectual. E esse curso tem por tema a desintegração do núcleo doutrinário da amicitia entre Deus e o homem. Essa desintegração degenera em revolta contra Deus como base da ordem imanente da sociedade. E a progressão de dogmas da salvação humana hermeticamente fechada à realidade transcendente prenunciam o fim da civilização ocidental.

Neste contexto, a doutrina da justificação pela fé surge como um ataque deliberado à amicitia e como o início de um processo de desintegração espiritual, como se observa no escrito Von der Freiheit eines Christenmenschen de 1520. A primeira parte trata de como, através da fé, o cristão pode libertar a alma da natureza que a aprisiona. A segunda lida com a subserviência do cristão à existência corpórea. A obra abre com uma antinomia: “O cristão é o senhor livre de todas as coisas a não está submetido a ninguém, Um cristão é o servo de todas as coisas e está submetido a todos “. A fé liberta o cristão da corrupção da natureza. Mas ao traduzir a expressão paulina de Romanos 1;17, Justus autem ex fide vivit“, Lutero acrescenta o apenas: “Um cristão justo vive apenas pela fé“. Por que razão se pode afirmar que só a fé justifica? A Bíblia está dividida em duas partes; as leis do Antigo Testamento e as promessas do Novo. Aos que vivem sob a lei, as Escrituras ordenam para executar várias boas obras. Mas uma vez que a lei não confere a força para as executar, os mandamentos instilam no homem uma consciência da sua fraqueza. Se medirmos as nossas ações pelas tábuas da lei, perdemos confiança em nós, experimentamos a ansiedade, o medo de danação e finalmente, o desespero. Trata-se, afinal, de uma autobiografia. O homem que desespera fica pronto para receber a promessa: “Se te queres libertar das tuas paixões malvadas e pecados…crê em Cristo; crê e obterás; não creias e não obterás “. A promessa é a palavra revelada de Deus. Através do ato de fé, a “virtude da palavra “, die Tugend des Worts torna-se uma propriedade da alma. Tudo o que o cristão requer é a fé pois o cumprimento dos mandamentos não é necessário ao justo. E ao libertar o homem dos mandamentos, a fé livra-o da angústia que decorre da impossibilidade de cumprir a lei.

Transparece nesta doutrina uma luta pessoal, tal como a conhecemos de outras fontes. A tentativa de obedecer à lei; o desespero do perfeccionista que não compreende os problemas do pecado; o medo da danação; a ansiedade de aniquilação; a convicção de que a natureza humana é irreparavelmente corrupta e que a salvação provém da descarga do pecado em Cristo. O tom poderá ser optimista mas a experiência espiritual é trágica. A descarga do pecado mediante a fé é apenas a convicção de salvação que consola a alma; esta fé não redime a natureza caída nem eleva o homem à amicitia com Deus através da Graça, como se comprova pela famosa notória expressão pecca fortiter, inserida na carta a Melanchton de 1 Agosto de 1521: “Sê um pecador e peca ainda com mais força (pecca fortiter) mas ainda mais fortemente procura ter fé e alegria em Jesus Cristo que é o conquistador do pecado, da morte e do mundo “. Este pecca fortiter não é decerto um apelo ao deboche. Mas exprime a resignação de que a natureza humana não pode ser redimida. A certeza da salvação através da fé, “mesmo que fornicássemos e assassinássemos mil vezes ao dia” é um prenúncio do que está para vir. A relação do homem para com Deus é de confiança. A amicitia degenerou no sentimento de confiança mútua, característico dos comportamentos da classe média. Tais fórmulas permitem a qualquer radical e sectário reclamar que está habitado pelo Espírito. Pessoalmente, Lutero permaneceu firme na convicção que uma nova terra e novos céus estariam além do mundo. Nada que o homem fizesse na esfera natural poderia afetar a salvação da alma, positiva ou negativamente: e a justificação pela fé abrange só a “alma”: não afeta o velho Adão.

No que se refere à segunda parte da antinomia, sobre a esfera natural, surge primeiro a afirmação que só a fé salva; as obras nada contribuem. Mas como, apesar de tudo, o homem vive neste mundo e governa pelo menos o seu corpo e embora tais comportamentos não façam o homem mais justo, recomenda-se a ascese e a rotina do trabalho diário. Mas então por que razão ser justo? O justo deve viver justamente por amor do Deus que o salvou. Este tipo de amor de Deus segue-se à justificação pela fé; não é o amor da amicitia entre Deus e o homem. É antes uma gratidão, como se depreende do comentário a Gálatas: “Hoc sola fides apprehendit, non caritas quae quidem fidem sequi debt, sed ut gratitudo quaedam“. Enfim, surge uma especulação sobre o paraíso que considera não ser um lugar de ócio, mas um espaço no qual o homem tem obrigações sociais a cumprir. Em conclusão, “Um cristão não vive sózinho, mas em Cristo e com o seu próximo; em Cristo pela fé, e com o seu próximo através do amor “.

Tais sugestões acerca da esfera humana de existência são um conjunto de argumentos mais que uma doutrina, mas têm profundas consequências antropológicas. A ruptura profunda entre a alma e a existência corpórea adquiriu um movimento próprio na filosofia moderna de Descartes a Kant. E já Lutero concebe a justiça da alma de acordo com uma moralidade que ignora as condições concretas de existência. Está à vista o desenvolvimento da sua visão de natureza profana corrupta para uma psicologia das motivações que concebe a consciência sem orientação para um bem supremo. Esta é uma das marcas luteranas na consciência europeia. A justificação pela fé abrange apenas a alma; o homem e a sociedade não são transfigurados de modo fantasista num novo reino histórico. Belo realismo. Mas quando a fé se quebra e ao pseudo-realismo luterano se junta o milenarismo marxista, o resultado é muito diferente. Se o mundo está corrompido sem salvação; e se o reino da liberdade não pode ser a liberdade cristã da alma, a ser aperfeiçoada num outro mundo, ou a transfiguração gnóstica do espírito que mora no homem. então mais não resta do que justificar o homem através da revolução. O sola fide transforma-se no “Só a revolução vos salva” de Marx.

A inconsistência teórica, contudo, permitia a Lutero ressalvar a ideia de um paraíso terrestre. Polemiza contra a justificação pelas boas obras. Na realidade, jamais cristão algum defendera essa posição mesmo que considerasse o seu cristianismo quase perfeito por assentar no cumprimento de certos requisitos. Considera que na justificação não existe obra da lei, nem existe amor: “Se a nossa fé fosse formada pelo amor, então eu teria de tomar em consideração as nossas obras “. A intenção parece ser a de restringir o amor a um princípio imanente constitutivo da ordem social. Em Acerca das Boas Obras escreve que se uma obra é boa ou má não depende de critérios éticos: “Obras más jamais fizeram um homem mau; o malvado é que faz as más obras “. A sociedade dos sacerdotes universais, justificados na sua existência natural em Cristo e amando o próximo habita o reino paradisíaco de amor transfigurador. E assim a doutrina das boas obras, suporta a ideia luterana do estado cristão. Todas as ocupações têm o seu lugar na sociedade cristã. Tal doutrina, sobretudo após a intensificação de Calvinismo, tornar-se-á a grande força motora das sociedades Protestantes para a realização do paraíso progressivo. É, aliás, uma concepção conservadora, não-milenarista e não-revolucionária. Com a atrofia da fé, tal concepção degenera na prática em sociedade de bem-estar sem cultura do espírito nem do intelecto. Se a frágil ligação da fé Cristã for dispensada, o amor imanente torna-se no altruísmo de Comte e na filantropia dos seus sucessores positivistas.

Que aconteceu à ética? Admitindo ser correto que o justo procede sempre bem, não será excessivo afirmar que as obras iníquas não fazem um homem malvado? E que só quem age por gratidão para com Deus e não por resposta à graça divina se salva? E os pagãos não tinham virtudes? Agostinho era mais tolerante ao aceitar as virtudes dos romanos e Paulo dizia que Deus se revelara aos pagãos através da lei da natureza. A Lutero só interessa o ponto de vista pessoal. Este obscurantismo individualista desce sobre as problemáticas de toda a Ética, desde Aristóteles a Tomás. A decisão pessoal tudo resolve: “Cada um pode notar e dizer a si mesmo quando pratica o bem e o mal. Se o coração confiar que agrada a Deus, a obra é boa, mesmo que se trate de uma coisa tão pequena quanto colher uma palha. Se a confiança estiver ausente, ou se ele duvida, a obra não é boa “. Neste coração que tudo resolve, vemos prenunciada a consciência de Kant. Mas a ética da consciência é surpreendentemente conformista e conservadora. Pode ser preenchida com a aceitação das convenções e a ordem concreta da sociedade. O coração até sabe que uma taxa de juro superior 20% não é cristã.

BIBLIOGRAFIA:

Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6

Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923

Fonte: https://www.presbiteros.org.br/

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Pe. Manuel Pérez Candela

Pe. Manuel Pérez Candela
Pároco da Paróquia Nossa Senhora da Imaculada Conceição - Sobradinho/DF