Presbíteros |
Tradução e
abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996
§ 6 A Justificação exclusiva pela Fé
Atente-se na personalidade do
“reformador”. Foi influente Administrador da ordem dos Agostinhos, professor em
Wittemberg, político eclesiástico ativo, prolífico comentador das Escrituras e
a sua tradução da Bíblia cria praticamente o alemão moderno comum. Os seus
sermões, conversações e correspondência enchem volumes. É conhecida a sua
sensibilidade à natureza e aos animais, a sua obra de músico e de poeta, a
irritabilidade e a necessidade de exteriorizar os seus sentimentos. No seu
temperamento e na sua obra predominam a espontaneidade lírica. As suas
inconsistências radicam na sua ansiedade. Esta atitude fundamental de ansiedade
e incerteza de salvação veio a exprimir-se na doutrina da sola fide que retrata o cerne da sua antropologia
anti-filosófica e que assenta na censura à justificação pelas obras e à
doutrina da fides caritate formata. Sendo mais
conhecido o primeiro aspecto, o segundo é mais importante e merece uma análise
algo detalhada.
Na Summa Contra Gentiles, cap.116, S. Tomás de Aquino
define a essência da fé como amicitia entre
Deus e o homem. A fé carece de uma componente intelectual porquanto é
impossível amar a Deus sem captar intelectualmente a visão beatífica do summum bonum como finalidade da vida humana. Para
alcançar tal desiderato, é necessário o complemento deliberado do amor pois é
pela vontade que o homem confirma o que apreendeu pelo intelecto. A relação de
amicitia é mútua e livre. Não depende só do impulso humano mas supõe também a atuação
da graça divina que eleva por forma sobrenatural a natureza humana. A
transferência e o uso analógico do termo aristotélico f orma, permite a Tomás descrever a infusão de graça
como a fé formada pela caridade, ou seja como a realidade da
existência orientada para Deus.
A doutrina da fides caritate formata é uma obra prima de
descrição empírica que permite a Tomás estabelecer uma tipologia da fé, com
tipos plenos e deficientes. A fé pode apenas ser uma orientação intelectual sem
amor; ou um impulso sentimental desacompanhado da graça; ou uma emoção utilitária
marcada pela ansiedade e medo das consequências. Mas nada disto é a fé cristã
que é uma cultura integral da vida. Ora, um dos pontos culminantes da filosofia
e da teologia helénicas e não-cristãs, o movimento de transcendência para
o realissimum que atrai o homem movido pelo impulso
de Eros, é ainda um movimento unilateral da alma. A participação na ideia leva
à realização da alma mas essa participação não é uma relação mútua. O homem,
segundo Platão, procura a divindade; mas a divindade não se inclina
graciosamente para aceitar a declaração do amor humano. Não existe um
equivalente helénico para uma afirmação como a I João,4, “Deus é Amor “. O
clímax medieval de interpenetração do cristianismo com a cultura, da fé com a
razão, é talvez a razão de ser do Ocidente e o critério pelo qual se deve
avaliar o decurso da história intelectual. E esse curso tem por tema a
desintegração do núcleo doutrinário da amicitia entre Deus e o homem. Essa
desintegração degenera em revolta contra Deus como base da ordem imanente da
sociedade. E a progressão de dogmas da salvação humana hermeticamente fechada à
realidade transcendente prenunciam o fim da civilização ocidental.
Neste contexto, a doutrina da
justificação pela fé surge como um ataque deliberado à amicitia e como o início de um processo de
desintegração espiritual, como se observa no escrito Von der Freiheit eines Christenmenschen de 1520. A
primeira parte trata de como, através da fé, o cristão pode libertar a alma da
natureza que a aprisiona. A segunda lida com a subserviência do cristão à
existência corpórea. A obra abre com uma antinomia: “O cristão
é o senhor livre de todas as coisas a não está submetido a ninguém, Um cristão
é o servo de todas as coisas e está submetido a todos “. A fé
liberta o cristão da corrupção da natureza. Mas ao traduzir a expressão paulina
de Romanos 1;17, Justus autem ex fide vivit“, Lutero
acrescenta o apenas: “Um
cristão justo vive apenas pela fé“. Por que razão se pode afirmar
que só a fé justifica? A Bíblia está dividida em duas partes; as leis do Antigo
Testamento e as promessas do Novo. Aos que vivem sob a lei, as Escrituras
ordenam para executar várias boas obras. Mas uma vez que a lei não confere a
força para as executar, os mandamentos instilam no homem uma consciência da sua
fraqueza. Se medirmos as nossas ações pelas tábuas da lei, perdemos confiança
em nós, experimentamos a ansiedade, o medo de danação e finalmente, o
desespero. Trata-se, afinal, de uma autobiografia. O homem que desespera fica
pronto para receber a promessa: “Se te queres libertar das tuas
paixões malvadas e pecados…crê em Cristo; crê e obterás; não creias e não
obterás “. A promessa é a palavra revelada de Deus. Através do ato
de fé, a “virtude da palavra “, die Tugend des Worts torna-se
uma propriedade da alma. Tudo o que o cristão requer é a fé pois o cumprimento
dos mandamentos não é necessário ao justo. E ao libertar o homem dos
mandamentos, a fé livra-o da angústia que decorre da impossibilidade de cumprir
a lei.
Transparece nesta doutrina uma
luta pessoal, tal como a conhecemos de outras fontes. A tentativa de obedecer à
lei; o desespero do perfeccionista que não compreende os problemas do pecado; o
medo da danação; a ansiedade de aniquilação; a convicção de que a natureza humana
é irreparavelmente corrupta e que a salvação provém da descarga do pecado em
Cristo. O tom poderá ser optimista mas a experiência espiritual é trágica. A
descarga do pecado mediante a fé é apenas a convicção de salvação que consola a
alma; esta fé não redime a natureza caída nem eleva o homem à amicitia com Deus através da Graça, como se
comprova pela famosa notória expressão pecca fortiter, inserida na carta a Melanchton de 1
Agosto de 1521: “Sê um pecador e peca ainda com mais força
(pecca fortiter) mas ainda mais fortemente procura ter fé e alegria em Jesus
Cristo que é o conquistador do pecado, da morte e do mundo “.
Este pecca fortiter não é decerto um apelo ao deboche.
Mas exprime a resignação de que a natureza humana não pode ser redimida. A certeza
da salvação através da fé, “mesmo que fornicássemos e
assassinássemos mil vezes ao dia” é um prenúncio do que está para
vir. A relação do homem para com Deus é de confiança. A amicitia degenerou no sentimento de confiança
mútua, característico dos comportamentos da classe média. Tais fórmulas
permitem a qualquer radical e sectário reclamar que está habitado pelo
Espírito. Pessoalmente, Lutero permaneceu firme na convicção que uma nova terra
e novos céus estariam além do mundo. Nada que o homem fizesse na esfera natural
poderia afetar a salvação da alma, positiva ou negativamente: e a justificação
pela fé abrange só a “alma”: não afeta o velho Adão.
No que se refere à segunda
parte da antinomia, sobre a esfera natural, surge primeiro a afirmação que só a
fé salva; as obras nada contribuem. Mas como, apesar de tudo, o homem vive
neste mundo e governa pelo menos o seu corpo e embora tais comportamentos não
façam o homem mais justo, recomenda-se a ascese e a rotina do trabalho diário.
Mas então por que razão ser justo? O justo deve viver justamente por amor do
Deus que o salvou. Este tipo de amor de Deus segue-se à justificação pela fé;
não é o amor da amicitia entre Deus e o homem.
É antes uma gratidão, como se depreende do comentário a Gálatas: “Hoc sola fides apprehendit, non
caritas quae quidem fidem sequi debt, sed ut gratitudo quaedam“.
Enfim, surge uma especulação sobre o paraíso que considera não ser um lugar de
ócio, mas um espaço no qual o homem tem obrigações sociais a cumprir. Em
conclusão, “Um cristão não vive sózinho, mas em Cristo e
com o seu próximo; em Cristo pela fé, e com o seu próximo através do amor
“.
Tais sugestões acerca da
esfera humana de existência são um conjunto de argumentos mais que uma
doutrina, mas têm profundas consequências antropológicas. A ruptura profunda
entre a alma e a existência corpórea adquiriu um movimento próprio na filosofia
moderna de Descartes a Kant. E já Lutero concebe a justiça da alma de acordo
com uma moralidade que ignora as condições concretas de existência. Está à
vista o desenvolvimento da sua visão de natureza profana corrupta para uma
psicologia das motivações que concebe a consciência sem orientação para um bem
supremo. Esta é uma das marcas luteranas na consciência europeia. A justificação
pela fé abrange apenas a alma; o homem e a sociedade não são transfigurados de
modo fantasista num novo reino histórico. Belo realismo. Mas quando a fé se
quebra e ao pseudo-realismo luterano se junta o milenarismo marxista, o
resultado é muito diferente. Se o mundo está corrompido sem salvação; e se o
reino da liberdade não pode ser a liberdade cristã da alma, a ser aperfeiçoada
num outro mundo, ou a transfiguração gnóstica do espírito que mora no homem.
então mais não resta do que justificar o homem através da revolução. O sola fide transforma-se
no “Só a revolução vos salva” de Marx.
A inconsistência teórica,
contudo, permitia a Lutero ressalvar a ideia de um paraíso terrestre. Polemiza
contra a justificação pelas boas obras. Na realidade, jamais cristão algum
defendera essa posição mesmo que considerasse o seu cristianismo quase perfeito
por assentar no cumprimento de certos requisitos. Considera que na justificação
não existe obra da lei, nem existe amor: “Se a nossa fé fosse formada
pelo amor, então eu teria de tomar em consideração as nossas obras “.
A intenção parece ser a de restringir o amor a um princípio imanente
constitutivo da ordem social. Em Acerca das Boas Obras escreve
que se uma obra é boa ou má não depende de critérios éticos: “Obras más jamais fizeram um homem mau; o malvado é que faz as más
obras “. A sociedade dos sacerdotes universais, justificados na sua
existência natural em Cristo e amando o próximo habita o reino paradisíaco de
amor transfigurador. E assim a doutrina das boas obras, suporta a ideia
luterana do estado cristão. Todas as ocupações têm o seu lugar na sociedade
cristã. Tal doutrina, sobretudo após a intensificação de Calvinismo,
tornar-se-á a grande força motora das sociedades Protestantes para a realização
do paraíso progressivo. É, aliás, uma concepção conservadora, não-milenarista e
não-revolucionária. Com a atrofia da fé, tal concepção degenera na prática em
sociedade de bem-estar sem cultura do espírito nem do intelecto. Se a frágil
ligação da fé Cristã for dispensada, o amor imanente torna-se no altruísmo de
Comte e na filantropia dos seus sucessores positivistas.
Que aconteceu à ética?
Admitindo ser correto que o justo procede sempre bem, não será excessivo
afirmar que as obras iníquas não fazem um homem malvado? E que só quem age por
gratidão para com Deus e não por resposta à graça divina se salva? E os pagãos
não tinham virtudes? Agostinho era mais tolerante ao aceitar as virtudes dos
romanos e Paulo dizia que Deus se revelara aos pagãos através da lei da natureza.
A Lutero só interessa o ponto de vista pessoal. Este obscurantismo
individualista desce sobre as problemáticas de toda a Ética, desde Aristóteles
a Tomás. A decisão pessoal tudo resolve: “Cada um pode notar e dizer a si
mesmo quando pratica o bem e o mal. Se o coração confiar que agrada a Deus, a
obra é boa, mesmo que se trate de uma coisa tão pequena quanto colher uma
palha. Se a confiança estiver ausente, ou se ele duvida, a obra não é boa
“. Neste coração que tudo resolve, vemos prenunciada a consciência de Kant. Mas
a ética da consciência é surpreendentemente conformista e conservadora. Pode
ser preenchida com a aceitação das convenções e a ordem concreta da sociedade.
O coração até sabe que uma taxa de juro superior 20% não é cristã.
BIBLIOGRAFIA:
Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6
Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923
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