Presbíteros |
Tradução e
abreviação de M. C. Henriques, Lisboa, Ática, 1996
§ 7 O Princípio do Fim
Em 1520, Lutero atingira o
cume das suas capacidades. A partir de então as circunstâncias obrigaram-no a
escrever cada vez mais e a dizer cada vez menos com tantas modificações que
acabava por contradizer posições anteriores. Já não é a história de uma doutrina
mas a de um homem que está a inaugurar um período de mais de 100 anos de
revoluções e guerras religiosas.Von weltlicher Oberkeit wie
weit man ihr Gehorsam schuldig sei de 1523 é, talvez, a sua
mais detalhada exposição das ideias políticas e que, como o título indica, lida
com a autoridade temporal. Em alguns territórios alemães (Meissen e Baviera por
exemplo) fora proibida a tradução do Novo Testamento e as pessoas intimadas a
entregar os exemplares que possuíam. Aconselha os seus fiéis a desobedecer às
leis e a sofrer como os mártires. Para se justificar expôs a doutrina da
instituição divina da autoridade temporal e a obrigação do cristão em
desobedecer civilmente se a autoridade prevaricasse. A argumentação parte
de Romanos,13,1 e ss., epístola endereçada a uma
comunidade romano-cristã, vivendo sob autoridades pagãs, e a que um pouco de
ordem nas suas más inclinações e atitudes apenas faria bem. No Apelo de 1520, considerara, em continuidade com a
tradição medieval, que a função governamental se tornara uma das funções
carismáticas do corpo místico; o estado cristão coincidia com a nação; a
nobreza alemã podia ser chamada para levar a cabo a reforma nacional-cristã. As
ideias de 1520 eram ainda reforma. Três anos depois tudo mudara. A
individualização da experiência religiosa destruíra o equilíbrio entre os
poderes carismáticos temporal e espiritual. O governante é um não-cristão que
persegue os bons cristãos luteranos. Deve invocar-se a nova autoridade
espiritual contra o poder temporal que se tornou não- cristão. Os fiéis devem
seguir a Bíblia contra a Igreja e seus concílios. O poder espiritual tornara-se
o Anticristo, o temporal era tirânico, o indivíduo estava entregue a si
próprio. Situação insuportável? Mas levou mais de 100 anos a ser estabilizada.
Neste sentido, 1523 é o fim da Idade Média.
Ao destruir-se o equilíbrio
entre autoridades institucionais espiritual e temporal, todos os homens
pertencem quer ao Reich Gottes (os fiéis) quer
ao Reich der Welt cuja espada pune os atos malvados.
Os cristãos não carecem da espada porque vivem em paz; mas devem respeitar o
poder da espada porque é útil ao seu próximo. E assim é possível satisfazer
dois senhorios, o reino de Deus e o reino do Mundo. Infelizmente não é fácil
satisfazer a dois senhores. A civitas Dei e
a civitas terrena de Agostinho não são reinos no
tempo. Na história concreta existe Igreja e império. A Igreja representa
a Civitas Dei mas boa parte dos seus membros
pertencem à civitas terrena. A salvação é um dom divino imperscrutável.
Lutero regressa ao significado de Tyconius. A ideia de Igreja é destruída pela
doutrina que só a fé salva. Ser cristão é comprar a Bíblia de Lutero e seguir a
consciência. A civitas dei torna-se demasiado
fácil e visível. Ora a consciência de ser bom Cristão é muito fácil de surgir.
Se aparece alguém que se considera bom cristão e que só pratica iniquidades que
se lhe pode responder? E se for um movimento de massas que pedem a abolição da
autoridade temporal porque o reino de deus já chegou? Poderiam sobrevir abusos
da liberdade evangélica. A solução era remeter os abusadores para o redil do
governo temporal. Mas se o governo temporal age mal? Se interfere com os
cristãos e os proíbe de ler as Bíblias que Lutero traduzira? Deverá o cristão
então resistir? Em resumo, não há solução.
Quando a ordem institucional
destruída fica à mercê do decisisonismo da consciência individual é a guerra de
todos contra todos. A nova ordem terá que ser imposta às consciências rebeldes.
Esta é origem da razão de estado, aceite pelas Igrejas. Mas de momento é só o
princípio. A liberdade evangélica significava, por exemplo, o que vinha no III
dos Doze Artigos dos servos camponeses revoltados
(1525) um documento de inegável grandeza humana: “Tem sido costume até agora que
os homens nos possuam como sua propriedade; e isto é lamentável vendo que
Cristo nos redimiu a todos com o precioso derramamento do seu sangue, aos
humildes bem como aos grandes, sem excepção de ninguém. Portanto é conforme às
Escrituras que sejamos livres e assim o queremos ser.” Que respondeu
Lutero? “Isto é tornar a liberdade cristã uma realidade totalmente carnal.
Não tiveram também escravos Abraão e outros patriarcas?. Este artigo tornaria
todos os homens iguais e converteria o reino espiritual de Cristo num reino
mundano e externo; e isso é impossível porque um reino mundano não pode ficar
em pé a menos que nele exista a desigualdade, de modo a que uns sejam livres,
outros presos, uns senhores e outros súbditos “. Os camponeses não o
escutaram, seguiram outra interpretação das Escrituras e o seu coração tomou a
decisão da revolução social violenta. Em 1523 aconselhara no escrito Von weltlicher Oberkeit : “A heresia é um assunto espiritual que não pode ser cortado com o
ferro, queimado com o fogo ou afogado em água“. Em 1525 pediu aos
nobres e aos cavaleiros para massacrar os heréticos. Os cavaleiros não se
fizeram rogados. Foi o fim do sonho da Reforma através da palavra. Lutero viveu
ainda 20 anos. Mas nada mais tinha para dizer. Em cerca de oito anos criara ideias
decisivas para o decurso da história da consciência moderna e perante as quais
o cisma Protestante é quase secundário.
1. Destruíra o núcleo da
cultura espiritual cristã ao atacar a doutrina da fides caritate formata. Reduzira a fé a um ato de
confiança ao retirar-lhe a intimidade da graça, sempre exposta às tentações do
orgulho e da soberba. A consciência empírica da justificação pela fé cria uma
ruptura na natureza humana.
2. Destruíra a cultura
intelectual ocidental ao atacar a Escolástica aristotélica. Se o esplendor
medieval foi escurecido pelas lentes torpes dos modernos, parte da
responsabilidade deve-se a Lutero. A sua atitude anti-filosófica criou o padrão
depois agravado por sucessivas gerações de intelectuais Iluministas,
positivistas, marxistas e liberais.
3. A justificação sola fide arruina o equilíbrio da existência
humana. A ideia do paraíso de amor industrioso transferiu a ênfase da vita contemplativa para a ideia de realização
humana através de um trabalho e de um serviço útil. O homem confia em Deus;
depois vai à vida. No nosso tempo, esta atrofia da cultura intelectual e
espiritual degenera no pragmatismo do sucesso.
4. Fala-se de Lutero como de
alguém que possuía as virtudes e os vícios típicos do alemão. Mas se pensarmos,
para só referir teólogos, em Alberto Magno, Eckhardt, Tauler, Nicolau de Cusa e
o anónimo de Frankfurt, então ele nada tinha de germânico. Criou certamente um
tipo humano: o revoltado voluntarista que deseja impor a sua razão como o
centro da ordem institucional.
A sua obra é a manifestação de
uma personalidade bizarra cuja força vital o faz romper com a história e
lançar-se sozinho contra o mundo. O seu apelo à ação direta contrasta com
o contemptus vulgi de Maquiavel, o ascetismo e
a pleonexia do intelectual de Erasmo e a ironia
jocosa e amargura diplomática de Moro. Perante a força dramática da vontade
luterana de violentar o juízo da história, tais autores fazem figuras de pobres
revoltados. Força, porém, não é sinónimo de grandeza e não se pode pensar à
maneira dos liberais do séc. XIX que o sucesso seja sinal de valor. O grande
indivíduo é um sintoma da ruptura da civilização. Por outro lado, os críticos
de Lutero costumam ver a desordem espiritual e as carências do seu temperamento
mas esquecem a degradação das tradições por ação de instituições e pessoas que
já quase só representavam os defeitos. Ora as revoluções só se desencadeiam se
houver condições de resposta das massas. No início da Reforma, a tradição
degradara-se a tal ponto que um número cada vez maior de pessoas se sentia
desligada de qualquer corpo místico. O indivíduo estava disponível para a
violência renovadora. Entre os aspectos mais negativos da ação de Lutero
conta-se a irresponsabilidade do apelo à autonomia de interpretação das
escrituras e ao homo spiritualis. Faltava-lhe
intuição intelectual e imaginação para ver as consequências. Mas esta
deficiência que o cegava na teoria, robustecia a capacidade de agir; não
entendia os enormes obstáculos iria criar. No aspecto positivo, era um
observador excepcional e um talento administrativo. Conhecia os males do seu
povo; tinha a moralidade e o bom senso de os aconselhar a diminuir as suas
dependências; estimava os seus compatriotas: e conhecia perfeitamente o animal
em que o homem se transforma se não for vigiado. Tinha todos os requisitos para
ser um bom ministro num estado social-democrata. Mas passou à história
convencional como o reformador da religião cristã.
BIBLIOGRAFIA:
Joseph Denifle, Luther und seine Entwicklung, 2 vols., 1904-6
Jacques Maritain, Trois Réformateurs, 1923
Nenhum comentário:
Postar um comentário