Jeffrey Bruno |
O cancelamento cultural que os cristãos vêm sofrendo no mundo atual tem levado muitos de nós a se verem como “minorias” em seus próprios países.
Existe uma tendência recente de se criticar a insistência, por parte das novas esquerdas, em praticar as chamadas políticas identitárias, focadas nos direitos de minorias raciais, étnicas ou de gênero. Um artigo publicado no jornal “Folha de São Paulo”, criticando o racismo de negros contra brancos, ilustra bem essa tendência, bem como as reações opostas. O texto elenca uma série de eventos (nenhum deles no Brasil) em que negros se voltaram violentamente contra brancos usando justificativas raciais, do tipo “os brancos devem pagar”. Creio que a melhor crítica ao artigo é aquela que vê nos casos citados exemplos de discriminação e perseguição, mas não de racismo propriamente dito. Entendamos…
O que é “racismo estrutural”?
Discriminação e perseguição são posições individuais, mesmo quando são dominantes na sociedade. Uma pessoa sempre poderá dizer “eu não quero ser conivente ou compactuar com a discriminação e a perseguição racial”. Por outro lado, o racismo, na acepção que vem sendo usada atualmente, é estrutural, no sentido que a forma de organização da sociedade leva a ele. Uma pessoa, mesmo que não queira discriminar e perseguir, se insere obrigatoriamente na sociedade a partir das estruturas dadas e por isso se beneficia ou se prejudica com as relações étnicas existentes.
Uma comparação ilustrativa refere-se à situação dos negros e dos judeus. O antissemitismo é um fato, mesmo no Brasil. Ninguém pensaria, contudo, em fazer um programa de quotas raciais para judeus nas universidades. O antissemitismo, em nosso País, é cultural e pouco comum, enquanto a condição do negro é dominante e determinada não apenas por aspectos culturais, mas também pelas estruturas econômicas, sociais e políticas da sociedade.
Problemas de discriminação e perseguição podem ser resolvidos com medidas policiais e educativas. Já racismo estrutural necessita de “ações afirmativas”, de caráter institucional, que mudem a forma pela qual a sociedade se organiza.
Vendo sobre esse prisma, a sociedade brasileira enfrenta sérios problemas de racismo estrutural – que tendem a permanecer ocultos quando condenamos atitudes individuais de discriminação e perseguição, mas não enfrentamos o problema das desigualdades estruturais.
As contradições do identitarismo e do multiculturalismo
O artigo que causou a celeuma, contudo, usava a discussão sobre racismo para atacar outro problema: o identitarismo. Trata-se de uma posição que vê a própria identidade, seja étnica, cultural ou política, como a única justa e confiável; acreditando que o outro é sempre mal-intencionado, traiçoeiro e merecedor de discriminação e perseguição. Ações identitárias são necessárias e importantes, a crítica ao identitarismo refere-se àquelas ações que não apenas afirmam a própria identidade, mas querem desqualificar a até perseguir as demais. O multiculturalismo tem muito a ver com esse problema: percebeu a pluralidade de culturas nas sociedades complexas e reconheceu o direito à existência que todas têm, mas frequentemente as imaginou como unidades isoladas obrigadas a se defender – de forma até agressiva – das demais.
Ao longo do século XX, as políticas públicas dos chamados Estados sociais, que predominaram nos países de capitalismo avançado, esvaziaram grande parte das demandas das classes trabalhadoras, enquanto as novas relações do trabalho enfraqueceram os sindicatos. Com isso, as esquerdas tradicionais, centradas na oposição entre capital e trabalho, perderam espaço político e foram substituídas pelas novas esquerdas, que se organizaram não tanto a partir de pautas socioeconômicas, mas sim das pautas socioculturais das minorias.
A igualdade, o respeito aos direitos das pessoas, a autonomia para cada um buscar a própria realização são bandeiras simpáticas a todos, com uma elevada capacidade de gerar empatia e arregimentar seguidores. Nas últimas décadas, essas bandeiras mudaram a mentalidade hegemônica em nossas sociedades, eliminando antigos estigmas, mas frequentemente criando novos. Aos poucos, os ideais universalistas que estavam na raiz dessas políticas identitárias começaram a ser corroídos por posturas sectárias, que dificultavam tanto a unidade política dos movimentos quanto o seu reconhecimento empático por parte de toda a população.
Esse tipo de problema se evidencia quando vemos pessoas simples do povo, que em teoria fazem parte daquela grande multidão que deveria se unir buscando uma sociedade melhor, acusando a militância identitária, seja de qual tipo for, de arrogante, fechada ou agressiva. O sectarismo está dificultando, nesses casos, a empatia, o encontro e o esforço compartilhado pela construção do bem comum.
O cristianismo, idealmente, sempre defendeu um “encontro de culturas”, a possibilidade que as culturas se encontrassem e cada uma absorvesse o que há de melhor nas demais. Essa postura ideal muitas vezes foi deturpada e instrumentalizada ao longo da história e devemos reconhecer nossos erros, para manter ainda mais vivo o ideal. Uma espécie de “exame de consciência” histórico deveria nos levar a reconhecer as muitas vezes que preconceitos e escolhas econômicas fizeram com que os cristãos fossem responsáveis pela exclusão social, pela escravização e pelo sofrimento de muitas minorais. Frequentemente as estruturas de poder laico das sociedades eram ainda mais culpadas pela situação das minorias do que os cristãos praticantes, mas – de qualquer forma – superar tais pecados sociais históricos deveria ser um compromisso de todos nós. Ao mesmo tempo, um real espírito fraterno, um desejo de encontro e partilha com o irmão, deve orientar essas lutas, para nos aproximarmos sempre mais do ideal de uma “civilização do amor” e não da exclusão.
Quando os cristãos se tornam “minoria”
O conceito de “minoria” não é demográfico, mas político. Minorias são grupos sociais destituído de poder político – mesmo que sejam maioria em termos numéricos na população. Por isso, aquilo que o Papa Francisco denomina “perseguição educada” e o cancelamento cultural que os cristãos vêm sofrendo no mundo atual tem levado muitos de nós a se verem como “minorias” em seus próprios países, mesmo que sejam o grupo social mais numeroso.
Essa situação tem provocado, em muitos, uma defesa “identitarista” da fé, que leva aos mesmos sectarismos e à mesma dificuldade de empatia que percebemos nos demais. Nessa dinâmica, supomos que todos que dizem comungar dos nossos valores são obrigatoriamente bons e devem ser apoiados e todos que não seguem esses valores são maus e devem ser perseguidos, até fisicamente. Esse identitarismo nos faz perder a racionalidade e o realismo, que historicamente sempre foram importantes para a cultura cristã, e – pior ainda – nos faz colocar a agressividade no lugar do amor. Desde as perseguições romanas dos primeiros séculos, a resposta cristã sempre foi propor um amor maior, onde todos podem descobrir a realização de suas humanidades e a fraternidade universal.
Temos que tomar cuidado para não nos tornarmos justamente aquilo que queremos combater!
Fonte: https://pt.aleteia.org/
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