Por que a última viagem de Jesse Koz e Shurastey fez chorar 1 milhão de seguidores?
@shurastey_ | Instagram
Por Francisco Vêneto
A poderosa atração das terras longínquas e a força inspiradora de um propósito de liberdade.
Em 2017, Jesse Koz pediu as contas na loja de roupas em que, na véspera, tinha sofrido um ataque de pânico.
“Eu trabalho das 15h às 23h e perco a minha vida inteira aqui dentro. Não tô fazendo nada por mim nos últimos 7 ou 8 anos da minha vida”.
O ataque de pânico precedeu em poucas horas o brado de alforria, conforme Jesse viria a relatar em 2020 ao podcast Camboriú Play.
Naquele dia da virada de chave,
“…quando cheguei no shopping, tinha muita gente, muito cliente, a maioria argentino e uruguaio, e eu não sabia falar nada de espanhol. Eles chegavam na loja, olhavam, olhavam e não compravam nada. Fiquei umas duas horas sem conseguir vender nada para ninguém, naquela pressão de vender – porque se você não vender, você não ganha. Me deu um surto, fui pra frente da loja e tudo parou, parecia cena de filme”.
O fim do mundo
Sem conseguir vender o alheio, o curitibano que tinha adotado Balneário Camboriú em 2010 como a sua cidade do coração resolveu então vender o próprio: se desfez da moto, da TV, do videogame e do microondas e, menos de três meses depois da decisão de jogar tudo para o alto, inspirado pelos aventureiros que cruzam mares e continentes sem grandes planejamentos, partiu com 12 mil reais rumo “ao fim do mundo” – ou, pelo menos, ao fim da América do Sul.
Ushuaia, onde a Argentina se despede de si mesma, não seria, porém, o seu ponto de chegada, mas o ponto de recomeço rumo a um sonho vago e novo, que tomava aos poucos a forma de um propósito: cruzar o continente americano da Terra do Fogo até o Alasca, levando como co-piloto o golden retriever Shurastey, seu companheiro de vida e de apartamento, a bordo de Dodongo, o seu Fusca 78, de 1.300 cilindradas, batizado como um personagem de Legend of Zelda.
Mas Jesse ainda não sabia que era isto o que queria.
“Saí bem doido por aí, sem rumo, sem saber muito bem o que estava fazendo na época, sem estrutura”.
7 mil quilômetros depois, Dodongo, Shurastey e Jesse Koz chegaram ao fim do mundo.
“Foi a emoção mais forte até hoje. Eu não tinha feito nada de tão extraordinário na minha vida. E ter chegado e vencido todas as dificuldades, principalmente dos últimos 220 quilômetros, embaixo de neve e com gelo na pista, foi incrível”.
Jesse Koz tinha finalmente definido um propósito. Iria para o Alasca. De Fusca. Com Shurastey.
Outros 85 mil quilômetros, 17 países e 5 anos depois, Jesse compartilhou mais um anúncio com os quase 500 mil seguidores que acompanhavam pelo Instagram os seus marcos mais recentes nos Estados Unidos, antepenúltima etapa da sua longa expedição rumo a um destino claro e definido:
“Estamos acampando no estado do Oregon, no meio do nada, e daqui nós seguimos viagem rumo à fronteira com o Canadá”.
Por volta das 15h30 da última segunda-feira, 23 de maio, várias ligações perdidas e mensagens inusuais no WhatsApp chamaram a atenção do advogado Felipe Pires, em Balneário Camboriú.
“Oi, Pires. Por favor entre em contato urgente”.
Uma curva da rodovia
O recado era de Diego Strutz, que, junto com a companheira, Roana Petri Celeste, está nos Estados Unidos. Diego e Roana viajavam em sua van, logo atrás do Dodongo, e viram o acidente. Foram eles que organizaram a vaquinha virtual e ajudaram a arrecadar 120 mil reais para o translado do corpo de Jesse e das cinzas de Shurastey para o Brasil. O golden retriever precisará ser cremado antes de voltar para casa.
Quando Felipe conseguiu falar com Diego, não apenas soube que Jesse Koz tinha encerrado a sua viagem aos 29 anos de idade, numa curva da rodovia US 199, como soube também que precisaria transmitir a notícia que ninguém quer transmitir à família do melhor amigo, a quem conhecia desde 2012, quando ele e Jesse tinham dividido o aluguel de uma quitinete no balneário catarinense.
“Fui a primeira pessoa a receber a notícia no Brasil. Tive a difícil missão de repassar para a família dele. Liguei para a tia dele, que mora aqui em Balneário Camboriú. Ela me recebeu em casa e eu contei”.
A segunda etapa da missão de Felipe era tão dolorosa quanto a primeira: guardar silêncio durante 18 horas e segurar o choro para si mesmo. A tia de Jesse havia decidido viajar pessoalmente até Curitiba, onde mora a mãe do jovem, para que ela não descobrisse a morte do filho pela internet.
Jesse e Shurastey estavam perto da cidade de Portland quando o Dodongo ficou destruído. O jovem de 29 anos tinha feito uma brusca manobra para não bater no carro à sua frente, que reduzira inesperadamente a velocidade para fazer uma conversão; ao invadir a pista contrária, Jesse não conseguiu evitar a colisão frontal com o Ford Scape que vinha no sentido oposto.
“Fiquei 18 ou 19 horas com o choro preso, porque não podia contar pra ninguém”.
A tia de Jesse entrou em contato com Felipe às 11h da terça-feira, 24. Ela estava em Curitiba. A mãe do amigo já tinha recebido a notícia que mãe nenhuma deveria receber. Felipe agora podia informar aos outros amigos que o fim da expedição “Shurastey or Shuraigow?” seria muito diferente do que todos tinham esperado.
O nome da viagem de Jesse, assim como a origem do nome do carismático golden retriever, era uma brincadeira fonética com a música “Should I Stay or Should I Go?” (“Será que eu fico ou será que eu vou?”), da banda britânica The Clash.
Jesse Koz tinha decidido ir. Arriscando tudo. Encarando as consequências. Ele tinha descoberto e assumido um propósito.
Na quarta-feira, 25 de maio, Jesse Koz e Shurastey tinham mais de 1 milhão de seguidores no Instagram.
Por que a última viagem de Jesse Koz e Shurastey fez chorar 1 milhão de seguidores?
“Havia muitas pessoas que de fato acompanhavam a página, e a comoção e o choro coletivo foi como perder alguém próximo. A imagem que Jesse passava no Instagram era muito verdadeira. Não era um personagem, então isso trazia uma sensação de aproximação, de intimidade, que as pessoas, por mais que não o vissem pessoalmente, o sentiam como amigo, como irmão”.
A consideração de Felipe é autoexplicativa, mas e as outras mais de 500 mil pessoas que nem sequer conheciam Jesse Koz e Shurastey até a véspera? Por que meio milhão de pessoas resolveram da noite para o dia seguir o perfil de um jovem que morrera a 9 mil quilômetros de distância e do qual jamais tinham ouvido falar?
Em 1983, o então cardeal Joseph Ratzinger, futuro Papa Bento XVI, fez uma atemporal reflexão sobre o irmão mais velho do “filho pródigo”, o personagem de uma parábola de Jesus que certamente merece primazia entre as máximas obras-primas de toda a história da literatura universal:
“Meditando nesta parábola, não se deve esquecer a figura do filho mais velho. Em certo sentido, ele não é menos importante que o mais novo, a ponto de esta história poder ter também o título, que talvez fosse mais adequado, de ‘parábola dos dois irmãos'”.
Ratzinger observa que o filho mais velho tinha permanecido junto ao pai quando o irmão caçula dera as costas à família, declarando-se órfão de pai vivo e partindo para longe, a fim de esbanjar a sua parte da herança em prazeres do mundo, confundindo a liberdade e a libertinagem e afastando-se tanto de si próprio a ponto de ter de comer as sobras da lavagem dos porcos – uma imagem drasticamente impactante para uma cultura judaica em que o porco é tão imundo que comer a sua carne é até hoje repulsivo. Quando, quebrado e humilhado, o filho pródigo retorna à casa do pai em busca do abrigo que antes desprezara, o filho maior se revolta. O futuro Papa Bento pergunta:
“Por que este ciúme? Ele mostra que muitos ‘devotos’ também escondem no coração o desejo das terras longínquas e das suas seduções. A inveja revela que essas pessoas não compreenderam realmente a beleza da pátria, a felicidade do ‘tudo o que é meu é teu’, a liberdade de ser filho e proprietário. Assim, parece que também elas desejam secretamente a felicidade da terra longínqua. E, no fim, não entram na festa; no fim, permanecem de fora”.
Cardeal Ratzinger, montagem sobre pintura de Rembrandt (Domínio Público)
O que Ratzinger está dizendo é que, no íntimo, somos todos filhos pródigos. Faz parte da natureza humana querer partir – e invejar quem parte. Chegamos todos àquele dia de pânico e àquelas raias da loucura, à beira de jogar tudo para o alto e partir rumo ao fim do mundo. Mas nem todos partem. E nem todos os que partem o fazem por igual motivação: uns partem por virtude, outros por covardia. Assim como, dos que ficam, alguns são covardes, outros virtuosos.
Alguns que partem o fazem por desprezível egoísmo e ao prejuízo dos outros, como o filho caçula da parábola de Jesus. Outros, como Jesse Koz, o fazem às próprias custas, sem explorar o próximo, assumindo a decisão tomada e inspirando centenas de milhares de pessoas – não necessariamente por terem abraçado o vento na cara, donos de si mesmos e livres na imensidão das estradas do mundo, mas por terem tido a coragem de dar um basta à mediocridade da sua vidinha sem perspectivas e por terem finalmente dado início à concretização dos próprios sonhos.
Nem sempre é a viagem em si o que fascina. É a coragem de assumir um propósito. Mochileiros vagando o mundo existem milhares. Milhões, talvez. Há os que traçam a trajetória decadente e egoísta do filho pródigo – estes geram repulsa. E há os que traçam a trajetória resiliente e eletrizada por um propósito, como Jesse Koz – estes produzem inspiração.
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