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1. Valor cristão da vida diária
“Jesus, crescendo e vivendo como um de nós, revela-nos que a existência humana, a vida comum e de cada dia, tem um sentido divino”, escreve São Josemaria Escrivá no início de uma homilia de Natal. E em seguida acrescenta: “Por muito que tenhamos considerado estas verdades, devemos encher-nos sempre de admiração, ao pensar nos trinta anos de obscuridade que constituem a maior parte da vida de Jesus entre seus irmãos, os homens. Anos de sombra, mas, para nós, claros como a luz do Sol. Mais: resplendor que ilumina os nossos dias e que lhes dá uma autêntica projeção, pois somos cristãos comuns, com uma vida vulgar, igual à de tantos milhões de pessoas nos mais diversos lugares do mundo”[1].
Se bem que na vida, tanto na de cada pessoa, como na das famílias e na das nações, haja acontecimentos chamativos, ocorrências em certa medida extraordinárias, a realidade é que a existência cotidiana está formada pela sequência de dias preenchidos, geralmente, por acontecimentos de pouca importância e frequentemente muito semelhantes aos dos dias anteriores. E todos esses acontecimentos têm valor diante de Deus. As palavras de São Josemaria que citamos antes manifestam uma das verdades centrais do cristianismo, que tem um eco particular no espírito do Opus Dei. Deus não é um ser longínquo, que se limita a criar o mundo e a dotá-lo de leis, mas um Deus próximo, que acha “suas delícias entre os filhos dos homens”[2], que ama as suas criaturas uma a uma, e que leva o seu amor ao extremo de se fazer homem, compartilhando em Jesus Cristo, o nosso modo de viver, nas coisas pequenas e grandes.
Em suma, a luz da fé manifesta, que todos os fatos e situações que integram a existência constituem chamadas que Deus dirige para que o homem entre em relação com Ele, se abra ao cumprimento da verdade divina e se disponha a servir os outros homens, com uma atitude de confiança em Deus e entrega. “Deus nos espera cada dia (...). Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir”[3].
É desta profunda verdade que deve viver o cristão, qualquer cristão, também aquele cuja existência transcorre no meio do mundo, sem que aconteçam na sua vida coisas chamativas ou espetaculares. É nessa vida cotidiana e simples que pode e deve:
- Ter intimidade com Deus, saber que está na sua presença, solicitar a sua ajuda, corresponder com o seu amor ao amor divino, também no que pode parecer irrelevante, porque tudo o que é nosso interessa ao nosso Pai Deus. “Não se vendem dois passarinhos por um asse?”, preguntou um dia Jesus aos seus discípulos. E respondeu: “No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de vosso Pai (...). Não temais, pois! Bem mais que os pássaros valeis vós”[4].
- Contribuir, mediante o desempenho das próprias ocupações e tarefas, para o progresso da sociedade humana e para a realização do grande desígnio divino da salvação, na medida em que essas tarefas, vividas com amor, no cumprimento da vontade divina e acolhendo com docilidade as inspirações do Espírito Santo, se unem ao oferecimento que Cristo fez da sua própria vida e consequentemente participam da sua eficácia redentora.
- Participar, mediante o exemplo de uma vida ordinária e coerente, e do testemunho de uma palavra simples e oportuna, na missão que incumbe a toda a Igreja de estender ao longo dos séculos a mensagem do Evangelho até atrair toda a humanidade para Cristo, e em Cristo para Deus Pai.
2. Vida diária e trabalho
A vida diária está formada por uma ampla diversidade de realidades e tarefas: trabalho, descanso, jogo, cultura, vida familiar, relações sociais e de amizade, atividades econômicas e políticas, saúde, doença, tristezas, alegrias... Estas realidades estão presentes, em graus e formas diferentes, em cada existência concreta, e contribuem para a sua fisionomia, se bem que, como é lógico, nem todas tenham a mesma importância. Dentre elas é natural destacar uma, que reveste manifestações muito variadas, mas que sempre ocorre na vida de todos os homens e mulheres: o trabalho.
Trata-se, juntamente com a família, de uma das realidades a que se refere a Bíblia sobre a criação do ser humano. “Deus os abençoou [a Adão e Eva]: Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”[5]. A história humana manifesta a presença constante do trabalho e o seu desenvolvimento através da utilização progressiva de uma ampla variedade de instrumentos que foram facilitando o domínio sobre a matéria. Uma parte decisiva desse desenvolvimento deve-se à chegada do que costuma designar-se como divisão do trabalho; quer dizer, à orientação dos seres humanos para diversas atividades nas que se especializam, obtendo assim melhores resultados, o que, graças ao posterior intercâmbio de bens, contribui para o progresso de toda a sociedade. Daí o surgimento das profissões e a qualificação do trabalho, como trabalho profissional, como trabalho ao que a pessoa se dedica estavelmente e que define, em grande parte, a sua posição na sociedade.
São Josemaria Escrivá resumiu, num texto particularmente denso, as dimensões tanto naturais como religiosas e cristãs do trabalho humano. “O trabalho, todo o trabalho, é testemunho da dignidade do homem, do seu domínio sobre a criação; é meio de desenvolvimento da personalidade; é vínculo de união com os outros seres; fonte de recursos para o sustento da família; meio de contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a humanidade. Para um cristão, essas perspectivas alargam-se e ampliam-se, porque o trabalho se apresenta como participação na obra criadora de Deus [...]. E porque, além disso, ao ser assumido por Cristo, o trabalho se nos apresenta como realidade redimida e redentora: não é apenas a esfera em que o homem se desenvolve, mas também meio e caminho de santidade, realidade santificável e santificadora”[6].
Descompondo analiticamente esse parágrafo podemos indicar que o trabalho – e mais concretamente o trabalho entendido não como mera ocupação das mãos, mas como trabalho profissional – possui:
- Uma dimensão cósmica e de domínio, enquanto expressão da capacidade do homem de dominar a natureza orientando-a para os fins que concebe com a sua inteligência e, portanto, colocando-a a seu serviço.
- Uma dimensão antropológica, uma vez que o homem adquire maturidade e consciência de si, e consequentemente cresce e se desenvolve como homem, não só, mas muito especialmente, através da realização séria, contínua e responsável da própria tarefa.
- · Uma dimensão sócio familiar, uma vez que o trabalho, ao proporcionar bens, permite a constituição e a posterior manutenção da família.
- Uma dimensão social e histórica, uma vez que o trabalho, e mais concretamente a sua progressiva divisão e desenvolvimento, é um dos fatores fundamentais que contribuem para a estruturação e o progresso das sociedades.
- Uma dimensão teológico-criacional, pois pressupõe que Deus não quis dar vida a um universo plenamente feito e fechado, mas contar com a ação e a história humanas como realidades que contribuem para a plenitude final.
- Uma dimensão soteriológica, uma vez que, unido à entrega de Cristo, o trabalho contribui para a obra da salvação, tanto nos momentos de satisfação pessoal e de alegria, que podem ser vividos em comunhão com Deus, como nos de esforço, fracasso ou cansaço que, unidos à Cruz de Cristo, adquirem valor de salvação.
A conexão entre estes aspectos resume-se muito bem num outro texto de São Josemaria, referido ao cristão que se santifica nas tarefas comuns dos homens: “A vossa vocação humana é parte, e parte importante, da vossa vocação divina”[7]. Portanto, o trabalho, que ocupa na terra os dias de todos os homens, confirmando a sua personalidade, e que é para cada um o modo peculiar de estar no mundo, não é alheio aos planos de Deus[8]. Por isso a vocação cristã leva a realizar o trabalho e todas as ocupações cotidianas por amor a Deus e com espírito de serviço aos homens[9].
João Paulo II na encíclica que dedicou ao trabalho, a Laborem exercens, analisa esta realidade humana distinguindo entre o que denomina “trabalho em sentido objetivo”, isto é, o trabalho enquanto ato que, submetendo a terra e utilizando os recursos naturais, se concretiza em realizações, conhecimentos, métodos e procedimentos, e o “trabalho em sentido subjetivo”, ou seja, o desenvolvimento do homem enquanto pessoa em virtude do ato de trabalhar[10].
O trabalho age sobre a natureza, e consequentemente modifica o contexto em que vive o ser humano. Mas a sua incidência objetiva não termina aí, uma vez que, o desejo de dominar a terra, impulsiona o crescimento das ciências e das técnicas que possibilitam esse domínio e, portanto, o desenvolvimento do conhecimento e da inteligência. Por isso o trabalho carrega consigo um dinamismo como força histórica. Essa realidade levou alguns autores – entre eles Karl Marx – a ver no trabalho o fator decisivo para a humanização da história; só que, partindo de pressupostos materialistas, deu-se uma interpretação unidimensional e determinista a esse processo, esquecendo que é o homem, enquanto ser espiritual, quem possibilita o trabalho. Isto faz com que o verdadeiro progresso social não seja automático, mas que dependa de um adequado desenvolvimento do homem, isto é, enquanto ser espiritual. O trabalho em sentido objetivo deve estar, em suma, a serviço do trabalho em sentido subjetivo, ou seja, do homem como fonte, sujeito e fim do trabalho[11].
Dito de outro modo, a técnica deve estar informada pela ética, e esta por sua vez pela espiritualidade. Daí que João Paulo II tenha podido concluir a sua encíclica assinalando que a resolução dos problemas sociais, vinculados na sua evolução histórica ao desenvolvimento do trabalho, depende de que se viva uma verdadeira espiritualidade do trabalho[12]. Quer dizer, de que o homem, sujeito do trabalho, seja consciente das suas dimensões espirituais e as exercite, também – e incluso especialmente – ao trabalhar, contribuindo dessa maneira para que a consciência da sua dignidade pessoal – da sua condição de criatura à imagem de Deus – redunde sobre o conjunto da vida social.
3. Santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, santificar com o trabalho
São Josemaria resumiu o programa de uma espiritualidade do trabalho numa frase sintética: “santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, santificar-se com o trabalho”; ou, noutros momentos e com outras palavras, mas no mesmo sentido: “santificar a profissão, santificar-se na profissão e santificar com a profissão”[13].
Santificar-se no trabalho
Todos os cristãos estão chamados à santidade, isto é, à plenitude da caridade e do trato com Deus. Essa chamada é um dom divino, oferecimento que Deus faz do seu próprio amor. É, simultaneamente, exigência, convite à entrega da própria vida em correspondência à entrega que Deus faz de Si. Essa entrega a Deus, e o amor de onde provém, não podem ser confinados à margem da vida e atuação humanas: devem situar-se no centro e, a partir daí, difundir-se por toda a existência. Isto no fiel cristão, chamado por Deus a santificar-se no lugar que ocupa no mundo, implica no convite a informar com esse amor todas as realidades e ocupações terrenas ou seculares nas que transcorre a sua vida. O trabalho adquire assim um horizonte novo: não é apenas uma tarefa humana, mas, além disso e inseparavelmente, parte da vocação cristã.
As ocupações e tarefas humanas apresentam-se, à luz da fé e sob a ação do Espírito Santo, como oportunidades para exprimir o amor com obras, para fazer da própria vida uma hóstia grata e agradável a Deus[14]. E, dessa forma, entrar numa relação íntima e pessoal com Ele. Porque a oração não deve estar reservada apenas a momentos isolados nem a situações ou lugares especiais, mas constituir uma disposição de ânimo e um diálogo efetivo que informem toda a vida, e se nutram, portanto, das incidências da vida cotidiana, do empenho que o trabalho reclama, das alegrias que traz consigo, dos dissabores que às vezes o acompanham.
Santificar com o trabalho
A missão conferida por Cristo a respeito da salvação do mundo implica numa ampla gama de tarefas: a pregação da palavra que anuncia o desígnio salvador de Deus; a administração dos sacramentos que comunicam a graça divina; a prática concreta da caridade; o testemunho de vida, a coerência de vida informada pelo espírito de Cristo, que manifesta a capacidade que esse espírito tem para vivificar todas as situações humanas; a animação cristã do mundo, as estruturas temporais impregnadas de espírito cristão, de modo que a sociedade humana seja uma sociedade digna do homem e da sua condição de filho de Deus.
A partir desta perspectiva, o trabalho profissional apresenta-se como eixo em volta do qual se desenvolve, ou como canal através do qual se expressa, a vocação apostólica do cristão, e mais concretamente a do leigo, ao qual compete, por vocação específica, “buscar o reino de Deus, ocupando-se das coisas temporais e ordenando-as segundo Deus”[15]. O trabalho profissional é uma tarefa que, em virtude da sua própria dinâmica, exige solidariedade e serviço, e, no cristão, caridade, amor que leva essas atitudes humanas à sua perfeição ou cumprimento. O homem de fé deve estar sempre pronto a explicar o porquê do seu amor e da sua esperança[16]. Isto implica num testemunho de vida exemplar que, por sua própria natureza, aspira a se prolongar em palavras, que manifestem e revelem o fundamento do próprio agir. Isto quer dizer, que dê a conhecer a Cristo e convide a se aproximar dele, e, portanto, se prolongue num verdadeiro e próprio apostolado. Num apostolado que se exerce a partir das relações interpessoais e dos vínculos de companheirismo e de amizade suscitados pelo trabalho, bem como através das múltiplas e variadas incidências – felizes, umas; difíceis, outras – que acompanham a jornada do trabalho.
Santificar o trabalho
A santificação pessoal e a ação apostólica que acabamos de referir, não se enlaçam e desenvolvem simplesmente a partir do trabalho ou por causa dele, mas – o que é bem diferente, pois exclui qualquer aparência ou instrumentalização – entrelaçando-se com ele, formando uma só coisa com ele: santificar-se no trabalho e santificar os demais com o trabalho pressupõe e está relacionado com santificar o trabalho, fazer do próprio trabalho uma tarefa profundamente humana e cristã.
Isto reclama em primeiro lugar, uma realização tecnicamente acabada da tarefa profissional, com pleno conhecimento e respeito pelas leis próprias de qualquer atividade, e, portanto, não só dedicação e empenho, mas estudo, que é um pressuposto indispensável para atuar com competência e seriedade profissionais. Mas o que foi dito, embora sendo muito, ainda não é tudo: mais ainda, se ficássemos nesse nível, não teríamos captado o que implica a santificação do trabalho, que reclama, junto com a eficácia técnica, sentido ético e espírito cristão.
A ciência e a técnica não incluem, em si e por si mesmas, as normas para o seu próprio uso. O trabalho, tarefa levada a cabo por um ser livre e chamada a contribuir para o bem dos demais, pressupõe, para seu exercício adequado, um reto juízo ético e, portanto, uma visão do homem e do mundo que seja o fundamento desse juízo. A reflexão sobre a própria tarefa para perceber as exigências e implicações éticas e espirituais que tem, deve ocupar um lugar importante na experiência de quem está chamado a realizar a sua vocação cristã nas entranhas do mundo. E, portanto, com embasamento doutrinal onde se pode proceder à reflexão, da qual brotarão as posteriores e livres decisões concretas, um conhecimento adequado do dogma, da ética natural e cristã e da doutrina social da Igreja.
Santificar o trabalho, santificar-se no trabalho, santificar com o trabalho, não se apresentam a nós como três finalidades ou dimensões paralelas, mas como três aspectos de um fenômeno vital unitário: viver como cristão no mundo, e isso tem no trabalho um dos seus eixos determinantes.
J. L. Illanes
Bibliografia básica
Documentos do Magistério
- · CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Gaudium et spes, parte 1, cap. 3: A atividade do homem no mundo
- JOÃO PAULO II, Encíclica Laborem exercens, promulgada em 14/09/1981, está publicada em AAS, 73, 1981, 577-647
Escritos de São Josemaria
- Na oficina de José em É Cristo que passa, nn. 39-56
- Trabalho de Deus, em Amigos de Deus, nn.55-72
C ISSRA, 2009
Artigo publicado no site collationes.org
[1] SÃO JOSEMARIA, É Cristo que passa, n. 114.
[2] Prov 8, 31.
[3] SÃO JOSEMARIA, Entrevistas, n. 114.
[4] Mt10, 29-31.
[5] Gen 1, 28.
[6] SÃO JOSEMARIA, É Cristo que passa, n. 47.
[7] SÃO JOSEMARIA, É Cristo que passa, n. 46.
[8] Cfr. ibid.
[9] Cfr. SÃO JOSEMARIA, Entrevistas, nn. 10 e 27.
[10] JOÃO PAULO II, Encíclica Laborem exercens, nn. 5-6.
[11] Sobre este mesmo tema, se bem que em relação com a técnica e a economia, ver também BENTO XVI, Encíclica Caritas in veritate, nn. 68-69.
[12] JOÃO PAULO II, Encíclica Laborem exercens, n. 26.
[13] Cfr. SÃO JOSEMARIA, É Cristo que passa, n. 46 e Amigos de Deus, n. 9.
[14] Cfr. Rom 12, 1.
[15] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição dogmática Lumen gentium, n. 31.
[16] Cfr. 1 Pe 3, 15.
Fonte: https://opusdei.org/pt-br
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