Os muros de Jericó | Cléofas |
A Queda dos muros de Jericó
(Js 6, 1-20)
Logo após a travessia do Jordão, os filhos de
Israel defrontaram-se com a cidade de Jericó, habitada por cananeus hostis.
Tiveram de se dispor ao assalto do reduto inimigo, obtendo por fim estrondosa
vitória.
O texto bíblico referente ao episódio (Js 6, 1-20)
parece ter sofrido glossas no decorrer dos tempos, prestando-se atualmente a
diversos ensaios de reconstituição e interpretação; ademais as recensões
hebraica e grega apresentam pequenas divergências entre si. Eis, porém, em
grandes linhas, o que se verificou:
Havendo os filhos de Israel acampado diante de
Jericó, os habitantes da cidade, confiantes no poder de suas muralhas,
fecharam-se no interior destas, esperando que a penúria ou alguma inclemência
da natureza obrigasse os invasores a retroceder. Foi então que, a mandado do
Senhor, os guerreiros hebreus, junto com os sacerdotes, que levavam a arca de
Javé, por seis dias consecutivo deram processionalmente a volta da cidade (a
qual não devia ter perímetro muito longo, para poder ser bem defendida); os
desfiles se fizeram ao som das trombetas dos sacerdotes. No sétimo dia,
efetuaram sete circuitos, após os quais ressoaram as trombetas; a estas os
quarenta mil filhos de Israel (cf. Js 4, 13) responderam imediatamente com
brado poderosíssimo; em consequência, as muralhas de Jericó desmoronaram e os
assaltantes puderam penetrar na cidade.
Não há dúvida, trata-se aqui de um feito maravilhoso,
que só se verificou por intervenção extraordinária de Deus. É o que a Sagrada
Escritura explicitamente recorda num dos livros posteriores do Antigo
Testamento:
“O soberano Senhor do mundo, sem catapulta e sem
máquinas de guerra, derrubou os muros de Jericó nos tempos de Josué” (2Mc 12,
15).
Contudo não pode deixar de chamar a atenção o
artifício prescrito pelo Senhor. Precisava o Todo-Poderoso de que os israelitas
fizessem o circuito da cidade para que Ele desmantelasse as fortificações? Que
relação há entre as procissões, com seus toques de trombeta, e o desmoronamento
subsequente?
Pressupondo que eram um estratagema bélico, os
exegetas têm procurado estabelecer um nexo entre esses desfiles e a vitória
final. Assim:
1. Alguns apelam para o
testemunho de cronistas da antiguidade, os quais referem que tropas
assaltantes, em um ou outro caso, fizeram repetidos circuitos da cidade ou do
acampamento sitiados, com o fim de ludibriar o inimigo. Eis, por exemplo, o que
narra Sexto Júlio Frontino, autor da obra Stratagemata (catálogo de
estratagemas) sob o Imperador Domiciano (81-96):
“Domício Calvino cercava na Ligúria a cidade de
Luna, localidade defendida tanto por sua posição geográfica como por obras de
fortificação. Muito frequentemente mandava que todas as suas tropas desfilassem
ao redor da mesma, reconduzindo-as, a seguir, ao acampamento. Esta tática
incutiu aos habitantes a convicção de que os romanos não queriam senão
exercitar-se; visto então que negligenciavam o serviço de vigilância. Domício
transformou essa espécie de passeata em ataque repentino. A cidade foi tomada,
e os moradores se renderam”.
Merece atenção o fato de que o autor refere este
estratagema sob o título “De fallendis his Qui obsidebuntur. Como se procede
para enganar os que são sitiados”.
Baseando-se neste testemunho, julga o Pe. Abel O.
P., professor da Escola Bíblica de Jerusalém, que Josué recorreu a tática
semelhante com a intenção de fazer crer aos habitantes de Jericó que os seus
planos eram pacíficos e não visavam um ataque à cidade (em tempo de guerra
justa, torna-se lícito o recurso não somente a manobras cruentas, mas também às
que enganam e desnorteiam o adversário). É de notar, porém, que o ilustre
exegeta, para construir a sua hipótese, é obrigado a afirmar que as “passeatas”
dos israelitas se realizavam em absoluto silêncio; nem toque de trombeta nem
clamor de guerra emanava de Israel, de sorte a não provocar suspeita ou alarma
na cidade de Jericó. E, a fim de inferir este traço da narrativa bíblica, Abel,
apelando para critérios filológicos, distingue dois documentos, fontes do texto
atual de Js 6, documentos dos quais o primeiro, o “fundamental”, lhe parece
narrar unicamente desfiles silenciosos!19
A sentença do Pe. Abel não deixa de ter autoridade.
Contudo baseia-se num postulado que não pode ser estabelecido com segurança. É
o que a torna discutível.
2. Há quem, apelando
igualmente para a mentalidade e a praxe dos antigos, explique de outra maneira
o valor bélico dos circuitos praticados pelos filhos de Israel. Em vez de
tranquilizar os habitantes de Jericó, teriam tido por fim aterrorizá-los!… A
ostentação da arca (quase “estandarte” da teocracia israelita) acompanhada
pelos sacerdotes e os guerreiros, o toque das trombetas, o brado final deviam
ser ritos aptos a impressionar os “supersticiosos” moradores de Jericó. Estes
admitiam, sim, a existência de um Deus próprio dos israelitas, protetor
poderoso desta gente; haviam ouvido falar dos prodígios realizados por Javé em
prol dos hebreus na saída do Egito, na travessia do Mar Vermelho e no deserto;
isto tudo os fazia temer (cf. Js 2, 8-11). Sobre este fundo, os desfiles dos
israelitas podiam-lhes parecer equivalentes a uma tomada de posse do terreno em
nome do Deus Forte de Israel; o número setenário (dos desfiles, dos dias de
cerco), sendo símbolo de totalidade, devia insinuar a esses homens a ruína
total que o pujante Senhor lhes destinava, condenando-os ao anátema. É preciso
não esquecer que, para os antigos, a guerra era ação religiosa; junto com os
povos que se defrontavam, julgavam que os respectivos deuses pugnavam entre si;20 ora no caso parecia que o Deus de Israel se anunciava mais forte que os
deuses de Jericó, como se mostrara mais poderoso que os dos egípcios e de
outras nações.
Assim os desfiles em torno de Jericó teriam
desempenhado o papel de causar pessimismo psicológico e religioso aos
assediados: quando no fim dos sete dias de estratagema, explorando este estado
de alma, Josué soltou o brado de avanço, já não terá encontrado grande
resistência por parte dos defensores da cidade.
Esta sentença não pode ser comprovada de maneira
decisiva, como também nada de sério se lhe poderia objetar.
Caso se admita uma das duas hipóteses acima
propostas, ainda fica margem para a pergunta: como se deu o assalto à cidade
após a preparação psicológica dos sete dias?
Sem poder reconstituir o quadro com precisão, dada
a escassez de dados, os exegetas por vezes sugerem um ou outro particular que a
narrativa lhes parece oferecer:
a) os espiões que, antes do
cerco da cidade, estiveram em Jericó (cf. Js 2) concluíram um pacto com a
meretriz Rahab, cuja casa estava situada na periferia da cidade (cf. 2, 15).
Esta mulher, crendo que realmente Javé havia de entregar Jericó aos hebreus,
decidira salvar-se com os seus familiares, atraiçoando os concidadãos; terá,
pois, prometido dar ingresso aos invasores pela sua casa, logo que se
propusessem empreender o assalto… Para apoiar a tese, os estudiosos fazem notar
a precisão de topografia e de sinais, a recomendação de silêncio, no diálogo
travado entre Rahab e os exploradores (cf. 2, l5-2O); 21
b) pode-se interpretar em
sentido figurado o termo hebraico homah, geralmente traduzido por “muralha”. É,
sim, com valor metafórico que ele ocorre, por exemplo, em 1 Sm 25, 16. 22 Significaria então a guarnição militar, os homens que montavam a guarda às
portas de Jericó. Estes, e não as muralhas, teriam caído… isto é, desfalecido
de terror após o estratagema de Josué; teriam capitulado, permitindo o ingresso
na cidade sem desferir algum golpe. Entrando em Jericó, os invasores lhe teriam
ateado fogo, poupando apenas a casa de Rahab, posta no perímetro das muralhas; 23
c) o toque diário de
trombetas teria sido um artifício para prender a atenção dos habitantes de
Jericó, enquanto operários israelitas cavavam galerias debaixo das muralhas de
Jericó; uma vez terminados os trabalhos, o brado mais forte teria sido sinal
para que pusessem fogo à armação de madeira que sustentava os muros e se
retirassem; o pânico teria então irrompido em Jericó. Aproveitando-se da
situação confusa e das ruínas causadas pelo incêndio, os filhos de Israel
teriam conseguido penetrar na cidade. 24
3. Estas diversas
conjecturas formuladas para explicar os desfiles dos israelitas como
estratagema bélico, embora muito eruditas, não possuem senão o valor de
suposições mais ou menos fundadas no texto e na arqueologia. Não se pode
insistir sobre o papel estratégico de tais procissões. Uma consideração mais
atenta dos trechos sagrados insinua que o seu significado primordial é de outra
ordem: é significado religioso, não militar. Com efeito, eis os termos com que,
no fim da Escritura, o Apóstolo de Cristo se refere ao episódio:
“Foi pela fé que os muros de Jericó desmoronaram,
depois de se lhes haver dado a volta durante sete dias” (Hb 11, 30).
Esta breve frase estabelece um nexo entre a fé dos
israelitas e a conquista de Jericó; foi aquela que de Deus obteve esta. Verdade
é que entre a atitude de fé dos hebreus que assediaram Jericó e a conquista da
cidade mediaram os desfiles de sete dias. Tais cerimônias foram prescritas pelo
Senhor, não, porém, como se Javé visasse ensinar aos seus fiéis um estratagema
bélico, a manobra adequada….; foram inculcadas primariamente para que os filhos
de Israel tivessem ocasião de exercer a sua fé; praticando aqueles artifícios
(cujo valor militar é incerto e não importa muito no caso), os hebreus, antes
do mais, professavam crer no Auxílio de Deus, que dispensa máquinas de guerra
desde que Ele queira realizar algum desígnio. Depois de ter experimentado essa
fé, o Senhor recompensou-a com retumbante vitória.
Firme este princípio básico para a interpretação do
episódio, não nos seria lícito fechar os olhos a ulteriores considerações: é
bem possível que, para entregar Jericó aos israelitas em prêmio de sua fé, o
Senhor se tenha servido de causas segundas. Bons autores pensam que permitiu um
terremoto em momento oportuno,26 à semelhança do que se verificou posteriormente numa batalha contra os
filisteus.27 Não terá dispensado de pequenos combates o
exército de Josué; a estes alude Js 24, 11. 28 O clamor proferido pelo povo israelita imediatamente antes de assaltarem a
cidade parece não ser senão a terou-a ou o brado de ataque que marcava o início
das batalhas de outrora.29 Nem se exclui a ação devastadora da sede na cidade
cercada, pois a única fonte de abastecimento pode ter estado fora dos muros do
reduto, como às vezes acontecia (cf. Jt 7, 6). Em suma, é de crer que o texto
do livro de Josué não nos refere a história completa da tomada de Jericó, mas
se restringe ao episódio que realçava a influência do fator “fé” na campanha
bélica.
Quanto à arqueologia, as escavações levadas a
efeito desde 1908 no local da antiga cidade fizeram ver que a muralha de Jericó
construída após 1600 a.C. sofreu destruição; o seu lado oriental foi mesmo
totalmente arrasado. Os arqueólogos discutem sobre a época precisa em que se
deu o desastre, embora o assinalem geralmente ao intervalo que corre entre 1400
e 1200 a.C. (ora Josué tomou Jericó por volta de 1200 a.C.).
Em conclusão: as
manobras dos hebreus em tomo de Jericó têm primariamente o significado de um
testemunho da fé que Deus exigia de seu povo; a sua finalidade imediata era
provocar um bem de ordem espiritual numa gente rude como Israel, ou seja,
excitar uma sincera atitude religiosa perante o verdadeiro Deus. A resposta do
Senhor ao seu povo consistiu certamente numa intervenção poderosa, portentosa,
cujos pormenores não podemos descrever com exatidão, visto que o texto sagrado
não fornece os elementos para isto.
Fonte: https://cleofas.com.br/
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