Especial:
Companhia de Jesus no Brasil
(Em 2019, a Ordem
religiosa celebrou seus 470 anos no País)
(Publicado em 12 de dezembro de 2018)
No dia 29 de março de 1549, após 56 dias de viagem,
uma das maiores armadas portuguesas desembarcava no Arraial do Pereira, na
Bahia de Todos os Santos. Vindos de Portugal, os navios trouxeram mais de mil
homens, entre eles, Tomé de Sousa, primeiro governador-geral do Brasil, e um
grupo de seis religiosos que pisava pela primeira vez na Terra de Santa Cruz.
Liderados pelo padre Manoel da Nóbrega, então com 32 anos, os padres Antônio
Pires, Leonardo Nunes e João de Azpilcueta, junto com os irmãos Vicente
Rodrigues e Diogo Jácome, tornaram-se os primeiros jesuítas a chegar às
Américas.
470 anos depois, em 2019, a Província dos Jesuítas
do Brasil – BRA celebrará a chegada desses primeiros companheiros de Jesus no
País. Um ano para fazer memória da importância dos jesuítas na construção da
nação brasileira e um momento para refletirmos: qual o legado que a Companhia
de Jesus aportou na constituição da sociedade brasileira?
Para padre Carlos Alberto Contieri, coordenador do
Cuidado do Patrimônio Histórico e Cultural da Companhia de Jesus no Brasil, o
que moveu esses jesuítas foi o desejo de transmitir a doutrina cristã. “Somos
uma Ordem religiosa eminentemente missionária e que tem como finalidade ‘ajudar
as almas’. Essa expressão, típica do século XVI, dava a dimensão de ajudar as
pessoas, por meio de diferentes ministérios, como a pregação da Palavra, os
Exercícios Espirituais etc.”, explica.
Segundo o jesuíta, além do objetivo missionário,
também um fator externo presente na época foi fundamental: a expansão europeia.
“A Companhia não somente vai se aproveitar dessa era expansionista, mas ela
mesma vai, por causa da credibilidade que tem, ser solicitada para poder, de
fato, engrossar as esquadras expansionistas, tanto da Espanha quanto de
Portugal”, afirma padre Contieri.
No artigo Trajetória da educação jesuítica no Brasil (2016), o padre Luiz Fernando Klein lembra que, no contexto do século
XVI, evangelizar outros povos era um desejo da sociedade. “[…] não era de
estranhar essa missão, pois vigorava à época a concepção de sociedade de
cristandade, que não tolerava que nenhum povo ou grupo humano vivesse sem o
conhecimento de Deus e a obediência aos seus mandamentos”, explica o delegado
da Educação da CPAL (Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e
Caribe). Por isso, segundo ele, o grupo dos primeiros jesuítas a desembarcar no
Brasil “trazia a missão de difundir o Evangelho nas novas terras e catequizar
os indígenas para a fé católica”.
Nesse cenário, padre Contieri destaca a ousadia da
Companhia de Jesus. “A Ordem religiosa tinha apenas nove anos quando os
primeiros jesuítas desembarcam no Brasil. Evidentemente, nesses poucos anos,
ela vai crescer tremendamente. Mas, naquele momento, enviar seis jesuítas para
uma terra desconhecida, sem saber o que iriam encontrar, mostra o risco que a
Ordem religiosa assumia correr. Então, aceitar o risco é característica própria
da Companhia de Jesus”, ressalta o diretor do Pateo do Collegio e do Museu de
Arte Sacra dos Jesuítas.
FORMAÇÃO DO BRASIL
A ousadia da Companhia de Jesus em levar a Palavra
de Cristo para diferentes povos mostrou-se decisiva para a América Portuguesa.
Segundo Paulo Roberto Pereira, doutor em Letras pela UFRJ (Universidade Federal
do Rio de Janeiro) e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense), os
jesuítas foram essenciais para a difusão dos fundamentos da civilização cristã,
por meio do desenvolvimento do trabalho catequético e educacional com os povos
indígenas. “A Companhia de Jesus foi essencial para a constituição de uma nação
cujos fundamentos são a tolerância e o amor ao próximo. Através da criação de
escolas e do trabalho missionário, o intuito era abolir costumes primitivos dos
índios, como a antropofagia”, conta.
Paulo Roberto acredita que a influência dos
jesuítas na formação do Brasil é imensurável porque envolve aspectos
religiosos, sociais, econômicos, artísticos etc. “Como a Companhia de Jesus
esteve intimamente relacionada com a evolução da história política brasileira,
de 1550 a 1750, não se pode pensar em conhecer qualquer transformação do nosso
País sem que não se sinta a presença do legado jesuítico”, afirma.
Um desses legados está no desenvolvimento do
primeiro mapa do País. Segundo padre Contieri, a primeira cartografia do Brasil
foi feita por um jesuíta. “O mapa deu essa dimensão nacional ou, como podemos
dizer nos tempos atuais, consciência geopolítica. Uma consciência de todos os
pontos de vista, seja geográfico, político, mas também eclesial, pois deu a
noção do território que estava sendo trabalhado, evangelizado, unido e assim
por diante. A importância que isso teve e tem para o Brasil até hoje é enorme”,
diz o jesuíta.
“A Companhia de Jesus foi essencial para a constituição de uma nação cujos fundamentos são a tolerância e o amor ao próximo” (Paulo Roberto Pereira)
Padre Contieri, que também é reitor do Colégio São
Luís, destaca outros pontos marcantes da atuação dos jesuítas no Brasil. Para
ele, existem quatro elementos
fundamentais desse trabalho. O primeiro é o reconhecimento do território nacional. “Como apontado na elaboração da primeira cartografia brasileira, os
jesuítas foram os primeiros a percorrer o Brasil de norte a sul. A primeira
questão dessa consciência nacional foi dada pelos jesuítas pelo conhecimento
que eles tiveram do território nacional”, aponta ele. “Esse é um conhecimento
agudo, capaz de descrever com uma riqueza de detalhes impressionante não só a
natureza, mas também os costumes. Explorando o território, eles iam aglutinando
as pessoas em torno deles, em torno dos lugares onde eles iam ficando. Nisso,
os jesuítas foram fazendo essa ou aquela vila, fundando cidades e assim por
diante”, diz.
O segundo elemento ressaltado por padre Contieri é
a preocupação dos
jesuítas com as pessoas como um todo. “De
maneira prioritária, eles passaram a se preocupar com os indígenas que eram
ameaçados, inclusive, pela Coroa Portuguesa por meio da escravização e assim
por diante. Essa preocupação com as pessoas vai fazer, em primeiro lugar, com
que os jesuítas se adaptem aos costumes dos indígenas e não simplesmente
importem coisas da Europa”, afirma.
O ensinamento da doutrina cristã é o terceiro ponto. Padre Contieri destaca que, ao abordarmos esse
tema, devemos levar em consideração o contexto da época. “Quando falamos de
história e de um período tão distante, nós não podemos esquecer sobre a questão
da consciência possível. É importante ressaltar que não podemos julgar o
passado com a consciência que temos hoje. Desse modo, um dos elementos que deu
identidade a este País, e a Companhia foi responsável por isso, é a fé. A fé
cristã e a fé católica”, explica.
Para padre Contieri, o quarto elemento marcante da
atuação da Companhia de Jesus no Brasil é a educação (veja ao lado).
“Os jesuítas vão descobrir a educação como um meio eficaz de promover o bem
comum, portanto a educação vai dar, também aqui no Brasil, uma perspectiva de
identidade. Sem educação, não há identidade, pois é ela que nos permite dizer
quem somos e isso não só como pessoas, mas também quem nós somos como
comunidade e nação. A educação promovida pela Companhia de Jesus patrocinou
essa consciência nacional”, afirma.
PERSONAGENS
NACIONAIS
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Fundadores das primeiras cidades brasileiras, os
jesuítas foram pioneiros também na educação na colônia portuguesa. Em 1550,
criaram o primeiro colégio do Brasil, em Salvador, sendo responsáveis, nos anos
seguintes, pela fundação de inúmeras instituições de ensino nos mais variados
cantos do território brasileiro. O legado jesuíta é percebido não só na
educação, referência até hoje como ensino de qualidade, mas também na cultura,
na ciência e na política, entre outras áreas.
Na carta de apresentação da reedição do livro A história da Companhia de Jesus no Brasil (2004), de Serafim Leite, o padre Cesar Augusto dos Santos,
coordenador da publicação na época, afirmou: “Para escrever a História do
Brasil, é preciso primeiro escrever a História da Companhia de Jesus no Brasil,
disse o grande historiador Capistrano de Abreu. Isso porque, até o século
XVIII, as duas histórias se confundem”.
O professor Paulo Roberto ressalta também as
figuras jesuítas marcantes na formação do Brasil. “A influência dos membros da
Companhia de Jesus sobre a nascente sociedade brasileira abrangeu diversos
aspectos. Foi uma influência totalizante porque os jesuítas, em especial Manuel
da Nóbrega e José de Anchieta, no século XVI, participaram da fundação das
primeiras cidades do Brasil: Salvador, São Paulo e Rio de Janeiro”, conta.
Organizador do livro Obra completa de Manuel da Nóbrega (2017), ele fala sobre o mérito do primeiro provincial do Brasil.
“Nóbrega foi o responsável pela primeira missão jesuítica na América. Então,
sua contribuição é pioneira para a formação da nacionalidade brasileira com
textos reveladores do seu itinerário humano e intelectual”, afirma Paulo
Roberto. Além disso, ele destaca que o jesuíta foi o responsável pela peça
teatral Diálogo sobre a
conversão do gentio, considerada a primeira obra literária escrita no
Brasil, e pelo O Caso da Mesa da
Consciência, documento jurídico contra a escravidão indígena
praticada na colônia. Esses textos marcam o início do desenvolvimento do Teatro
e do Direito no País.
No livro A Grande Aventura dos Jesuítas no Brasil (2016), o jornalista Tiago Cordeiro conta que Nóbrega percorreu todo
o território que formava a colônia, de São Paulo a Pernambuco, e
conseguiu, com isso, mapear vilas e tribos. Essas peregrinações o
ajudaram a ter um olhar mais amplo sobre o País. “Nenhum europeu foi tão
importante para o início da colonização do Brasil quanto ele”, afirma o
escritor. O papel desempenhado por Nóbrega no século XVI se faz presente
até hoje no País, pois ele foi um dos responsáveis por nos dar essa visão
nacional, o que conhecemos atualmente como identidade brasileira.
“Nóbrega era um homem que tinha visão do todo. Além
disso, ele percebia nas pessoas – em particular, nos jesuítas que estavam com
ele – o que elas tinham de melhor e podiam oferecer para o serviço ou para a
missão”, explica padre Contieri. Para ele, “Anchieta não seria o que é hoje se
não fosse Nóbrega, se ele não tivesse dado ao jovem jesuíta a possibilidade de
desenvolver aptidões e seu potencial. Se ele ignorasse isso, Anchieta passaria
desapercebido pela história do Brasil, assim como tantos outros”.
Anchieta foi uma figura marcante na história do
País, não à toa é considerado o Apóstolo do Brasil. O jesuíta desembarcou em
terras tupiniquins ainda muito jovem, aos 19 anos, em 1553. Em pouco
tempo, tornou-se auxiliar de Nóbrega, dedicado professor e excepcional
linguista. “Além dessa face de intelectual humanista bafejado pelos ventos da Renascença
europeia, havia em Anchieta o homem de ação que participou, ativamente, da
fundação das cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e foi figura fundamental na
pacificação dos índios, quando os colonizadores tiveram de enfrentar a
Confederação dos Tamoios”, explica Paulo Roberto. Essa atuação política de
Anchieta demonstrou aos colonos o valor do diálogo.
“A celebração dos 470 anos da chegada dos jesuítas ao País é fundamental para que, fazendo memória do nosso passado, a gente possa efetivamente pensar a nossa missão atual” (Pe. Contieri)
Padre Klein, delegado da Educação da CPAL, conta
que Anchieta era conhecido por sua agilidade intelectual, pela criatividade
pedagógica e pela flexibilidade diante dos costumes das crianças. “Sabia
português, latim e espanhol e logo aprendeu o tupi, escrevendo a primeira
gramática e traduzindo o catecismo e outros textos para a catequese das
crianças. O desempenho polivalente de Anchieta granjeou-lhe dos seus biógrafos
diversos títulos, como educador do país, inaugurador da literatura, fundador do
teatro, poeta, epistológrafo, etnólogo, indigenista, pacificador etc.”, afirma
o jesuíta. A atuação da Companhia de Jesus foi um marco de destaque em diversas
áreas e é percebida e apontada, ainda hoje, por historiadores e especialistas.
Além de Nóbrega e Anchieta, outro jesuíta essencial
na história da Companhia de Jesus e do Brasil é o padre Antônio Vieira. Para
Paulo Roberto, ele é a maior figura intelectual da cultura luso-brasileira do
século XVII. “Embora nascido em Portugal, Vieira veio criança para o Brasil e
teve toda sua formação escolar na Bahia, revelando-se, desde muito jovem, o
gênio que causaria espanto nas principais cidades europeias, sendo recebido
sempre com louvores à sua excepcional eloquência e saber, de Lisboa (Portugal)
a Roma (Itália)”, conta o professor.
Paulo Roberto explica que “Vieira foi um
missionário implacável na defesa da liberdade dos índios brasileiros,
percorrendo as selvas da Amazônia e enfrentando os fazendeiros do Maranhão.
Entretanto, também foi o intelectual que frequentou os salões refinados da
elite europeia, principalmente como interlocutor privilegiado de papas e reis.
Sua obra completa, publicada por Edições Loyola, revela a dimensão do seu gênio
artístico e sua importância para o Brasil”, ressalta.
O professor da Universidade Federal Fluminense
afirma que tantos outros são exemplos de atuação no Brasil. “Entre os que se
destacam por seu pioneirismo estão, no século XVI, o padre Fernão Cardim, autor
dos Tratados da terra
e gente do Brasil, livro inovador com textos sobre a sociedade
tupinambá que influenciou os estudos da antropologia, e, no século XVII, André
João Antonil, pseudônimo do jesuíta João Antônio Andreoni, que escreveu o
primeiro livro brasileiro de economia ao apresentar um detalhado quadro das
principais riquezas do País nos seus dois primeiros séculos”, afirma.
Por tudo isso, 2019 foi um ano para olhar, de maneira criativa e agradecida, o passado e atuação dos primeiros jesuítas. “A celebração dos 470 anos da chegada dos jesuítas ao País é fundamental para que, fazendo memória do nosso passado, a gente possa efetivamente pensar a nossa missão atual. Acho que esse é o fato mais relevante, refazer a memória para que o nosso presente seja muito mais promissor, seja muito mais eficaz e esteja muito mais em conformidade com aquilo que Deus quer de nós”, finaliza padre Contieri.
*A edição completa dessa matéria foi publicada na
50ª Edição do informativo Em Companhia (Nov./Dez.
2018). Quer ler a edição completa e ver o vídeo que preparamos para você?
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