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É
natural que o casamento fracasse?
Por Padre Cormac Burke
O casamento é, obviamente, uma
das tendências mais naturais da natureza humana. Ora, se é assim, parece
difícil imaginar que, em circunstâncias normais, seja natural que o casamento
fracasse. Se tantos casamentos fracassam hoje em dia, talvez seja porque as
circunstâncias que cercam o matrimônio já não são normais. Ao invés de o
casamento estar fracassando para o homem, não será o homem que vem fracassando
em relação ao casamento? Não será que o erro, ao invés de residir no casamento,
reside no homem moderno, e mais especialmente no modo como ele encara o
casamento? Inclino-me a pensar que sim, porque me parece que há pelo menos três
pontos principais em que o homem encara mal o casamento:
1. a) o homem moderno tende a
“deificar” o amor humano, esperando dele o que – como qualquer cristão sabe –
só Deus pode dar;
1. b) tende também a inverter
a ordem de prioridades quanto aos fins do casamento, ou seja, pensa que o
casamento existe em primeiro lugar para exprimir o amor e desfrutar dele, e só
em segundo lugar (quando muito) para ter filhos.
1. c) tende ainda a encontrar
oposição entre esses dois fins, em lugar de vê-los como complementares.
Examinemos cada um destes
pontos mais de perto.
O QUE SÓ DEUS PODE DAR
A principal esperança do homem
é ser feliz. O ser humano foi feito para a felicidade e procura-a
necessariamente. Mas somente encontrará frustração se procurar a felicidade
onde ela não estiver…; ou se procurar uma felicidade ilimitada onde não houver
senão felicidade limitada…; ou se procurar a felicidade onde ela se encontra,
mas não do modo como se pode encontrá-la…
A felicidade pode ser
encontrada no casamento, mas não de um modo ilimitado; pedir ao casamento uma
felicidade perfeita é pedir demais. Contudo, o homem foi feito com a capacidade
e a sede de uma felicidade ilimitada. É por isso que se pôde dizer com tanto
acerto que “a mulher promete ao homem o que só Deus pode dar”. Qualquer pessoa
de fé sabe que a felicidade perfeita só pode ser encontrada de modo real e
permanente em Deus; e sabe também que essa felicidade não é possível nem
duradoura nesta terra, mas somente no Céu. O ateu ou semi-ateu esquece-se deste
dado. E quando o homem começa a esquecer Deus e perde a esperança na vida
eterna, o seu coração polariza-se nas coisas terrenas e procura satisfazer
nelas a sua sede de felicidade. Não o conseguirá.
Nem mesmo o casamento, que
dentre todas as coisas humanas é a que promete mais felicidade e é capaz de
dá-la, conseguirá satisfazer o seu desejo.
Quem tiver presente esta
realidade, procurará a felicidade no casamento, mas não esperará uma felicidade
perfeita, pois sabe que seria pedir-lhe o que ele não pode dar. A pessoa que
esquece Deus tenderá a “deificar” o amor humano, o que praticamente significa
garantir o fracasso do amor humano.
Se alguém espera demais do
amor e do casamento, está destinado a decepcionar-se profundamente.
Quando se põe demasiada
pressão numa caldeira, esta acaba por explodir; quando se exige demais do
casamento, este entra em colapso. Muitos divórcios de hoje encontram aqui a sua
explicação.
OS FILHOS COMO “ACESSÓRIOS
OPCIONAIS”
A segunda razão pela qual o
casamento muitas vezes não dá certo hoje em dia é a tendência do homem moderno
de criar uma nova ordem de prioridades quanto aos fins do casamento,
convertendo o amor mútuo no principal objetivo ou mesmo no objetivo total e
único do casamento. Ao mesmo tempo, reduz-se a possibilidade de ter filhos – um
ou dois filhos – a uma simples circunstância; a maioria dos casais quererá
tê-los como parte da sua auto-realização, ao passo que outros, de modo
igualmente legítimo, talvez prefiram um ou dois carros, uma ou duas casas…
Para muitas pessoas de hoje,
os filhos desempenham no casamento o mesmo papel que os acessórios num
automóvel: são “opcionais”. Inclua-os, se você gosta deles ou pode arcar com o
gasto.
Caso contrário, o casamento –
como o automóvel – “funcionará” perfeitamente sem eles.
A isto, a Igreja responde com
um rotundo “Não”. Somente em casos realmente excepcionais é que um casamento
“funcionará” bem sem filhos, sem os filhos que Deus quer dar a cada casal em
particular. Pode acontecer que Ele não queira que um determinado casal tenha
filhos, mesmo que marido e mulher estejam ansiosos por ter uma família. Essas
uniões (materialmente) estéreis podem ser felizes, se ambos os cônjuges
aceitarem a vontade de Deus. Nesse caso, receberão graças especiais de Deus
para aprenderem a amar-se um ao outro mais e mais com o passar do tempo. E
podem – e até devem – conquistar uma fecundidade espiritual, dedicando o tempo
e as energias que teriam investido nos filhos a atividades educativas e
apostólicas que ajudem os outros. A exclusão deliberada dos filhos, porém, quer
seja total, quer parcial, leva necessariamente qualquer casamento a “funcionar”
muito mal.
Trata-se de uma verdade – de
uma regra ou lei de vida – que se encontra implícita no ensinamento da Igreja a
respeito dos fins e prioridades do casamento.
OS “MOTIVOS” NEM SEMPRE SÃO
“FINS”
Uma vez que o homem
contemporâneo pode apresentar poucas evidências em favor das modernas filosofias
sobre o casamento, não lhe faria mal reexaminar o ensinamento da Igreja segundo
o qual “o matrimônio e o amor conjugal se ordenam por natureza para a
procriação e educação dos filhos [1].
Deverá refletir também sobre a
afirmação de que este ensinamento corresponde ao conceito autenticamente
natural do casamento.
Para começar, talvez seja útil
mostrar-lhe que a maioria das pessoas que consideram errado o ensinamento da
Igreja não compreendeu bem o que ela realmente ensina. Com efeito, ao fazer
essa afirmação, a Igreja não se refere aos motivos que os indivíduos possam ter
para casar-se, mas aos fins do casamento como instituição. E um pouco de
reflexão torna claro que os motivos pessoais e subjetivos não coincidem
necessariamente com os fins objetivos.
Sem dúvida, o principal motivo
que leva a maioria das pessoas a casar-se é o amor: “Por que quero casar-me com
essa pessoa e não com outra? Porque a amo”. Isto é evidente. Normalmente ter
filhos, conta, quando muito, como motivo secundário, e hoje em dia, em muitos
casos, nem sequer chega a apresentar-se como motivo.
Esta hierarquia de motivos –
em primeiro lugar, amor; em segundo (quando muito), filhos – pode facilmente
levar muitas pessoas a concluir que um casamento feliz e bem-sucedido depende
desses mesmos fatores e nessa mesma ordem; ou seja, a felicidade no casamento
depende principal ou mesmo exclusivamente do amor mútuo, e só secundariamente,
ou de modo algum, dos filhos. No entanto, não existe especial evidência de que
esta conclusão seja correta. Afinal de contas, uma coisa são os motivos para
casar-se, e outra bem diferente é o modo como o casamento traz felicidade.
COMO O CASAMENTO TRAZ
FELICIDADE
Não é errado casar-se por
amor, como não o é esperar felicidade do casamento. Mas as pessoas podem
enganar-se se fizerem depender todas as suas esperanças de felicidade no
casamento de um único fator – o amor mútuo -, quando a própria natureza
determinou que a felicidade no casamento proviesse da delicada e exigente
interação de dois fatores: amor e filhos. Em outras palavras, as pessoas podem
enganar-se ou fracassar por não terem compreendido como o casamento deve
“funcionar”, por não terem entendido o mecanismo pelo qual ele realiza todas as
suas possibilidades, entre elas a de trazer felicidade. E é neste sentido que o
ensinamento da Igreja pode resolver muitos problemas.
Somente a ignorância – ou algo
pior do que a ignorância – seria capaz de apresentar o ensinamento tradicional
da Igreja a respeito do casamento como resultado de um legalismo medieval, como
fruto da atitude de um grupo de inflexíveis clérigos celibatários que estariam
apontando o seu dedo reprovador para o homem moderno: “Você talvez esteja
interessado na felicidade. Mas isso não passa de um desses modernos contos de
fadas, e é melhor esquecê-lo se quiser continuar a ser um membro obediente da
Igreja. Porque a Igreja não está interessada em saber se o casamento traz ou
não felicidade. A Igreja só se interessa pela prole – traduzida em números – e
pela lei: indissolubilidade…”
A IGREJA E A FELICIDADE HUMANA
Trata-se de uma paródia
caluniosa e grosseira da atitude da Igreja. A Igreja está plenamente consciente
de que a verdade que ela sustenta – o ensinamento tradicional a respeito do
matrimônio – lhe foi confiada pelo próprio Cristo. Sabe, portanto, que não tem
autoridade para alterá-la ou deixar de proclamá-la. Ao mesmo tempo, contudo,
tem também plena consciência de que a sua concepção do casamento leva em conta
todos os elementos naturais dessa instituição, incluída a promessa de
felicidade que o casamento parece oferecer ao ser humano.
Quando a Igreja une os seus
filhos pelo vínculo matrimonial, é a primeira a alegrar-se. O divino Mestre
está sempre disposto a ser convidado para uma festa de bodas, e gosta de
confirmar a alegria de Caná. Mas é para Ele que o jovem casal deve olhar, se
deseja que o vinho da sua felicidade atual se torne mais saboroso e abundante,
e não se esgote nem se transforme em vinagre [2].
Quando o Senhor diz aos
cônjuges – através da Sagrada Escritura – que são uma só carne e que não podem
separar-se (cf. Mt 19, 6), que devem crescer e multiplicar-se (cf. Gên 1, 28);
ou quando ensina através da sua Igreja (mais uma vez com palavras do Vaticano
II) que “a instituição do matrimônio e o amor dos cônjuges estão pela sua
índole natural ordenados para a procriação e educação dos filhos, nos quais
encontram a sua coroa de glória” [3], o que faz é pensar na felicidade deles:
não somente na felicidade eterna (embora seja esta a única que importa
essencialmente), mas também na felicidade relativa, mas muito real, que podem
alcançar aqui na terra, e que Ele quer que alcancem.
DO AMOR CONJUGAL AO AMOR
FAMILIAR
Talvez possamos explicar
melhor a questão desta forma. Parece evidente que a busca de uma promessa de
felicidade no casamento faz parte da ordem natural do homem; ora bem, se – tal
como a Igreja ensina – também faz parte da ordem natural ter filhos, mais ainda
do que desfrutar do amor, então – a não ser que a natureza esteja mentindo ou
seja incoerente – a felicidade no casamento dependerá, normalmente e a longo
prazo, da geração e educação dos filhos mais do que do amor entre marido e
mulher e dos modos de expressão desse amor. Sem dúvida alguma, depende de ambos
os fatores; mas o ensinamento da Igreja parece sugerir que, em última análise,
os filhos têm uma influência muito mais decisiva na formação da felicidade
conjugal.
Suponhamos agora que alguém se
levantasse e dissesse que essa afirmação é absurda, pois equivaleria a
considerar um elemento fisiológico (a procriação) mais importante do que uma
realidade espiritual (o amor). Eu lhe responderia que não é bem isso o que se
quis dizer. O que se quer dizer é que o amor no casamento, certamente mais
amplo do que o mero amor físico, é também mais amplo do que o mero amor
conjugal.
O amor no casamento não está
destinado a permanecer apenas como amor entre duas pessoas.
Provavelmente nem sequer
sobreviverá, se não ultrapassar esse estágio. A sua vocação natural é expandir-se,
estender-se, incluir cada vez mais elementos. O amor conjugal está na verdade
projetado para se tornar amor familiar; está destinado a crescer e, nesse
crescimento, a incluir e acolher outros seres humanos, que serão precisamente o
fruto desse amor. “O verdadeiro amor mútuo transcende a comunidade de marido e
mulher e estende-se aos seus frutos naturais, os filhos”*. E com isto chegamos
ao terceiro ponto das nossas considerações.
A FELICIDADE CALCULISTA
Uma época que não encara os
filhos como uma conseqüência natural do amor conjugal pode estar a caminho de
encará-los como seus inimigos naturais. Foi por isso que mencionei, como o
terceiro dos principais motivos do malogro de tantos casamentos atuais, o
avanço da tendência moderna não só de antepor o amor mútuo aos filhos, mas de
opor os dois fins entre si, em vez de ver que são complementares.
Influenciadas pela mentalidade
e pela propaganda do controle da natalidade, muitas pessoas incidem nesse
engano que acabo de delinear: pensam que a felicidade humana no casamento
depende essencialmente do amor, e muito menos – ou nada – da paternidade.
Gostaria de saber quantos estão conscientes de que esta idéia pode representar
o primeiro de uma série de passos que acabarão por arrastá-los muito mais longe
do que tinham pensado ou desejado, na esteira de uma filosofia que tem uma
força poderosa e uma direção própria.
Analisemos um pouco mais
profundamente este primeiro passo na filosofia antinatalista, e como é fácil
deixar-se guiar por ela – na trilha descendente do calculismo, não no caminho
ascendente do amor.
O primeiro princípio desta
“filosofia” moderna do casamento diz que o amor é o ingrediente essencial e
suficiente da felicidade conjugal, e que os filhos devem ser vistos apenas como
uma possível ajuda – mas também como um possível obstáculo – para esse amor.
Com efeito, os filhos trazem consigo a sua carga de exigências, e hoje em dia
vem ganhando popularidade uma concepçãodo amor que não quer submeter-se a
exigências. Com esta mentalidade, o amor é pensado acima de tudo em termos de
satisfação pessoal (e não de autodoação, de crescimento por alcançar um ideal
elevado, com tudo o que isso implica de esforço e sacrifício); e, em
conseqüência, o vago anseio de paternidade é insuficiente para compensar as “desvantagens”
de ter filhos. Isto é especialmente verdade no caso das mulheres, que tendem
cada vez mais a sentir o peso da gravidez e o cuidado das crianças como um
preço excessivamente alto a pagar pelas possíveis alegrias da maternidade.
A felicidade é o resultado de
uma dedicação generosa a alguém ou a alguma coisa que vale a pena.
É o resultado de saber dar-se
ainda que custe, e sem preocupar-se pelo fato de que custa. A felicidade não é
algo que se possa comprar com dinheiro ou obter através de cálculos. No
entanto, a moderna filosofia do casamento está repleta de cálculos, quase todos
cálculos frios, muitos deles totalmente egoístas e totalmente errados.
O primeiro cálculo é – como
vimos – o de que bastam duas pessoas para que uma faça feliz a outra. O segundo
cálculo é que um determinado número de filhos – um ou dois – pode reforçar essa
felicidade, ou pode prejudicá-la… O terceiro cálculo – que para muitos vem
adquirindo a força de um dogma – é que ultrapassar um determinado número de
filhos (dois ou três no máximo) certamente contrariará a felicidade e o amor
conjugais. Ora bem, a partir do momento em que se conclui que um determinado
número de filhos – quatro, por exemplo – é inimigo do amor, é fácil acabar por
considerar qualquer número – mesmo um só – como inimigo. Esta é, simplesmente,
a conclusão lógica de um casamento submetido ao controle da natalidade.
Quando duas pessoas começam
por pensar que “foram feitas uma para a outra”, podem acabar por julgar que não
foram feitas para mais ninguém, e que não precisam de mais ninguém; que
qualquer outro – mesmo um filho, e especialmente o filho – pode ser um rival do
seu amor. Uma ou outra (ou ambas) podem prever – e recusar – a possibilidade de
que o filho absorva parte do amor que o cônjuge lhe dedica de modo exclusivo.
Não há dúvida de que muitas pessoas casadas, ao tornarem-se pais, experimentam
algumas reações de ciúme quando percebem que já não são objeto exclusivo do
afeto do outro. É natural sentir alguns ciúmes passageiros neste sentido, mas
também o é saber superá-los. O que não é natural, quando se prevê esta possível
nova orientação ou ampliação do amor do cônjuge, é querer evitar o filho que a
causará. Semelhante atitude é mera expressão de um espírito possessivo, egoísta
e avaro: a perfeita antítese do amor.
O amor sexual e a procriação
estão associados um ao outro nos planos de Deus, e assim unidos constituem um
inabalável fundamento natural para a felicidade no casamento. É claro que o
homem pode separar o que Deus uniu. Mas esta separação antinatural pode deixar
o amor conjugal sem suporte. E um casamento sem o seu suporte natural entra
logicamente em colapso.
Os que pensam que a filosofia
do controle da natalidade favorece o casamento e o amor deveriam reparar melhor
nas suas possíveis conseqüências. Aldous Huxley parodia-as muito bem no seu
livro, Admirável Mundo Novo, atroz sátira de uma sociedade futura sem alma, que
hoje já parece muito mais verossímil do que há cinqüenta anos, quando Huxley a
concebeu. Essa “admirável” e “liberada” visãode um futuro em que tudo é
planejado – o amor e o sexo identificados (ou melhor, um amor desorientado e
sufocado pelos instintos animais descontrolados); o matrimônio, proscrito e
abolido; os filhos (o “repovoamento”) reduzidos a produtos de laboratório nas
mãos seguras e exclusivas do Estado -, essa visão não passa de uma projeção
fantasiosa, mas coerente, da filosofia do controle da natalidade.
(BURKE, Cormac Pe.; AMOR E
CASAMENTO – Editora Quadrante, Brasil, 1991).
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