Papa Francisco sendo entrevistado pela jornalista Bernarda Llorente, da agência de notícias argentina Télam (Vatican Media) |
Entrevista da agência Télam com o Papa Francisco. O Papa
reitera que os conflitos são gerados pela falta de diálogo e expressa desilusão
perante a incapacidade da ONU de detê-los. No balanço de quase dez anos de
pontificado, a consciência de ter atuado como um catalisador das exigências do
Colégio dos Cardeais. Também o convite à sua América Latina para se libertar
dos "imperialismos exploradores", promovendo o encontro entre povos e
soberania.
Antonella Palermo - Vatican
News
"Não podemos voltar à
falsa segurança das estruturas políticas e econômicas que tínhamos antes".
Esta é uma das passagens mais significativas da longa entrevista concedida pelo
Papa Francisco a Bernarda Llorente, da principal agência de notícias da
Argentina, a Télam. O Pontífice articula suas reflexões desde a pandemia até o
cuidado da casa comum, dos jovens ao compromisso na política, da Igreja na
América Latina à crise das instituições, voltando ao grande tema da guerra e
por fim tentando fazer um balanço de seu pontificado. É, portanto, sobre a
questão central de como as crises são tratadas ou não são tratadas que o Papa
se move primeiramente, que nos lembra que, se estes compromissos não forem
enfrentados, se transformam em conflito. "E o conflito é algo fechado,
busca a solução dentro de si mesmo e se autodestrói".
África sem
vacinas: exemplo de má gestão da pandemia
Francisco fala sobre a atitude
que está sendo imposta diante da epidemia do coronavírus que, confessa, não lhe
agrada. O exemplo dado é o da África deixada sem um suprimento suficiente de
vacinas; ele vê, em suma, outros interesses na administração, à luz do fato de
que - afirma - "algo não funcionou". "Usar a crise em proveito
próprio significa sair mal e, acima de tudo, sair sozinho", reitera ele.
E, portanto, critica a presunção de que um único grupo possa sair da crise:
segundo o Papa isso é uma ilusão. Francisco fala de "salvação parcial,
econômica, política ou de certos setores do poder".
A guerra é uma
falta de diálogo
Entre as crises mais
dramáticas está a guerra, à qual a entrevista dedica um exame aprofundado na
segunda parte. A referência à Ucrânia é explícita, mas o Papa também lembra -
em uma abordagem progressiva de nossos dias - as tragédias de Ruanda, Síria,
Líbano e Mianmar. "Uma guerra, infelizmente, é uma crueldade por dia. Na
guerra, não se dança o minueto, mata-se", aponta amargamente o Pontífice,
denunciando novamente a estrutura de venda de armas que a favorece. Também
retorna ao conceito de "guerra justa": "Pode haver uma guerra
justa, existe o direito de se defender, mas a forma como o conceito é usado
hoje deve ser repensado", diz Francisco, que mais uma vez chama a atenção
para a importância de saber ouvir uns aos outros - mesmo simplesmente na vida
comum - para poder dialogar e assim dissipar qualquer possibilidade de
conflito. A este respeito, ele recorda sua visita ao cemitério de Redipuglia
para o centenário da guerra de 1914, suas lágrimas impossíveis de conter.
Também aconteceu no cemitério de Anzio: "Que crueldade", comenta.
Pensando nos desembarques na Normandia e nos 30 mil jovens que perderam suas
vidas na praia pelos nazistas, se pergunta: "Isso é justificável? E
convida as pessoas a visitarem cemitérios militares na Europa, pois isso ajuda
a perceber isso.
A ONU não tem o
poder de se impor para acabar com as guerras
À luz destas observações, com
a franqueza com que o Papa está acostumado a se expressar, confessa sua
desilusão com o trabalho das Nações Unidas que - por mais que ajudem a evitar
guerras (pensando em Chipre, por exemplo) - não consegue detê-las, "não
tem nenhum poder". À solicitação da jornalista, o Papa chega ao ponto de
dizer que existem algumas "instituições beneméritas" em crise (sobre
as quais reserva alguma esperança) e outras empenhadas na resolução de questões
internas. Apela para o uso de coragem e criatividade em instituições
internacionais para superar o que ele define de situações "mortais".
A natureza
"não perdoa”
A outra crise, a ambiental –
sobre a qual o Papa fala mais uma vez, antes de sintetizar o estilo que inspirou
seu Magistério nestes quase dez anos de pontificado - não é negligenciada.
Francisco fala do uso distorcido que o homem faz da natureza, que, no entanto,
"faz você pagar": você a usa, ela o sobrecarrega. Estamos agredindo
continuamente o universo. "Usamos mal nossas forças", afirma o Papa.
A preocupação com o aquecimento global o leva a recontar mais uma vez a gênese
da encíclica "Laudato Si", e a apontar que a natureza não é
vingativa, mas "não perdoa", se pusermos em marcha processos
degenerados.
Confiança nos
jovens, mesmo que sejam desencorajados. Tradição não é retroceder
O universo da juventude ocupa
uma grande parte da entrevista. Em particular, o Papa se detém no
desengajamento político que parece estar emergindo inexoravelmente: "eles
estão desanimados", diz Francisco, que inclui acordos mafiosos e corrupção
entre as causas do desencantamento. Daí o convite do Papa para aprender, em vez
disso, "a ciência da política, da convivência, mas também da luta política
que nos purifica do egoísmo e nos faz progredir". No entanto, o Papa
mostra que tem confiança nos jovens, mesmo que eles geralmente não vão à missa:
o importante é ajudá-los a crescer e acompanhá-los. Em seguida, citando o
compositor Mahler, lembra: "A tradição é a garantia do futuro". Não
se trata de uma peça de museu. É o que lhe dá vida, desde que faça crescer. É
completamente diferente de ir para trás, que é um conservadorismo
insalubre".
A filosofia da
alteridade para derrotar os "males do espelho”
Francisco também descreve o
que ele considera os males de nosso tempo: narcisismo, desencorajamento e
pessimismo, os males da chamada psicologia do espelho. Segundo ele, eles são
combatidos com o senso de humor "que torna mais humano" e com o
confronto, com a filosofia da alteridade.
Em 2023, dez
anos de pontificado: reuni sugestões das reuniões pré-conclave
Em vista dos dez anos da sua
eleição em 2023, ele foi solicitado a fazer um balanço de sua atividade no
Trono de Pedro. O Papa Francisco enfatiza que "reuniu tudo o que os
cardeais haviam dito nas reuniões pré-conclave". "Creio que nada seja
original da minha parte", admite, "mas eu comecei o que todos
tínhamos decidido juntos". É em essência o estilo que produziu a nova
Constituição Apostólica Praedicate Evangelium, o resultado de oito
anos e meio de trabalho e consultas que já estavam em preparação há algum
tempo. Surgiu assim a experiência missionária da Igreja. O Papa insiste em não
reivindicar toda a autoria, no sentido de que foi como o catalisador de um
processo: "Isto é, não são minhas ideias. Que fique claro. São as ideias
de todo o Colégio dos Cardeais que pediram isso".
A marca
latino-americana
O Papa Bergoglio reconhece que
existe uma abordagem tipicamente latino-americana de ser uma Igreja em diálogo
com o povo de Deus, que ele inevitavelmente imprimiu no Magistério. Aproveita a
oportunidade, a este respeito, para lembrar o fato de que a Igreja "foi
distorcida quando o povo não pôde se expressar e acabou sendo uma Igreja de
chefes, com agentes pastorais no comando". Ele recomenda a leitura do
filósofo argentino Kush "quem melhor capturou o que seja um povo".
Francisco assinala que o povo latino-americano soube manifestar seu verdadeiro
protagonismo precisamente no âmbito religioso, mas não esquece de mencionar as
tentativas de ideologização da própria Igreja, como instrumento de análise
marxista da realidade para a Teologia da Libertação. "Foi uma
instrumentalização ideológica, um caminho de libertação - digamos assim - da
Igreja popular latino-americana. Mas as pessoas são uma coisa, os populismos
são outra”, esclarece.
Encontro de
povos e soberania: o trabalho para a América Latina, além das ideologias
"A Igreja
latino-americana apresenta em alguns casos aspectos de subordinação
ideológica", continuou o Papa, "houve e continuará havendo, porque
esta é uma limitação humana. Mas é uma Igreja que soube e sabe expressar cada
vez melhor sua piedade popular". O Pontífice reitera a importância de
olhar o mundo a partir das periferias existenciais e sociais, precisamente à
luz da ligação entre estas e o povo. Daí o convite para visitar idosos
aposentados, crianças, bairros, fábricas, universidades, "onde se vive o
cotidiano. E é lá que o povo se mostra". O olhar de Francisco para seu
continente natal é o de quem o vê em um caminho lento, de luta, do sonho de San
Martín e Bolívar, pela unidade. "Sempre foi vítima, e será sempre uma
vítima até ser completamente liberada dos imperialismos exploradores",
assinala, observando que todos os países têm este problema. Por isso, ele pede
que se trabalhe para o encontro de "todos os povos da América Latina, além
das ideologias, com soberania, para que cada povo sinta que tem sua própria
identidade e, ao mesmo tempo, precise da identidade do outro. Não é
fácil", admite o Papa.
Atenção às
distorções da realidade na mídia: ser honestos
Quanto à importância da voz do
Papa Francisco no mundo de hoje, em nível social e político, o pontífice aponta
para a coerência, entre o que ele sente diante de Deus e os outros, que guia
suas ações e as suas afirmações. E acrescenta que não está preocupado se não
conseguirem realmente mudar as coisas, embora ele queira que mudem. Reflete
sobre o fato de que tem que ter muito cuidado com o risco de manipulação de seu
pensamento pela mídia e dá o exemplo de uma controvérsia que surgiu, no
contexto dos comentários sobre a guerra na Ucrânia, pela omissão da condenação
de Putin. E diz: "A realidade é que o estado de guerra é algo muito mais
universal, mais sério, e não existem os bons e os malvados. Estamos todos
envolvidos e isto é o que temos que aprender". De modo mais geral,
Francisco adverte contra as tendências da mídia que levam à distorção da
realidade enquanto comunicar, observa, significa "engajar-se
bem". E, a este respeito, evoca os quatro "pecados da
comunicação": desinformação (dizer o que é
conveniente); calúnia (inventar em detrimento de uma
pessoa); difamação (atribuir a alguém um pensamento que
entretanto mudou); coprofilia (amor à sujeira, gosto pelo
escândalo). "A comunicação é algo sagrado" e deve ser feita com
"honestidade e autenticidade", salienta o Papa que, portanto, pede
aos meios de comunicação uma objetividade saudável, "o que não significa
que se trate de água destilada". "O comunicador, para ser um bom
comunicador, deve ser uma pessoa correta", afirma.
A vida é bela se
soubermos esperar, no estilo de Deus
Na parte final da entrevista, Bergoglio recorda a época
do conclave, a mudança em sua vida após sua eleição, mas também retorna para
recordar sua vida antes de tornar-se pontífice: 'É a história de uma vida que
continuou com muitos dons de Deus, muitas falhas de minha parte', confessa,
muitas posições não tão universais. Na vida se aprende a ser universal, a ser
caridoso, a ser menos maldoso". Fala de altos e baixos no seu caminho e é
grato por tantos amigos que o ajudaram, o acompanharam tanto que ele nunca se
sentiu sozinho. E, em uma espécie de jogo de espelho para o qual a
entrevistadora o convida, Francisco diz com uma pitada de ironia:
"Pobrezinho, o que te aconteceu! Mas não é tão trágico ser papa. Pode-se
ser um bom pastor". A conversa termina com uma espécie de autoanálise da
personalidade de Bergoglio desde que se tornou papa: "Em minha vida tive
períodos rígidos, nos quais pretendi demais. Então percebi que não se pode
seguir esse caminho, que é preciso saber guiar. Esta é a paternidade que Deus
tem". Ele não se esquiva de criticar sua atitude quando era bispo, na qual
ele admite ter usado de severidade excessiva. Diz que a vida é bela se
soubermos esperar, como Deus faz conosco, um traço do estilo de Deus que ele
teria amadurecido com o tempo. "Teremos o Papa Francisco por mais um
tempo?" pergunta a entrevistadora. "Deixemos a resposta para Aquele
que está no alto", brinca o Papa.
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