Flores, velas, pequenos calçados na vigília em recordação das crianças indígenas vítimas das escolas residenciais no Canadá (Foto by Cole Burston/AFP) |
Em artigo publicado no "La Civiltà Cattolica",
o jesuíta padre Federico Lombardi repassa a questão da colonização dos povos
indígenas e das escolas residenciais no Canadá, também à luz do Magistério da
Igreja.
Marília Siqueira - Cidade do
Vaticano
Francisco viaja de 24 a 30 de
julho para o Canadá como já foi divulgado em seu programa de
viagem. O Papa garantiu que esta será uma peregrinação
eminentemente penitencial, que "possa contribuir
para o caminho de cura e reconciliação já empreendido", em referência às
políticas de assimilação cultural que, no passado, prejudicaram gravemente as
comunidades nativas na América do Norte.
Pe. Federico
Lombardi explica
O artigo do padre Federico foi
publicado no jornal italiano "La Civiltà Cattolica” no dia 16 de
julho. O sacerdote faz uma apresentação da viagem apostólica do Papa Francisco
ao Canadá. E trazemos alguns pontos importantes deste artigo. Padre Federico
Lombardi (Saluzzo, 29 de agosto de 1942) é um sacerdote italiano e jornalista
da Companhia de Jesus. De 2006 a 2016 foi diretor da Sala de Imprensa da Santa
Sé. Em 1º de agosto de 2016, com carta do cardeal secretário de Estado Pietro
Parolin, foi nomeado presidente do conselho de administração da Fundação
vaticana Joseph Ratzinger-Bento XVI.
A promessa feita
por Francisco
Entre os dias 28 de março e 1º
de abril de 2022, uma delegação de representantes dos povos indígenas do Canadá
esteve em Roma, acompanhada por bispos canadenses, para se encontrar com o
Papa. “Gostaria de lhes dizer que a Igreja está do seu lado e quer
continuar caminhando com vocês”, disse Francisco
no encontro conclusivo, renovando seu desejo de visitar
o Canadá, mas “não no inverno”, brincou.
Quais e quantos
são esses povos indígenas?
Estamos falando de três
realidades distintas. Em primeiro lugar, as Primeiras Nações, que inclui os
grupos que estavam presentes no território canadense antes da chegada dos
europeus. O nome "primeiras nações" é devido a dignidade dos
primeiros povos.
O segundo grupo é os Métis
("mestiços"), nascido do encontro entre indígenas e europeus. O
Canadá é o único país em que tal grupo é reconhecido com sua própria identidade
específica.
O terceiro componente é o dos
Inuit, que são os povos das terras do norte, ou seja, as terras do Ártico, e
que no passado eram frequentemente chamados de “esquimós”.
Cada um desses três grupos
possui suas próprias assembleias ou órgãos representativos, com autoridade
própria. Eles afirmam fortemente sua identidade cultural.
As premissas dos
problemas
De fato, a delegação que veio
a Roma para encontrar o Papa era composta por estes três grupos, com roupas
próprias e sinais característicos. Cada um dos grupos teve seu encontro pessoal
com o Francisco, e depois uma audiência comum no final, na qual o Santo Padre
dirigiu-se a todos juntos.
As premissas dos problemas que
têm surgido de forma cada vez mais evidente nas últimas décadas - em nível
nacional e com repercussão internacional – refere-se naturalmente à época dos
"descobrimentos" do continente americano pelos europeus e ao processo
de sua colonização pelas potências do tempo: Espanha e Portugal nas Américas
Central e do Sul, França e Inglaterra no Norte.
A posição da Igreja Católica
tem sido radicalmente crítica de todas as formas de colonialismo. Em seu
magistério há atestados antigos e oficiais sobre a dignidade dos povos
indígenas, a começar pela famosa Bula Sublimis Deus, de Paulo III
em 1537: "Definimos e declaramos que os mencionados índios e todos
os outros povos que posteriormente venham a ser descobertos pelos cristãos, de
modo algum devem ser privados de sua liberdade e posse de seus bens, mesmo que
não tenham a fé em Jesus Cristo; e que podem e devem gozar livre e
legitimamente de sua liberdade e posse de seus bens; não devem de forma alguma
serem reduzidos à escravidão".
Essa doutrina foi
posteriormente sempre reafirmada com autoridade pelos Papas. Não se pode negar,
no entanto, que antes da Bula Sublimis Deus, havia declarações e
debates nas quais se fazia referência sobretudo à apropriação de terras, em
particular pelos poderes "católicos", sob a luz do entrelaçamento
entre os interesses da evangelização e os da colonização. Com o passar do tempo
falou-se de uma “doutrina do descobrimento” (discovery doctrine) como um
conceito de direito internacional, que no século XIX se afirmava nos casos
entre os novos estados da federação americana e os povos indígenas.
Do lado indígena pediu-se
insistentemente a rejeição da "doutrina do descobrimento", e várias
denominações cristãs não católicas se pronunciaram nesse sentido entre 2009 e
2013. Por isso, continua sendo necessário reafirmar o caráter histórico,
espiritual e a distância conceitual percorrida pela Igreja Católica para
alcançar ao longo do tempo uma visão cada vez mais clara e uma afirmação cada
vez mais decisiva, em todos os lugares apropriados, da dignidade e dos direitos
dos povos indígenas e da reconciliação entre evangelização e colonialismo.
Sobre a doutrina
da descoberta
Sobre a discussão da doutrina
da descoberta, é importante ver documento da comissão justiça e paz da
conferência episcopal canadense e a carta que apresentam: www.cccb.ca/wp-content/uploads/2017 /11/
resposta-católica-à-doutrina-da-descoberta-e-tn.pdf
Também o Santo Padre, na Exortação Apostólica Querida Amazônia, n.
19 diz: “ao mesmo tempo, não podemos negar que o trigo se misturou com
o joio e que os missionários nem sempre estiveram ao lado dos oprimidos,
envergonho-me e mais uma vez peço humildemente perdão, não só pelas ofensas da
própria Igreja, mas pelos crimes contra os povos indígenas durante a chamada
conquista da América”
Um caminho
trilhado também por João Paulo II
Neste caminho, em tempos mais
próximos, as palavras e os atos de São João Paulo II e algumas de suas viagens
ao continente americano (mas também a outros lugares, como Austrália e Nova
Zelândia) devem ser lembrados por sua grande importância.
Ao Canadá especificamente, não
se pode esquecer dos dois encontros com os povos indígenas durante sua viagem ao
país em 1984, e especialmente o terceiro, que ocorreu em 20 de
setembro de 1987.
Por ocasião dos 500 anos da
evangelização da América, em 12 de outubro de 1992, em Santo Domingo, São
João Paulo II dirigiu uma mensagem a todos
os povos indígenas do continente americano.
O contexto
histórico do Canadá
Mas para o Canadá, como em
todos os lugares, as questões relacionadas aos povos indígenas vão muito além
de suas relações com a Igreja Católica ou outras Igrejas cristãs. O Canadá
nasceu em 1867 como um domínio federal do império inglês. Em 1876 foi
promulgado o Indian Act, um documento de referência legal e um
plano de atividades do governo canadense para a gestão dos assuntos indígenas,
ou seja, das questões relativas aos povos indígenas no contexto do novo país.
A política do Canadá em
relação aos povos indígenas na época era caracterizada pela crença,
culturalmente dominante na época nas regiões civilizadas, da inferioridade das
etnias e culturas indígenas e sua inevitável extinção, portanto, existia uma
pressão pela assimilação dos povos indígenas para uma sociedade de base
europeia, como a única perspectiva realista de futuro para eles.
As grandes manadas de búfalos
foram exterminadas durante o século XIX, forçando os povos caçadores a serem
agricultores. Aos indígenas foram atribuídos - com a formalidade dos
"tratados" - os territórios das "reservas", onde deveriam
ter permanecido confinados e em certa medida também "protegidos" da
invasão dos brancos, pois no final prevaleceu o interesse deste último.
Junto com o sistema de
"reserva", outra pedra angular da política canadense de
"assuntos indígenas" foi por muito tempo o sistema de "escola
residencial", onde crianças e jovens de povos indígenas eram empurrados, e
às vezes forçados a serem educados. O regime era realizado a partir da
separação de suas famílias, comunidades e culturas, possuía métodos de
disciplina rígida, com imposição do uso exclusivo da língua inglesa, de
atividades de aprendizado e profissões adequadas à assimilação na sociedade de
estilo europeu e de práticas religiosas cristãs.
As escolas
residenciais
Estas escolas, desejadas e
financiadas pelo governo, foram confiadas a sua gestão a numerosas entidades
das Igrejas cristãs que, no âmbito das suas missões, se ocupavam
tradicionalmente de atividades educativas, e que assim se envolviam massiva e
diretamente na responsabilidade da implementação da política canadense para os
povos indígenas.
O sistema de escolas
residenciais historicamente foi abrangente mais de um século. Havia um total de
139 escolas, distribuídas por todo o país.
Testemunhos decisivos e
fidedignos sobre estas escolas e as condições de vida que as caracterizavam não
faltaram desde as primeiras décadas do século XX. Especialmente no que diz
respeito às graves deficiências de saúde, má nutrição, rigidez e dureza dos
métodos educativos, separação das famílias e dos ambientes de origem. A
mortalidade foi muito alta, um dos fatores foi a tuberculose e outras doenças
que fizeram muitas vítimas.
Já na década de 1950, o
sistema das escolas residenciais começou a ser desafiado por conta destes
testemunhos, que muitas vezes eram dramáticos. Ex-alunos e seus familiares
falaram sobre os sofrimentos e abusos de vários tipos sofridos. Esses relatos
tornaram-se frequentes e tiveram cada vez mais eco na imprensa.
Os povos indígenas tornaram-se
mais ativos em se organizar, tomar as rédeas de sua situação e apresentar suas
posições e demandas. Em 1991, uma Comissão Real de Povos Indígenas foi formada
para estudar e redefinir a política do governo em relação às "nações
historicamente originais do país". Posteriormente, várias ações coletivas
foram movidas por grupos indígenas contra o estado canadense e contra
instituições das Igrejas Cristãs pelos abusos cometidos e os danos
consequentes. Isso levou ao "Acordo sobre escolas residenciais
indígenas", de 2005, que previa medidas de compensação e intervenção em
favor dos povos indígenas, e à criação, em 2008, da Comissão da Verdade e
Reconciliação do Canadá.
Representantes de povos indígenas com o Papa Francisco na Sala Clementina, em 1 de abril de 2022. |
O envolvimento
da Igreja e o pedido do Papa para realizar uma viagem
As Igrejas cristãs estiveram
profundamente envolvidas no processo da sociedade canadense, especialmente sob
algumas perspectivas. Uma destas perspectivas era: a participação direta e
corresponsável no sistema educativo das escolas residenciais, cuja gestão era
confiada aos órgãos eclesiásticos.
Portanto, já no início dos
anos noventa temos, do lado católico, importantes declarações sobre a questão
dos internatos indígenas, com o reconhecimento explícito de erros e
deficiências. Firmou-se o compromisso de solidariedade com os povos indígenas e
sua busca por dignidade e justiça. Problemas que têm raízes profundas e
distantes exigem muito tempo, trabalho e sofrimento compartilhado para se
chegar a uma solução. O processo de debate, reflexão e diálogo com os povos
indígenas e sobre as escolas residenciais continua, e podemos dizer que se
acentua e se intensifica, até por questões judiciais complexas.
Um dos pedidos feitos pela
Comissão da Verdade e Reconciliação em relação à Igreja Católica em seu
relatório final de 2015 que envolve diretamente o Papa é formulado da seguinte
forma: "Pedimos que o Papa apresente um pedido de perdão às vítimas
(uma apologia aos sobreviventes) e às suas famílias e comunidades pelo papel do
Igreja Católica Romana no abuso espiritual, cultural, emocional, físico e
sexual de crianças das primeiras nações, inuit e métis em escolas residenciais
administradas por católicos. Pedimos que este pedido de perdão seja semelhante
ao apresentado em 2010 às vítimas de abusos irlandeses e que ocorra dentro de
um ano da publicação deste relatório e seja realizado pelo Papa no Canadá”.
Os bispos do Canadá, por sua
vez, publicaram um forte pedido de perdão em 24 de setembro: "Como
entidade católica que estiveram diretamente envolvidas na gestão das escolas e
que já apresentaram seus próprios pedidos sinceros de perdão, nós, bispos
canadenses, expressamos nosso profundo remorso e pedimos perdão”.
Os bispos do Canadá
continuaram afirmando que estavam "totalmente comprometidos com
o processo de cura
e reconciliação" e, em resposta ao pedido de envolver
pessoalmente o Papa Francisco nesse processo, convidaram uma representação dos
indígenas - sobreviventes da escola, idosos e sábios - para ir com eles a Roma
para encontrar-se com o Papa. Concluíram se comprometendo a trabalhar com a
Santa Sé e parceiros indígenas em vista de uma visita pastoral do Papa ao
Canadá como parte desta jornada de cura.
Voltamos, assim, ao ponto de
partida do itinerário. A visita da delegação a Roma ocorreu bem. O carisma de
acolhimento e escuta do Papa e a clareza de suas palavras tocaram seus
visitantes. A estima pelas suas culturas e tradições, a condenação da violência
da colonização, "a indignação e a vergonha" pelas várias formas de
abusos sofridos, particularmente nas escolas residenciais, como
contratestemunho do Evangelho foram expressados. Na coletiva de imprensa no
final da viagem, os representantes dos três componentes indígenas da delegação
e os bispos que os acompanharam expressaram sua plena satisfação e confiança de
que a prometida viagem do Papa trará frutos decisivos para encorajar a
caminhada dos povos indígenas na afirmação dos seus direitos e na realização
das suas aspirações e que a Igreja Católica os acompanha neste caminho.
Ao reconstituir os
acontecimentos, encontramos muito sofrimento, especialmente em primeiro lugar
os de povos indígenas e muitos alunos de escolas residenciais, vítimas de
imensas injustiças e graves abusos, mas também – vale lembrar - que muitas pessoas
gastaram suas forças com a intenção sincera de servir ao evangelho e aos povos
indígenas, e agora se sentem frustrados por críticas muito duras, nas quais não
faltam generalizações, que também não são corretas.
Pensamos que este é um preço penitencial, longe de ser
inútil, a ser pago em um caminho de purificação da Igreja. E esperamos que isso
dê frutos para um encontro mais profundo, frutífero e renovado -
verdadeiramente reconciliado - com os povos indígenas e toda a sociedade
canadense. Um caminho pelo qual muitos na Igreja trabalham com generosidade,
com entusiasmo, perseverança e dedicação, e no qual o caminho do Papa se propõe
como uma etapa preciosa e encorajadora.
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