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2. EMAÚS: A
DECEPÇÃO E A ESPERANÇA
Dois homens tristes no entardecer
O Evangelho de São Lucas, no seu capítulo 24
(13-35), faz-nos contemplar de perto, de uma maneira muito viva, dois homens
que – na tarde do próprio dia da Ressurreição de Jesus – estão voltando
para casa, cabisbaixos e decepcionados: os discípulos de Emaús.
Nesse mesmo dia – diz São
Lucas -, dois discípulos caminhavam para uma aldeia, chamada Emaús,
distante de Jerusalém sessenta estádios –cerca de doze quilômetros. Iam
falando um com o outro sobre tudo o que se tinha passado . Aquilo
que se tinha passado era, nada mais nada menos, a paixão e a
morte de Jesus, a “derrota” estrondosa de Cristo às mãos dos seus inimigos,
enquanto as multidões, que cinco dias antes, no domingo de Ramos, o haviam
aclamado entusiasmadas, vociferavam com ódio: Crucifica-o! Crucifica-o!
Podemos imaginar, por isso, qual era o seu estado de ânimo. Perdidos,
deprimidos, desnorteados, conversavam como quem não acaba de acreditar que
tivesse sido possível aquele afundamento dos seus sonhos. Assim andavam quando
Jesus aproximou-se e caminhava com eles; mas os olhos estavam-lhes como
que vendados e não o reconheceram.
São Josemaría Escrivá oferece-nos uma descrição
cálida da aparição de Jesus ressuscitado a esses discípulos: “Caminhavam
aqueles dois discípulos – escreve – em direção a Emaús. Andavam a passo normal,
como tantos outros que transitavam por aquelas paragens. E ali, com
naturalidade, aparece-lhes Jesus e caminha com eles, numa conversa que diminui
a fadiga. Imagino a cena, bem ao cair da tarde. Sopra uma brisa suave. Em
redor, campos semeados de trigo já crescido, e as oliveiras velhas, com os
ramos prateados à luz tíbia”. São palavras poéticas que nos ajudam a fazer
meditação, sentindo-nos dentro da cena, participando dela “como mais um
personagem”.[i]
Ouçamos, pois – enquanto os acompanhamos –, as
primeiras palavras que o Senhor lhes dirige: De que vínheis falando
pelo caminho, e por que estais tristes?.
O diálogo que se travou é digno de ser meditado. Primeiro, como pessoas
frustradas, os discípulos respondem de mau humor, num tom ríspido: Um
deles, chamado Cléofas, respondeu-lhe: “És tu acaso o único forasteiro em
Jerusalém que não sabe o que nela aconteceu nestes dias?”… É como se
dissesse, meio admirado e meio irritado: “Todo o mundo sabe. Onde é que você
vive? Só você está por fora?”
Que ironia! Dirigem-se rudemente a Jesus, lançando
lhe em rosto a sua ignorância a respeito da tragédia… do próprio Jesus! Tudo
isso chegaria a ser cômico, se não fosse dramático. Mas nosso Senhor, como em
todas as cenas da ressurreição, mostra-se especialmente afável e bem-humorado
para com eles. Ousaria dizer que é até propositadamente divertido. Fazendo-se
de ingênuo, pergunta-lhes “Que foi? Que houve?…“ Assim
quer ajudá-los a abrir o coração, como, aliás, Ele deseja fazer conosco sempre
que nos vê desanimados ou tristes: “Eu estou aqui – diz-nos -. Fala comigo”.
E eles abriram-se mesmo. Despejaram o vinagre da
sua decepção. Falaram ao caminhante desconhecido sobre um tal Jesus de
Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o
povo, comentando os acontecimentos trágicos da quinta e da sexta-feira
santas, e contaram-lhe como tinha acabado pregado na Cruz. Depois, confessaram
a sua tremenda frustração: Nós esperávamos que fosse ele quem havia de
restaurar Israel, e agora, além de tudo isso, já é o terceiro dia que estas
coisas aconteceram.
Um erro de esperança
Esse era o mal que lhes corroía a alma: Nós
esperávamos. Tinham colocado toda a sua esperança no Senhor. Tinham
apostado nele. Por isso o haviam seguido, por isso tinham abandonado os seus
planos pessoais, o aconchego do lar, tudo, jogando a vida numa só carta: a
esperança de que Jesus fosse o poderoso Rei-Messias anunciado pelos Profetas,
que triunfaria sobre todos os inimigos e se assentaria no trono do Reino de Israel,
restabelecendo-o para sempre. Ninguém lhes tinha contado ainda que, em plena
Paixão, Jesus declarara inequivocamente a Pilatos: O meu Reino não é
deste mundo…
No entanto, eles, quase com certeza, já lhe
tinham ouvido dizer: O Reino de Deus está dentro de vós…
E também tinham escutado muitas das parábolas do Reino, que
falavam, por meio de expressivos simbolismos, não de um reino terreno,
político, mas de um Reino de graça, de paz e de amor que cresce dentro dos
corações, nas famílias, nas sociedades, como o trigo que germina de noite e de
dia; como o grão de mostarda que é pequenino e se torna árvore alta; como o
fermento invisível que a mulher põe na massa de farinha e acaba fermentando-a
toda… Ou como um Pai que perdoa o filho fugitivo, e um Pastor que procura
a ovelha perdida e que é, ao mesmo tempo, o Rei-Deus que nos convida a
participar do seu banquete de amor eterno…
Poderíamos definir com exatidão o engano dos
discípulos de Emaús – igual ao de muitos atuais discípulos de Cristo – como um
grande “erro de esperança”. Aí esteve a sua falha. Tinham esperança, sim, mas
era uma “esperança equivocada”, não era a virtude cristã da esperança. Em
conseqüência, estavam irremediavelmente fadados à decepção e ao fracasso, como
quem dispara uma flecha para o alvo errado, ou dirige um veículo fora da
estrada, que, quanto mais rápido vai, mais perto está do desastre.
Assim são muitas mulheres e muitos homens de hoje.
O seu mal é a visão deturpada da esperança: esperam o que não devem, e esperam
mal. Os exemplos são inúmeros: falsas esperanças amorosas, falsas esperanças
profissionais, falsas esperanças de glória e triunfo, falsa confiança nas
riquezas…
Onde está o erro? A resposta é simples. Espera mal
quem espera qualquer coisa diferente da Vontade de Deus a seu respeito,
qualquer coisa – por grande e empolgante que seja – que esteja fora dos planos
que Deus preparou e deseja para ele. Então, acontece a essas pessoas o
que Jesus dizia aos fariseus: Frustraram o desígnio de Deus a seu
respeito (Lc 10,30). A vida deles tornou-se um plano divino traído,
frustrado, que Deus não pode reconhecer como seu, e tem que lhes dizer: Não
vos conheço (Mt 25,12).
É importante perceber que as pessoas não ficam
frustradas “principalmente” por não terem alcançado os seus desejos, os seus
sonhos. Na realidade, muitas das piores frustrações são as daqueles que
alcançaram mesmo esses desejos e sonhos (“Já estou na faculdade, já tenho
emprego, já me casei, já sou rico”), mas depois percebem que nada disso os
preenche, não lhes traz a felicidade. Homens e mulheres ficam frustrados
“principalmente” porque – sem sequer darem por isso – não atingem o ideal para
o qual foram criadas por Deus, ou seja, por não terem sido fiéis à sua vocação
de filhos de Deus, e por isso – desculpem a expressão rude – a vida delas, em
vez de alcançar o desenvolvimento e maturidade de um filho que cresce, foi como
um aborto. Fora do que Deus espera de nós, tudo é um triste aborto provocado…
por nós!
Pensemos, por exemplo, nos casamentos fracassados.
A maioria deles afundou-se porque marido e mulher “esperaram mal”. O que é que
espera a maioria dos noivos, quando vão para o casamento? Sem dúvida, amar e
ser felizes. Mas amar, como? Serem felizes, como? Muitos só pensam em
“receber” do outro muito carinho, paciência, compreensão, todo o aconchego para
se “sentirem bem” realizando os seus próprios gostos e caprichos, os seus
prazeres, e até as suas manias. Poucos pensam em dar e dar-se generosamente
para o bem do outro e dos filhos, em construir uma família com abnegação
generosa e desprendimento alegre, felizes por fazerem felizes os demais. Ou
seja, não pensam no verdadeiro amor, no autêntico amor-doação, no único que
pode trazer a felicidade.
Por isso, quando chega a hora da verdade e aparecem
as dificuldades inevitáveis – essas com as quais Deus conta para nos purificar
e amadurecer –, não compreendem que essas dificuldades são apelos para
se darem mais, para amarem mais, para dialogarem mais, e não para
irritações, más caras, resmungos e gritos; que é a hora da compreensão, e não a
da imposição; que é a hora de escutar com humildade, e não de “ter razão”….
Infelizmente, não entendem nada disso. E, então, tudo vai por água abaixo. Não
foram ao casamento preparados para o verdadeiro amor, mas para “consumir” satisfações
(como “consomem” os outros prazeres da vida). É natural que acabem
dizendo, como os discípulos de Emaús: “Nós esperávamos outra coisa”…
É preciso abrir os olhos da alma, com a ajuda de
Deus, e compreender que a vida não é uma laranja para chupar e cuspir, que os
outros não são cana de açúcar para tirar o caldo e jogar fora o bagaço, que
Deus não é um “seguro protetor de egoísmos”, e que os outros não são “bens
desfrutáveis”. Viver e ser feliz é coisa infinitamente maior do que “usufruir”!
A virtude da esperança
Qual é, então, a verdadeira esperança cristã? É a
confiança firme, nascida da fé viva que nos diz que viveremos envoltos no amor
de Deus aqui na terra – em todas as circunstâncias e vicissitudes de cada dia –
e, depois, eternamente no Céu. Tudo o que conduz a isso é bom. Tudo o que
afasta disso é mau. Tudo o que conduz a isso acaba em felicidade – já aqui na
terra -, e tudo o que afasta disso acaba em tristeza, e até – Deus não o
permita – pode acabar em tormento eterno.
É muito claro o que diz o Catecismo da
Igreja Católica sobre a esperança: “A esperança é a virtude teologal
pela qual desejamos como nossa felicidade o Reino dos Céus e a Vida Eterna,
pondo a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos não em nossas
forças próprias, mas no socorro da graça do Espírito Santo… A virtude da
esperança responde à aspiração de felicidade colocada por Deus no coração de
todos os homens; assume as esperanças que inspiram as atividades dos homens;
purifica-as para ordená-las ao Reino dos Céus; protege contra o desânimo; dá
alento em todo o esmorecimento; dilata o coração na expectativa da
bem-aventurança eterna. O impulso da esperança preserva do egoísmo e conduz à
felicidade do amor” (nn. 1817 e 1818). São textos preciosos, que daria para meditar
durante horas.
A grande lição dos discípulos de Emaús
Voltando para a cena dos discípulos de Emaús, vale
a pena prestar atenção ao que Cristo lhes disse, quando terminaram o seu
desabafo de desiludidos. Nosso Senhor começou a falar-lhes de modo claro,
incisivo, sem rebuços, com palavras que tiveram o efeito de lancetar-lhes o
tumor de ceticismo que lhes corroía o coração: Ó gente insensata e
lenta de coração para acreditar em tudo o que anunciaram os profetas!
Porventura não era necessário que o Cristo sofresse estas coisas e assim
entrasse na sua glória?” E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas,
explicava-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras”, ou seja,
as inúmeras profecias que falavam da sua Paixão. Jesus desvendou-lhes, assim,
com um jato de luz divina, o plano da Trindade para a salvação do mundo, uma
salvação que havia de ser realizada pelo máximo ato de Amor imaginável: a
entrega do Filho de Deus na Cruz para a redenção dos nossos pecados.
Foi na Cruz, com efeito, onde o Filho de Deus –
Deus feito Homem, encarnado por nós – atingiu o limite máximo do Amor, e com
esse amor ilimitado, envolveu, compensou, purificou e superou todos os nossos
desamores, todos os nossos pecados. Como fruto deste seu sacrifício, derramou
sobre nós a graça do Espírito Santo – o fogo do Amor divino em pessoa –, e
abriu-nos de par em par as portas do Céu.
Quer dizer que o que Cléofas e o companheiro
lamentavam como uma desgraça (a paixão e morte de Cristo), foi, na realidade,
a maior maravilha de toda a história da humanidade, o maior bem do mundo, o
maior motivo de alegria de todos os séculos! Insensatos! – disse-lhes
Jesus. Sim, insensatos os que não vêem isso e vão atrás de
sombras e aparências falsas!
Enquanto Jesus ia falando pelo caminho, os corações
dos dois caminhantes foram mudando. Um calor novo os invadiu, uma faísca de
esperança se acendeu neles. Aproximaram-se da aldeia para onde
iam, e Jesus fez como se quisesse passar adiante. Mas eles forçaram-no a parar:
“Fica conosco, já é tarde e o dia declina”..
É uma bela oração para nós fazermos, quando
começarmos a sentir a proximidade de Jesus: “Fica conosco! Não
nos deixes, queremos estar contigo, queremos ter-te como amigo, queremos
abrir-te a alma. Fica!” E, além do mais, bem que percebemos que já se nos
faz tarde, que a vida passa, que a vida acaba, sim, já é tarde e o dia
declina. Olha, Senhor, que gastamos boa
parte deste “dia”, que é a vida, entre falsas esperanças e verdadeiras
frustrações. Precisamos de Ti. Por favor, fica, que só em Ti se acha a
esperança…
Com Cristo, o coração arde
Então – continua a contar São Lucas –, entrou
com eles, e aconteceu que, estando sentados à mesa, ele tomou o pão,
abençoou-o, partiu-o e serviu-lho. Então se lhes abriram os olhos e o
reconheceram…, mas ele desapareceu. Diziam então um ao outro: “Não é verdade
que o nosso coração ardia dentro de nós enquanto ele nos falava pelo caminho e
nos explicava as Escrituras?”
Tudo, nessa belíssima cena dos discípulos de Emaús,
é espelho e modelo para nós. Bem dizia São Josemaría Escrivá: “Caminho de
Emaús, caminho da vida”… Quando nos entristecer a falta de sentido de tantas
coisas, e sobretudo, quando nos acabrunharem as decepções que parecem
amontoar-se e afogar a esperança, façamos como os discípulos de Emaús:
Primeiro, abramos a alma a Deus (às vezes, a melhor
maneira de abri-la é fazer uma confissão muito sincera).
Depois, escutemos as suas palavras, meditemos a
Sagrada Escritura – especialmente os Evangelhos – com calma, com carinho,
deixando que as Palavras de Deus penetrem na alma como a chuva na terra. Elas
nos mostrarão que o que nos parece ruim muitas vezes é bom, que a Cruz – que
julgamos ser uma porta que se nos fecha e nos deixa num beco sem saída – na
realidade é uma porta que se abre, para que entremos num mundo melhor, de mais
amor, de mais bondade, de mais pureza, de mais virtude.
Em terceiro lugar, acolhamos Jesus em casa, na casa
da nossa alma, recebendo-o sempre dignamente na Eucaristia, na Comunhão, que é
a união com Deus mais íntima que a criatura humana pode ter nesta terra: Jesus
em nós, Jesus alimento nosso, Jesus sangue do nosso sangue e vida da nossa
vida!
E por fim, a alegria. O coração desanimado, que
estiolava e murchava, agora arde dentro de nós, e inflama-nos com
uma nova esperança. Vemos um novo sentido para a vida, iluminada pela fé e o
amor de Cristo, e temos necessidade de correr ao encontro dos outros, para
contagiá-los com a nossa esperança, como fizeram os discípulos de Emaús depois
que Jesus os deixou.
Lição de fé, lição de amor, lição de esperança. Vêm
a calhar palavras com
que São Josemaria começava uma homilia sobre a
esperança: “Há já bastantes anos, com a força de uma convicção que crescia de
dia para dia, escrevi: Espera tudo de Jesus; tu nada tens, nada vales,
nada podes. Ele agirá, se nele te abandonares. Passou o tempo, e essa minha
convicção tornou-se ainda mais vigorosa, mais funda. Tenho visto, em muitas
vidas, que a esperança em Deus acende maravilhosas fogueiras de amor, com um
fogo que mantém palpitante o coração, sem desânimos, sem decaimentos, embora ao
longo do caminho se sofra, e às vezes se sofra deveras”[ii].
Isto foi o que aconteceu com os discípulos de Emaús. Com o coração inflamado pela esperança, desfizeram o caminho dos desertores, voltaram a reunir-se com os Apóstolos e as santas mulheres no Cenáculo e participaram da alegria que – no meio ainda de sombras e hesitações – começava a alastrar-se entre eles e que anunciava, mesmo que muitos ainda não o percebessem plenamente e estivessem ainda atingidos pelo temor, um futuro de esperança pelos séculos dos séculos, até ao fim do mundo: “O Senhor ressuscitou verdadeiramente!…” Esta é a grande verdade! A esperança cristã acabava de nascer com a ressurreição de Cristo, e já não morreria nunca mais.
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[i] São Josemaria Escrivá, Amigos de Deus, n. 313
[ii] Amigos de Deus, n. 205
Fonte: https://presbiteros.org.br/
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