Concílio Vaticano II. Foto: Wikipedia |
Redação (11/08/2022 09:33, Gaudium Press) Marcou o século XX, e marcará a História da Igreja, a assembleia conciliar que reuniu, pela primeira vez, mais de dois mil prelados de todo o orbe católico, para tratar da renovação da Igreja ante os desafios de um mundo descristianizado. Convocado por S. João XXIII, e tendo ele sido chamado por Deus à sua presença, foi S. Paulo VI o pontífice encarregado de dirigi-lo e levar a termo.
De outubro de 1962 a dezembro de 1965, vieram a lume diversos e significativos documentos, sob variadas epígrafes: “Declaração”, “Decreto”, “Constituição”, “Constituição Pastoral” ou “Constituição Dogmática”.
Nova eclesiologia
As centenas de páginas assim aprovadas pelos bispos, arcebispos e cardeais do mundo inteiro, levam – todas – a assinatura do Papa S. Paulo VI, o que lhes confere particular autoridade como magistério da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Magistério completo? Magistério Infalível? Magistério inovador? Magistério substitutivo do anterior?
De então para cá, muito se tem falado do sentido profundo de tais documentos, do surgimento de uma “nova eclesiologia”, ou seja, uma nova visão da Igreja querida por Cristo, que ficara ignorada, ocultada, esquecida ao longo dos milênios.
Mudanças litúrgicas, de organização e de governo tem se operado no Corpo eclesial. Muito se tem falado do “Espírito do Concílio”, indicando algo que estaria por detrás e por cima da simples leitura dos textos oficiais, e que seria a verdadeira “chave de interpretação”. Mas de modo tal que, separando-se desta “chave”, o batizado estaria abandonando a “comunhão eclesial”, ainda que siga fielmente a “letra” do Concílio, mais ou menos (ou até pior) como um luterano que se destaca do Santa Mãe Igreja.
Biblioteca de Alexandria
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Surgiria, assim, a imperiosa necessidade de aplicar, aos textos anteriores do Magistério, dos Padres da Igreja, dos Doutores e dos Santos, a legendária pena imposta pelo conquistador muçulmano Omar ibn al-Khattâb, em 642, ao ingente acervo de obras da filosofia e da cultura clássica, grega e romana, síria ou egípcia, contidas na Biblioteca de Alexandria:
“Se indicam o bom caminho, já temos o Alcorão; caso contrário, não devem ser conservados”.
E todos os milhares de manuscritos teriam sido jogados numa enorme fornalha. Pura lenda. Muito repetida.
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Devemos tornar realidade em nossos dias, a imaginária queima dos rolos alexandrinos? Apenas os textos do Vaticano II refletem a doutrina da Igreja e apenas eles podem ser citados?
Espírito Conciliar
Quando surgiram estas formas de interpretar os documentos conciliares em função de um suposto “Espírito Conciliar” inovativo e supra textual?
Pode causar surpresa a alguns.
Foi nas vésperas da festa da Imaculada Conceição, a 7 de dezembro de 1965, quando a última sessão conciliar teve lugar. Nela, S. Paulo VI lembrava as palavras de seu predecessor ao iniciar os trabalhos do magno sínodo: “O que mais importa ao Concílio Ecumênico é o seguinte: que o depósito sagrado da doutrina cristã seja guardado e ensinado de forma mais eficaz” (Discurso na última sessão pública, 7/7/1965).
No alvorecer da madrugada seguinte, algumas centenas de padres conciliares, teólogos, secretários e auxiliares iniciavam as viagens de retorno, carregados de recordações. E também surgia, como uma névoa matinal em dia de inverno, a singular expressão de “espírito do Concílio”.
O próprio papa manifestou surpresa. E, na primeira catequese das quartas feiras (a 12 de janeiro de 1966), chamou a atenção para tal singularidade.
“O legado do Concílio – afirma o papa – consiste nos documentos que foram promulgados nos diversos momentos conclusivos de suas discussões e deliberações… Conhecer, estudar, aplicar esses documentos é o dever e a sorte do período pós-conciliar”.[1]
Porém, enfatiza S. Paulo VI, “devemos ter cuidado: os ensinamentos do Concílio não constituem um sistema orgânico e completo de doutrina católica; isso é muito mais amplo, como todos sabem, e não é questionado pelo Concílio nem substancialmente modificado… Não devemos separar os ensinamentos do Concílio do patrimônio doutrinal da Igreja, por isso é bom ver como eles se encaixam nele, como são coerentes com ele e como testemunham, aumentam, explicam e aplicam”.
E lembrando seu predecessor sublinha: “esta foi a primeira ideia que moveu o Papa João XXIII, de venerável memória, a convocar o Concílio, como bem disse na sessão de apertura: ‘ut iterum magisterium ecclesiasticum. . . affirmaretur’; ‘Era nossa intenção, assim o expressou, ao convocar esta grande assembleia, reafirmar o magistério eclesiástico’ (AAS 1962, p. 786).
Portanto, não seria verdade quem pensasse que o Concílio representa um desprendimento, uma ruptura, ou, como alguns pensam, uma libertação do ensinamento tradicional da Igreja”.
O pensamento do Concílio
E não querendo dar azo a interpretações errôneas, a respeito do valor magisterial dos documentos por ele promulgados em união com os Padres Conciliares, categoricamente declara:
“Há quem se pergunte qual é a autoridade, a qualificação teológica, que o Concílio quis atribuir aos seus ensinamentos, sabendo que evitou dar definições dogmáticas solenes, comprometendo a infalibilidade do magistério eclesiástico. E a resposta é conhecida por quem se lembra do esclarecimento conciliar de 6 de março de 1964, repetido em 16 de novembro de 1964: dado o caráter pastoral do Concílio, evitou pronunciar de forma extraordinária dogmas dotados da nota de infalibilidade; mas, no entanto, forneceu seus ensinamentos com a autoridade do supremo magistério ordinário, o qual magistério ordinário – é tão claramente autêntico – deve ser aceito docilmente e sinceramente por todos os fiéis, de acordo com o pensamento do Concílio quanto à natureza e finalidades dos documentos individuais”.
Existe, pois um “Pensamento do Concílio”, um “Espírito do Concílio”, transcendendo a letra dos documentos do magistério ordinário, cuja assimilação é mais importante que o próprio Magistério? Para o Papa este pensamento e este espírito consistem na fidelidade aos elementares critérios multisseculares, que hierarquizam os ensinamentos do Magistério: sem lhes tirar a importância que merecem, e sem os relegar a um segundo plano apenas porque “não são infalíveis”. Eis as palavras do Papa: “Devemos entrar no espírito desses critérios básicos do magistério eclesiástico… Porque o ‘Espírito do Concílio’ quer realmente ser o Espírito da verdade (Io. 16, 13)”.
Afastar-se-ia, pois do “Espírito do Concílio” (como explicado por S. Paulo VI) quem tentasse dar a seus documentos um valor que eles não quiseram ter, inventando uma nova fábula, calcada da imaginária destruição da biblioteca de Alexandria por Omar ibn al-Khattâb, pois “os ensinamentos do Concílio não constituem um sistema orgânico e completo de doutrina católica; ela é muito mais ampla, como todos sabem”.
Por José Manuel Jiménez Aleixandre
[1] Cf. https://www.vatican.va/content/paul-vi/it/audiences/1966/documents/hf_p-vi_aud_19660112.html
Fonte: https://gaudiumpress.org/
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